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Sesc Jazz: em noite emocionante, festival reúne as vozes de Alaíde Costa e Ilessi

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                                         As cantoras Alaíde Costa e Ilessi, no festival Sesc Jazz, em São Paulo 

É muito provável que parte da plateia que foi ao Sesc Pompeia, no domingo (9/10), estivesse ali somente para rever a grande Alaíde Costa. Essa cantora e compositora carioca, que estreou profissionalmente em meados da década de 1950, é considerada uma precursora da bossa nova graças ao seu suave estilo vocal e à sofisticação de seu repertório. Ver Alaíde cantar, aos 86 anos, é um privilégio, uma experiência emocionante.

Daí a surpresa para aqueles que ainda não conheciam o carisma e a força vocal de outra cantora carioca, que dividiu o palco com Alaíde, nessa noite inesquecível do festival Sesc Jazz. Também compositora, Ilessi é uma intérprete sensacional que, ironicamente, ainda é pouco conhecida em São Paulo, apesar de cantar profissionalmente há mais de duas décadas. Ela tem uma daquelas vozes negras, expressivas e poderosas, que não saem mais de nossa memória depois de ouvidas pela primeira vez.

O título desse show, “Atlântico Negro”, é revelador. Acompanhada por ótimos músicos da Bahia, do Rio e de São Paulo, com direção musical do pianista Marcelo Galter, Ilessi reuniu um repertório assinado por grandes compositores negros, como Milton Nascimento, Tânia Maria, Filó Machado e Djavan, além de composições de sua autoria.

Não é difícil perceber influências de Milton e de Elis Regina, no canto de Ilessi. Em alguns momentos do show, ela fecha os olhos. Parece mergulhar profundamente na música ou quem sabe busca se conectar com a energia de seus ancestrais. Em outros instantes, sua expressão se torna mais dura, como se personificasse a indignação e a dor de seus antepassados.

Se você ainda não ouviu Ilessi, procure seus discos ou assista seus vídeos, até a próxima oportunidade de ouvi-la num palco. Em um país injusto e preconceituoso como o nosso, uma pérola negra de alto quilate, como essa grande artista brasileira, precisa ser garimpada.



Sesc Jazz 2021: festival retoma shows com presença de plateia em São Paulo

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                                       O pianista Amaro Freitas, atração da noite de abertura do Sesc Jazz 2021   

Uma notícia animadora para aqueles que não veem a hora de voltar a frequentar shows e festivais de música, suspensos há um ano e meio por causa da pandemia. A gradual retomada das atividades musicais, em palcos da cidade de São Paulo, recebe na próxima semana um evento de peso e substância: o Sesc Jazz, festival com uma extensa programação de shows, filmes, audiovisuais, bate-papos e masterclasses.

Na estreia do evento, em 15/10 (sexta), o pianista pernambucano Amaro Freitas – uma das grandes revelações da cena musical de nosso país nos últimos anos – leva ao Teatro do Sesc Pompeia os parceiros Hugo Medeiros (bateria), Jean Elton (baixo), Lucas dos Prazeres (percussão), Henrique Albino (sax e flautas) e Laís Assis (violão). Seu repertório destaca composições de Moacir Santos, Wayne Shorter, Milton Nascimento e Johnny Alf, além de composições próprias.

A cantora e compositora Joyce Moreno (em show com participação especial do pianista João Donato), o trio do guitarrista e violonista Romero Lubambo (que vive há décadas nos Estados Unidos), o trio do bandolinista Hamilton de Holanda, o sexteto do violonista Toninho Horta, o quinteto instrumental Pau Brasil (que está festejando seus 40 anos) e o Trio Curupira estão entre os destaques da programação com mais de duas dúzias de shows de jazz e música instrumental, nos teatros das unidades Pompeia, Vila Mariana, Pinheiros e Consolação do Sesc SP.

Quase todos os shows serão oferecidos em formato híbrido: além das apresentações para uma plateia com até 30% da lotação dos teatros (medida exigida para se manter o necessário distanciamento social do público, além das máscaras), esses eventos também serão transmitidos online.

A venda dos ingressos começa nos dias 12/10, a partir das 14h (online), e 13/10, das 14h às 19h (presencial), nas bilheterias das unidades onde serão realizados esses shows. Os ingressos custam R$ 40 (inteira, para o público geral) ou R$ 20 (público com Credencial Plena ou meia-entrada). Já os ingressos para os shows no Sesc Consolação, que fazem parte da série Instrumental Sesc Brasil, são gratuitos. Para assistir aos shows presenciais é necessário apresentar comprovante de vacinação contra a Covid-19.

Os shows do quarteto do pianista suíço Frank Salis, o da big band do violonista espanhol José Quevedo Bolita, o do quarteto do trombonista belga Nabou Claerhout e o da big band da pianista dinamarquesa Kathrine Windfeld só serão transmitidos online. Já as apresentações da cantora norte-americana Alissa Sanders (com participação da cantora Anelis Assumpção), do multi-instrumentista moçambicano Otis Selimane Remane e do contrabaixista cubano Aniel Someillan serão presenciais, assim como transmitidas online.

Eclética como em edições anteriores, a programação do Sesc Jazz mistura diversos estilos de jazz e música instrumental, como a fusion e a black music da baixista Ana Karina Sebastião (com participação do cantor Michel Sebá), o samba e outros ritmos afro-brasileiros do quinteto Jazz das Minas (liderado pela pianista Maíra Freitas), o afrobeat da Funmilayo Orchestra, o free jazz do Conde Favela Sexteto ou o som experimental do quarteto MARV, com participação especial do tecladista Lelo Nazário, do lendário Grupo Um.

Dois expoentes do jazz brasileiro na cena internacional vão receber homenagens. Raul de Souza (1934-2021), mestre do trombone, será lembrado pelo quarteto que o acompanhava, em show com participações especiais do saxofonista Hector Costita e dos trombonistas Bocato e Sergio Coelho. Já a grande cantora e pianista Tania Maria, que vive há décadas na Europa, será homenageada com o lançamento do álbum “Parabéns Tânia” (Selo Sesc), projeto idealizado pelo baterista Lael Medina.

Agendada de 15 a 31/10, a programação de shows também inclui o quinteto do saxofonista Vinícius Chagas, o sexteto do percussionista Gabi Guedes (com participação da cantora Ellen Oléria), o duo Bufo Borealis, o sexteto Hurtmold (com participações do percussionista Paulo Santos e do cantor Jorge Du Peixe) e o Duo Rádio Diápora.

Além de aulas-shows, masterclasses e mostras de filmes e audiovisuais, o Sesc Jazz 2021 oferece ainda a série Sotaques do Jazz, que reúne cinco mesas de debates, com participações de músicos como o uruguaio Ruben Rada, a cubana Cláudia Rivera, a nigeriana Okwei Odili e os brasileiros Amilton Godoi, Filó Machado, Arismar do Espírito Santo, Lilian Carmona, Robertinho Silva e Fernando Alabê, entre outros.

Consulte a programação completa e horários do Sesc Jazz 2021 no site do evento: 
https://sescjazz.sescsp.org.br/



Sesc Jazz: o carisma de Yissy Garcia, a baterista cubana que toca sorrindo

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                                                                                   A baterista e compositora Yissy Garcia 

Quem acha que o jazz é música para gente velha (uma bobagem preconceituosa que volta e meia ouvimos por aí) morderia a língua se tivesse assistido ao contagiante show que a baterista e compositora cubana Yissy Garcia e seu quinteto Bandancha fizeram ontem (24/10), em mais uma noite do festival Sesc Jazz, no Sesc Pompeia, em São Paulo.

Além de misturar influências do funk, do hip-hop, do reggae e da música eletrônica em seu jazz contemporâneo de ascendência afro-cubana, Yissy é uma baterista brilhante, que esbanja criatividade nos improvisos. Carismática, ela toca com um irresistível sorriso no rosto, transmitindo à plateia todo o prazer que sente ao tocar sua música.

Yissy abriu o show contando à plateia que seu pai (o baterista Bernardo Garcia, um dos fundadores da Irakere, lendária banda de jazz cubano da qual também faziam parte o trompetista Arturo Sandoval e o saxofonista Paquito D’Rivera) costumava dizer que o Brasil era o seu país favorito. “Estou realizando um sonho nesta noite”, ela disse, demonstrando estar emocionada.

Impossível não lembrar do genial trompetista e jazzista Dizzy Gillespie (1917-1993), que arriscou uma profecia ao visitar a ilha de Cuba, no final dos anos 1980. Segundo ele, o jazz, a música cubana e a música brasileira, que se desenvolveram a partir de raízes comuns, se tornariam uma só no futuro. Mesmo que essa profecia não venha a se realizar, não há dúvida de que essas três preciosas fontes musicais são responsáveis por muito do que se criou de melhor na música do século 20.

Sorte de quem pôde ouvir e se deliciou com a música de Yissy Garcia e sua Bandancha. É sempre bom lembrar que temos primos distantes e queridos em Cuba, cuja música costuma nos emocionar e fazer sorrir.












Sesc Jazz: festival paulista reverencia a arte do saxofonista Gary Bartz

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                                                                             O saxofonista Gary Bartz e o pianista Barney McCall 

Em mais uma noite do festival Sesc Jazz, ontem (20/10, no teatro do Sesc Pompeia, em São Paulo), o saxofonista e compositor norte-americano Gary Bartz foi logo avisando à plateia que não costuma interromper seus shows para receber aplausos, nem mesmo para anunciar a próxima música do repertório.

O veterano jazzista não estava brincando. Só interrompeu o show depois de tocar por mais de uma hora, para recuperar o fôlego. Então trocou o sax alto pelo soprano e anunciou uma pérola de seu repertório naquela noite: “Si Tu Vois Ma Mère” 
 a  singela composição de Sidney Bechet, pioneiro do jazz de New Orleans, que Woody Allen resgatou na trilha sonora de filme “Meia-Noite em Paris” (de 2011).

Em seguida, tocou um trecho da melodia de “Ponta de Areia” (de Milton Nascimento), que provocou sorrisos na plateia. Pouco depois veio “Just Friends”, clássica canção americana que os jazzistas tocam com frequência (não à toa gravada por Charlie Parker, o genial saxofonista cuja influência levou Bartz a adotar esse instrumento). Não faltaram também canções compostas pelo próprio Bartz, como “I’ve Known Rivers” e “Precious Energy”, que ele mesmo cantou.

É bem provável que grande parte da plateia estava ali ouvindo Bartz pela primeira vez e que tenha se interessado por ele ao saber de sua parceria com Miles Davis, ainda no final dos anos 1960. Embora seja muito menos conhecido que seu antigo parceiro, Bartz também tocou com outros gigantes do jazz, como Art Blakey, Charles Mingus, Eric Dolphy, McCoy Tyner e Max Roach 
 seu currículo musical é capaz de deixar qualquer jazzista com inveja.    

O que importa mesmo é que Bartz e seus talentosos parceiros – Barney McCall (piano), James King (contrabaixo) e Francisco Mella (bateria) 
 cativaram a plateia durante duas horas de show, sem recorrer a um repertório mais conhecido. Ver um músico de 79 anos exercer seu ofício com tanta dedicação e respeito por sua plateia é algo estimulante.

Sesc Jazz: plateia de São Paulo viaja a Saturno com a Sun Ra Arkestra

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                                                                     Músicos da Sun Ra Arkestra, no festival Sesc Jazz 

Os sorrisos de alguns e os olhares intrigados de outros eram reveladores, na noite de estreia do festival Sesc Jazz (no Sesc Pompeia, ontem, em São Paulo). Não é todo dia que se tem a chance de ver e ouvir uma orquestra tão original, irreverente e vanguardista como a Sun Ra Arkestra, fundada na década de 1950 pelo compositor, tecladista e poeta norte-americano Herman “Sun Ra” Blount (1914-1993).

O conceito de afro-futurismo ainda demoraria décadas a ser criado, quando Blount (seu  codinome Sun Ra refere-se ao deus Sol dos egípcios) e os músicos de sua Arkestra desenvolveram um personalíssimo estilo de jazz orquestral que chegou a ser rotulado de “jazz do espaço”. Vale lembrar que Sun Ra costumava afirmar, em entrevistas, que nascera no planeta Saturno.

Liderada durante as últimas décadas pelo saxofonista e compositor Marshall Allen (com uma vitalidade incrível para alguém de 95 anos), a Sun Ra Arkestra mantém vivo o legado musical de seu lendário músico criador, que sempre reverenciou a diversidade da música de origem negra, desde o blues e o swing até o mambo e o funk.

Essa diversidade também marcou o repertório do show de ontem: da inusitada releitura da canção “Stranger in Paradise” (do musical “Kismet”, de 1953, que ficou conhecida no Brasil pela gravação meio brega da orquestra de Ray Conniff) à quase dramática versão de “When You Wish Upon a Star” (do desenho animado “Pinocchio”, de 1940), que fez a plateia sorrir. Naturalmente, não faltaram clássicos do repertório da Arkestra, como a catártica “Angels and Demons” ou a emblemática “Space Is The Place”.

Para quem é obrigado a viver neste país violento e injusto, comandado por políticos e juízes farsantes, as duas horas de música oferecidas pela Sun Ra Arkestra foram terapêuticas. funcionaram como uma relaxante viagem a Saturno.


Sesc Jazz: festival traz a Sun Ra Arkestra e o Art Ensemble of Chicago a São Paulo

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O show de abertura, com o jazz vanguardista e a irreverência da lendária Sun Ra Arkestra (na foto acima), já é capaz de deixar fãs desse gênero musical com água na boca. Este será o saboroso aperitivo do 2.º Sesc Jazz, festival que vai oferecer, de 8 a 27 de outubro, um total de 26 atrações de 12 países. Os shows vão circular pelos palcos de nove unidades do Sesc, na capital, no litoral e no interior paulista.

Evento que resultou, no ano passado, da união dos festivais Jazz na Fábrica (realizado por sete anos nos três palcos do Sesc Pompeia) e Sesc Jazz & Blues (que circulou durante seis anos por várias unidades do Sesc no interior paulista), o Sesc Jazz conserva em sua curadoria a essência da diversidade musical e a alta qualidade das atrações dos festivais que o precederam.

Entre as atrações internacionais desta edição destacam-se: o cultuado grupo Art Ensemble of Chicago, outra instituição do jazz de vanguarda, que se mantém ativo há cinco décadas; os ritmos afro-cubanos e o jazz latino do trompetista Arturo Sandoval e da baterista-revelação Yissy Garcia e sua Bandancha (na foto abaixo); o jazz contemporâneo do veterano saxofonista Gary Bartz e o novo projeto da baterista e ativista Terri Lyne Carrington e seu sexteto Social Science Community.   


Outras atrações que devem estar entre as mais disputadas: o jazz influenciado pelo flamenco do quarteto do pianista Chano Dominguez com a flautista Maria Toro (ambos espanhóis); o diálogo do jazz com o rock comandado pelo trompetista israelense Avishai Cohen e seu quarteto Big Vicious; os grooves eletrônicos do tecladista britânico Kamaal Williams; o encontro do free jazz com a música klezmer nos improvisos do saxofonista norte-americano John Zorn e seu New Masada Quartet.

O elenco nacional também é de primeira linha: os duos de violão e piano de Alexandre e Egberto Gismonti; o jazz orquestral da Nelson Ayres Big Band; a música instrumental brasileira do quarteto Duo + Dois (com os violonistas do Duofel, o flautista Carlos Malta e o baterista Robertinho Silva); o quarteto do gaitista Maurício Einhorn; o quinteto do baterista Edu Ribeiro (com o trompetista Daniel D’Alcântara, o acordeonista Guilherme Ribeiro, o baixista Bruno Migotto e o guitarrista Fernando Corrêa); a pianista e compositora Luísa Mitre, entre outras atrações.

A programação inclui 17 atividades formativas, como workshops, encontros musicais e palestras, que também serão realizadas nas unidades Consolação e Vila Mariana, assim como no Centro de Pesquisa e Formação do Sesc. Como já havia feito no Sesc Jazz & Blues 2014, vou ter o prazer de ministrar a palestra “Como Ouvir Jazz Sem Medo”, nas unidades Guarulhos (dia 9/10), Jundiaí (12/10), Araraquara (19/10) e Sorocaba (23/10), com entrada franca.

Os ingressos para os shows começam a ser vendidos a partir das 19h do 1.º de outubro (terça-feira), no portal do Sesc SP. A compra de ingressos também pode ser feita nas bilheterias das unidades do Sesc a partir das 17h30 do dia 2/10 (quarta). A venda é limitada a 4 ingressos por pessoa. Os preços dos ingressos variam entre R$ 15 e R$ 60.


Mais informações no site do festival: sescjazz.sescsp.org.br/
















Sesc Jazz: banda mineira iconili traz sua música instrumental dançante a São Paulo

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                                                 A banda mineira Iconili, em show no Sesc Pompeia, em São Paulo

Acostumados a se apresentarem para plateias predominantemente jovens, em festivais, teatros ou casas noturnas pelo país, os músicos da banda Iconili encontraram um público inédito em sua trajetória, no show gratuito e ao ar livre que fizeram durante o último dia de programação do festival Sesc Jazz. Naquela ensolarada tarde de domingo (2/9), o ambiente era bastante familiar no deck do Sesc Pompeia. Sentados, vários pais e mães tentavam relaxar um pouco, de olho em suas crianças, que aproveitavam o espaço amplo para se divertirem, correndo.

Depois de uma bem-sucedida carreira de 10 anos, durante a qual lançou três discos, essa banda de Belo Horizonte (MG) vive um período de transição. Sua formação – hoje com 11 integrantes, incluindo um naipe de instrumentos de sopro – chega a lembrar uma big band, mas sua música tem muito pouco em comum com as tradicionais orquestras do jazz. Idealizada como um coletivo musical em que todos participam ativamente, sem líderes assumidos, a Iconili já se definiu como um “laboratório de experimentação sonora”.

Com novos integrantes, a banda mineira vem preparando desde o ano passado o seu quarto álbum, ainda em processo de gravação. Durante esse período, as apresentações têm servido para testar o efeito do material inédito, no contato direto com as plateias. Esse processo de criação revela o objetivo do grupo: fazer uma música de essência instrumental, calcada em “grooves” que levem a plateia a dançar, mas que também possa ser ouvida com prazer, sem longos improvisos ou demonstrações de virtuosismo instrumental.

No repertório apresentado agora, já se pode sentir que as influências iniciais do afrobeat e do rock progressivo, marcantes nos primeiros anos da banda, abrem espaço para uma fase de ascendência mais brasileira. Claro que a banda não deixou de incluir no repertório composições de seus discos anteriores, que parte da plateia logo reconheceu, como as contagiantes “Jorge Botafogo” (do álbum “Piacó”, de 2015) e “Mulatu” (do EP “Tupi Novo Mundo”, de 2013, recém-relançado em vinil), que ganharam outros timbres, nos atuais arranjos.

Entre as novas composições, chama atenção “Iris”, cuja letra aborda uma temática bastante atual: as diferenças entre a visões de mundo da mulher e do homem. No show, essa canção marca, simbolicamente, as recentes chegadas da percussionista Chaya Vazquez e da vocalista Josi Lopes, que agora divide o centro do palco com os sopros de Henrique Staino (sax tenor e soprano), Lucas Freitas (sax barítono) e João Machala (trombone).

“Tem mineiro aqui, gente?”, brincou Josi, quase ao final do show, mas àquela altura a plateia paulistana já tinha sido conquistada pelos arranjos instrumentais da banda. Vale notar, aliás, que as crianças foram as primeiras a cair na dança. Pelo show que mostrou no palco do Sesc Jazz, a Iconili parece estar no caminho certo para ampliar ainda mais seu fã-clube. E assim desmente da melhor maneira a velha falácia de que a música instrumental só pode ser apreciada por poucos.


(Resenha escrita a convite da produção do festival Sesc Jazz. Leia outras críticas de shows desse evento, no site do Sesc SP: https://www.sescsp.org.br/online/revistas/tag/12411_CRITICAS+SESC+JAZZ)

Sesc Jazz: a poesia engajada e a música negra do saxofonista Archie Shepp

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                                                       Archie Shepp, cantando no festival Sesc Jazz, em São Paulo 

Vanguardista, radical, revolucionário. Adjetivos como esses são utilizados com frequência ao se traçar o perfil de Archie Shepp – um dos músicos mais ativos e intelectualizados da geração que, na década de 1960, cultivou e difundiu a rebeldia sonora e política do free jazz, ao lado de Cecil Taylor, John Tchicai e Don Cherry, entre outros. Acrescente-se também o fato de Shepp ter sido discípulo e parceiro eventual do messiânico John Coltrane (1926-1967), o jazzista mais cultuado e imitado nas últimas décadas. Pronto, o mito está completo.

Graças a essa imagem divulgada há décadas, qualquer um se surpreende ao ver e ouvir pela primeira vez esse músico, poeta e dramaturgo norte-americano. Na noite de encerramento do festival Sesc Jazz (2/9), na plateia do teatro do Sesc Pompeia, alguns certamente não imaginavam que poderiam ouvir o radical saxofonista tocar uma canção tão romântica como “The Stars Are in Your Eyes” (de sua autoria), quase em ritmo de bossa nova, incluindo uma breve citação de “Nature Boy” (de Eden Ahbez), antigo sucesso do cantor Nat King Cole (1919-1965).

Os mais familiarizados com a obra e a trajetória musical de Shepp sabem que seu ativismo político – na luta pelos direitos civis dos negros ou contra a desigualdade social, entre outras causas – não o impediram de adotar, já na década de 1970, um repertório bem amplo, que inclui diversas vertentes da música negra norte-americana. Para isso contribuiu sua carreira paralela de professor de Estudos Afro-Americanos, em universidades de Massachusetts e Buffalo. Um exemplo: “Goin’ Home” (gravado em 1977) e “Trouble in Mind” (1980)”, álbuns que Shepp dedicou ao gospel, ao blues e ao rhythm & blues, em inspirados duos com o pianista Horace Parlan (1931-2017), são preciosidades musicais que merecem ser descobertas pelos ouvintes de hoje.

Muito bem acompanhado pela percussão de Kahil El’Zabar e seu Ritual Trio, que inclui o baixista Jamaladeen Tacuma e o pianista Henri Morisset, Shepp ofereceu à plateia, praticamente, uma aula sobre a diversidade da música afro-americana. Soprando seu roufenho sax tenor, abriu a noite com o bebop “Hope #2”, que compôs para homenagear o pianista Elmo Hope (1923-1967). Tocou “Don’t Get Around Much Anymore” (de Duke Ellington), com todo o swing que esse clássico da era das big bands pede. Mais inusitada foi a lenta versão de “Summertime” (de George Gershwin), ao sax soprano, com El’Zabar dedilhando uma kalimba (pequeno teclado de origem africana para ser tocado com os polegares).

Já o anunciado tributo a Coltrane não chegou a entusiasmar, talvez porque algumas das músicas escolhidas não são tão representativas de sua obra e ainda foram espalhadas ao longo do show, em vez de formarem um bloco. A serena balada “Naima” ganhou uma versão pouco feliz, com Shepp borrando a melodia, demasiadamente, ao sax tenor. A releitura da romântica “I Want to Talk About You” (de Billy Eckstine) seguiu pelo mesmo caminho, mas foi salva pelo lírico solo de Morisset, ao piano, assim como pelos vocais de Shepp, com seu vozeirão de barítono. Coltrane foi lembrado também por “Cousin Mary”, um animado blues de sua autoria, que Shepp chegou a gravar com El’Zabar e seu Ritual Trio, no álbum “Conversations” (1999).

Entre altos e baixos, o clímax do show veio com “Revolution”, dramática composição baseada em um poema que Shepp dedicou à sua avó, Mama Rose, que viveu na época da escravidão. Acompanhado pelo cajón (instrumento de percussão que consiste em uma caixa de madeira, usado originalmente pelos escravos africanos, no Peru) de El’Zabar, com um ritmo tribal, Shepp expôs o tema com o sax soprano. E emocionou a plateia, ao vocalizar os versos do poema de maneira bem teatral, algo entre um canto falado e um rap. Em nenhum outro momento dessa noite, o músico radical, o poeta engajado e o ativista político estiveram tão próximos.


(Resenha escrita a convite da produção do festival Sesc Jazz. Leia outras críticas de shows desse evento, no site do Sesc SP: https://www.sescsp.org.br/online/revistas/tag/12411_CRITICAS+SESC+JAZZ)

Sesc Jazz: o pianista Vijay Iyer e suas reflexões musicais sobre os dias de hoje

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                                                                     O pianista Vijay Iyer e o baixista Stephan Crump

Os paulistanos que tiveram a oportunidade de ouvir pela primeira vez o quarteto de Vijay Iyer, dez anos atrás, no extinto festival Bridgestone Music, dificilmente se esqueceram do impacto causado por aquela música tão inventiva e original. Se, na década passada, esse pianista e compositor norte-americano de ascendência indiana era ainda apontado como uma promissora revelação na cena jazzística, agora ele retorna consagrado para suas apresentações no Sesc Jazz.

Entre muitas vitórias em enquetes das principais publicações especializadas e prêmios já conquistados por Iyer, os críticos da influente revista “Down Beat” lhe concederam uma inédita “quíntupla coroa” (jazzista do ano, pianista do ano, disco do ano, grupo do ano e compositor emergente), em 2012. Seu álbum mais recente, o elogiado “Far from Over” (ECM, 2017), chegou até a figurar na lista de melhores discos do ano da revista “Rolling Stone”, voltada para o rock e a música pop.

Ao apresentar seu sexteto à plateia da comedoria do Sesc Pompeia, no show de sábado (1°/9), Iyer comentou que já toca com essa formação há seis anos. Entre seus parceiros atuais está o contrabaixista Stephan Crump (o único que o acompanhou ao Brasil, em 2008), cuja enérgica e contagiante condução rítmica impulsiona os improvisos do grupo. O grupo inclui ainda o trompete e o flugelhorn eletrificado de Graham Haynes (filho do grande baterista Roy Haynes), o sax tenor de Mark Shim, o sax alto de Steve Lehman e a bateria de Jeremy Dutton.

Basta ouvir alguns minutos de música para se perceber o porquê de Iyer ter escolhido esses instrumentistas como parceiros. Criativos nas improvisações, assim como primorosos em termos técnicos, os cinco contribuem ativamente para que as composições do pianista possam crescer, ganhar mais intensidade e texturas sonoras. Como outros grandes compositores que já contaram com grupos estáveis, Iyer sabe que suas partituras podem alçar voos mais altos, se conceder liberdade para que os parceiros expressem suas personalidades musicais.

Ao introduzir sua bela balada “For Amiri Baraka” (dedicada ao poeta e ativista negro, inicialmente conhecido como LeRoi Jones), Iyer homenageou também Randy Weston, um dos músicos de jazz que o influenciaram. Morto horas antes, aos 92 anos, esse grande pianista e compositor chegou a se apresentar naquele mesmo palco do Sesc Pompeia, em 2014. O duplo tributo musical de Iyer a esses artistas que o inspiraram incluiu também sua emotiva composição “Segment for Sentiment”.

Quem já conhece “Far from Over”, álbum que serviu de base para o repertório desse show, logo notou que as composições gravadas ganharam novas cores e mais intensidade sonora, no palco. Como na funkeada “Nope”, composição em que Iyer troca o piano acústico pelo elétrico, com destaque especial para a bateria de Dutton. Em “Down to the Wire”, o sexteto chegou ao clímax da noite. Num crescendo, o dramático tema apresentado pelo pianista abriu espaço para catárticos improvisos do trompetista e dos saxofonistas, que pareciam gritar, clamar, protestar com seus instrumentos.

Vale lembrar que a obra musical de Iyer é engajada socialmente. Assim como a influência do jazz de vanguarda de Andrew Hill, Muhal Richard Abrams e Cecil Taylor convive em sua música com outras fontes, como o bebop de Thelonious Monk e Bud Powell, a música indiana ou o minimalismo, fenômenos atuais, como a discriminação racial ou a desigualdade social, também já inspiraram algumas de suas composições. Iyer acredita que sua música deve refletir sobre a época em que vivemos, sem ser panfletária.

“Voltem amanhã. O show vai ser diferente”, convidou o pianista, com um sorriso de quem sente que fez bem o seu trabalho, depois que os aplausos eufóricos da plateia o obrigaram a voltar ao palco, com seus parceiros, para um bis. Se os ingressos do último show de Vijay Iyer no Sesc Jazz já não estivessem esgotados, alguns desses fãs certamente voltariam.


(Resenha escrita a convite da produção do festival Sesc Jazz. Leia outras críticas de shows desse evento, no site do Sesc SP: https://www.sescsp.org.br/online/revistas/tag/12411_CRITICAS+SESC+JAZZ)

Sesc Jazz: improvisos e humor de Stefano Bollani conquistam a plateia do festival

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Uma das melhores experiências que um festival de música pode proporcionar a uma plateia é a de ser surpreendida pela performance de um artista que ela ainda desconhece. Os sorrisos nos rostos da plateia do Sesc Jundiaí, ao final do show do pianista Stefano Bollani, eram transparentes: muitas daquelas pessoas nem imaginaram, ao saírem de casa, que se emocionariam ou mesmo se divertiriam tanto naquela noite de sábado, que começou com um belo show do trio do pianista Salomão Soares.

Bollani vem cultivando há décadas uma prolífica paixão pela música brasileira, depois de descobrir a bossa nova quando ainda era adolescente. O resultado mais recente dessa afinidade musical é seu álbum “Que Bom” (já lançado no Brasil pelo selo Biscoito Fino), com um delicioso repertório de composições próprias, que ele exibiu em sua apresentação no festival Sesc Jazz.

“Vou tocar a música de um compositor contemporâneo, muito vivo, que sou eu”, brincou, falando à plateia, em bom português. Quem já o conhecia e teve a chance de apreciar alguns de seus discos sabe que esse jazzista nascido em Milão (ele costuma dizer que não se considera um cidadão italiano, propriamente, por acreditar que a divisão do mundo em países é artificial) jamais reproduz nos palcos o que registrou nos estúdios de gravação.

Composições como o baião “Ho Perduto il Mio Pappagalino” (inspirada pela lembrança de um periquito que fugiu de sua casa, quando ainda era menino), a quase bossa “Uomini e Polli” (tema com marcante influência de João Donato), assim como o contagiante samba “Galápagos”, ganharam um tempero mais percussivo no show. Em alguns momentos, como no samba-jazz “Olha a Brita”, Bollani chega a percutir as cordas e o próprio corpo do piano com as mãos.

“Se vocês não gostaram do que tocamos aqui, sugiro que ouçam o disco, porque ele está muito melhor”, brincou novamente, já quase ao final do show. Ele sabe que, em seu caso, não se trata de uma versão ser melhor do que a outra. São apenas diferentes – e no palco a música costuma ganhar um calor que, muitas vezes, não existe nas gravações. Mas Bollani é um músico carismático e engraçado, daqueles que jamais perdem uma oportunidade de fazer sua plateia sorrir.

Bem acompanhado pela percussão de Armando Marçal, pela bateria de Thiago da Serrinha e pelo contrabaixo de João Rafael (trio que em alguns momentos soa como uma compacta escola de samba), Bollani também oferece à plateia boas surpresas, em seus improvisos. Como uma divertida releitura de “Cheek to Cheek” (de Irving Berlin), clássico da canção norte-americana, em andamento acelerado.

Mais inusitada foi a citação da canção-manifesto “Tropicália” (de Caetano Veloso), ao improvisar o clássico choro “Segura Ele”. “Eu gostaria de ter composto essa música. Pixinguinha e eu tivemos a mesma ideia, mas ele nasceu antes de mim”, disparou Bollani, com a maior cara de pau, arrancando risos da plateia.

Ao voltar ao palco para atender os pedidos de bis, cantou a lírica “La Nebbia a Napoli” (“Caetano Veloso não está aqui, então eu mesmo vou canta-la”, brincou), mas ainda reservou outra surpresa. Tocou o choro “Tico-tico no Fubá” (de Zequinha de Abreu), convidando a plateia a participar com palmas, em uma versão tão maluca e hilariante, que chegou a lembrar as estripulias de Chico, o pianista dos comediantes irmãos Marx, nas telas do cinema. A plateia de Jundiaí não vai esquecer dessa noite tão cedo.


(Resenha escrita a convite da produção do festival Sesc Jazz. Leia outras críticas de shows desse evento, no site do Sesc SP: https://www.sescsp.org.br/online/revistas/tag/12411_CRITICAS+SESC+JAZZ)



Sesc Jazz: trompetista Charles Tolliver cultiva legado musical do bebop e do hard bop

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A boina preta, em estilo militar europeu, é sugestiva. O trompetista e compositor norte-americano Charles Tolliver nem precisa tocar uma nota para que sua afinidade musical com a revolucionária geração do bebop (responsável pela introdução do jazz em sua fase moderna) seja notada por quem o vê entrar no palco. A semelhança com as boinas que Dizzy Gillespie, Thelonious Monk e outros beboppers usavam no final dos anos 1940 não é gratuita.

Atração da quarta noite do festival Sesc Jazz, Tolliver e seu afiado quinteto cativaram a atenção da plateia paulistana que foi à comedoria do Sesc Pompeia, na noite de sexta-feira (17/8). Quem está acostumado aos shows dançantes, que são realizados com frequência nesse espaço, encontrou uma atmosfera mais adequada à música que iria ouvir: a iluminação nebulosa e as mesas instaladas à frente do palco permitiram que a plateia pudesse se sentir em um clube de jazz.

De uma geração musical posterior à de seus ídolos do bebop, o autodidata Tolliver (hoje com 76 anos) ainda teve tempo para tocar e gravar com alguns deles, como o grande baterista Max Roach ou o saxofonista Jackie McLean, na década de 1960. Precoce, aos 17 anos já participava de jam sessions, em clubes do Harlem, o mítico bairro negro de Nova York.

O conhecimento musical e a experiência que acumulou ao longo de seis décadas de carreira profissional se refletem no som denso e compacto de seu quinteto. Além do guitarrista Bruce Edwards, do contrabaixista Devin Starks e do baterista Darrell Green, ótimos músicos que já o acompanham há alguns anos, conta ainda com o talento do pianista Keith Brown.

Tolliver abriu o show com dois temas curtos e rítmicos, característicos do efervescente hard bop dos anos 1950 e 1960, acompanhados por longos improvisos dos músicos do grupo. Nos solos, suas frases também são breves e bem acentuadas, com células melódicas que, repetidas por diversas vezes, levam a um enérgico crescendo.

Numa das poucas vezes em que se dirigiu à plateia, com seu vozeirão rouco, o trompetista provocou risadas. Ao introduzir sua composição “Emperor March”, inspirada pelo popular documentário “A Marcha dos Pinguins”, não só fez questão de esboçar uma sinopse do filme, como imitou um desengonçado pinguim. Mais engraçado, no entanto, é o fato de que, se não tivesse feito essa referência, ninguém poderia imaginar que o contagiante tema que tocou – na linha do soul-jazz dos anos 1960 – teria algo a ver com o filme.

Quando repete em entrevistas que costuma evitar os caminhos musicais mais fáceis, Tolliver não está fazendo jogo de cena: isso é evidente em seus solos. No entanto, nem essa vontade constante de inovar pode justificar a infeliz releitura de “Round Midnight” que tocou quase ao final do show – capaz de fazer Thelonious Monk, seu autor, revirar-se no túmulo. Desfigurar a melodia de uma das baladas mais belas de todos os tempos, e ainda acelerar seu andamento, jamais será uma boa ideia para um arranjo dessa composição. Porém, como errar é humano, melhor esquecermos esse deslize eventual e ficarmos com a memória dos excitantes temas e improvisos que Tolliver e seu quinteto já tinham apresentado.


(Resenha escrita a convite da produção do festival Sesc Jazz. Leia outras críticas de shows desse evento, no site do Sesc SP: https://www.sescsp.org.br/online/revistas/tag/12411_CRITICAS+SESC+JAZZ)


Sesc Jazz: um quarteto inspirador e suas releituras de canções de Dorival Caymmi

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                                                                       Mehmari, Stroeter, Tutty e Proveta, no Sesc Jundiaí 


 A plateia de Jundiaí pode se considerar privilegiada. Primeira atração do festival Sesc Jazz nessa cidade paulista, um quarteto exibiu, em primorosas releituras instrumentais de canções do mestre Dorival Caymmi (1914-2008), um grau de inventividade, liberdade e coesão, que só os melhores grupos desse gênero musical são capazes de alcançar. 

“A música do Dorival nos faz navegar. Ela nos leva ao Sol, nos leva para a Lua”, disse o contrabaixista Rodolfo Stroeter, logo ao início da noite da última quarta-feira (15/8), preparando a plateia para acompanhar as inspiradoras viagens sonoras do grupo.

A escolha da radiante versão do samba “MiIagre”, para abrir o show, não é gratuita. Com a experiência que acumulam em décadas de carreira, Tutty Moreno (bateria), Nailor “Proveta” Azevedo (sax alto e clarinete), André Mehmari (piano) e Stroeter (baixo acústico) têm consciência de como é rara a química musical que os une.

“Temos muita sorte. Isso é um milagre que aconteceu na vida da gente”, reconheceu Proveta, emocionado, já quase ao final do show. A própria trajetória do quarteto é incomum: formado em 1998, para gravar o álbum “Forças D’Alma” (hoje um clássico da música instrumental brasileira), o grupo só se reencontrou eventualmente, até gravar o álbum “Dorival”, no ano passado.

Em meio a tantas belezas musicais, chama especial atenção o fato de os improvisos do quarteto serem tecidos de maneira essencialmente coletiva. Nada a ver com o hierárquico ritual de grupos de jazz mais tradicionais, cujos músicos cumprem a função de estender o tapete harmônico e rítmico para que o solista desfile, como centro das atenções.

Um dos arranjos mais inusitados é o de “Samba da Minha Terra”. Na introdução, o sax alto remete, com humor, ao clássico “Voo do Besouro” (de Rimsky-Korsakov). Proveta e Mehmari se divertem, brincando com a melodia, num toma-lá-dá-cá hilariante.

Já na dramática “Sargaço Mar”, Tutty demonstra toda sua sensibilidade musical, ao colorir com os sons de seus tambores e pratos as intervenções do piano e do sax alto. Aliás, quem conhece o estilo desse mestre da bateria sabe que ele é capaz de extrair melodias de seu instrumento. Isso mesmo, Tutty é um baterista melódico e criativo, como muito poucos.

Pensando bem, esse quarteto é uma síntese do que já se produziu de melhor na música instrumental brasileira das últimas décadas. Ainda no final dos anos 1970, Stroeter foi um dos criadores do cultuado grupo Pau Brasil, que segue na ativa, em sua melhor forma. Proveta lidera há duas décadas e meia a sensacional Banda Mantiqueira. E Mehmari, mesmo mais jovem que seus parceiros, já se consagrou como um dos grandes instrumentistas e compositores do país.

Não posso falar por toda a plateia de Jundiaí, mas tenho certeza de que muitos, como eu, devem ter saído do show de ontem com um certo orgulho. Em meio à devastadora crise que nosso país enfrenta, essa música brasileira tocada com tanta inventividade e beleza é capaz de nos deixar um pouco mais otimistas. Talvez o Brasil ainda tenha jeito.


(Resenha escrita a convite da produção do festival Sesc Jazz. Leia outras críticas de shows desse evento, no site do Sesc SP: https://www.sescsp.org.br/online/revistas/tag/12411_CRITICAS+SESC+JAZZ)

Stefano Bollani: pianista italiano cultiva paixões pelo jazz e pela MPB no CD 'Que Bom'

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                                                                                     Foto de Valentina Cenni/Divulgação

A paixão de Stefano Bollani pela música brasileira, tudo indica, não vai esfriar tão cedo. O pianista italiano descobriu a cadência do samba ainda na adolescência e agora, aos 45 anos, lança o álbum “Que Bom”, com participações especiais de Caetano Veloso e João Bosco, além de uma compacta seleção de craques da música instrumental brasileira. 

Um dos músicos europeus de maior prestígio na cena atual do jazz, Bollani tem reforçado durante a última década sua intimidade com as harmonias e os ritmos do Brasil. Em 2007, gravou o álbum “Carioca” no Rio, com músicos locais. Já em 2013, dividiu o CD “O Que Será” com o bandolinista Hamilton de Holanda, que também está no novo disco do italiano. 

“Hoje eu sei que existe muita música brasileira que eu ainda não conheço”, diz Bollani, com certa modéstia, falando à Folha por telefone. Quando a conversa se volta para os pianistas brasileiros que admira, por exemplo, ele desfia uma lista extensa: de mestres do choro, como Radamés Gnattali e Carolina Cardoso de Menezes, a expoentes de nossa moderna música instrumental, como João Donato e César Camargo Mariano.

Bollani já tocava piano, aos 15 anos, quando ouviu o clássico disco de bossa nova que João Gilberto gravou com o jazzista Stan Getz (“Getz/Gilberto”, 1963). “Me apaixonei pelas harmonias, parecidas com as do bebop e as do cool jazz, das quais eu já gostava muito”, relembra, em bom português.

“Mais tarde, quando fui ao Brasil para gravar meu disco ‘Carioca’, encontrei o choro, o samba, o forró e outras músicas brasileiras”, diz o italiano, que fez questão de voltar a tocar com Armando Marçal (percussão), Jurim Moreira (bateria) e Jorge Helder (baixo), nas gravações de “Que Bom” (selo Alobar/Biscoito Fino). Esse mesmo trio vai acompanha- lo na turnê de lançamento, além de Thiago da Serrinha (percussão).

No repertório de seu saboroso álbum, Bollani exibe 14 composições próprias, quase todas instrumentais. Inclui também a conhecida “Nação” (de João Bosco, Paulo Emílio e Aldir Blanc), cantada pelo próprio Bosco, e “Michelangelo Antonioni”, que Caetano Veloso, o autor, interpreta em italiano.

“Adoro Caetano cantando em italiano. Ele pode até cantar os itens de uma lista telefônica que eu vou gostar”, brinca o pianista. “No projeto original, ele iria cantar outras coisas em português, mas, na véspera da gravação, escrevi uma letra para a instrumental ‘La Nebbia a Napoli’. Caetano gostou, aprendeu rapidamente e a gravou”.

Bollani lança seu álbum nesta terça (14/8), no Bourbon Street, em São Paulo. Depois toca em Belo Horizonte (15/8) e faz duas apresentações pelo festival Sesc Jazz, no interior paulista, em Ribeirão Preto (17/8) e Jundiaí (18/8). Também toca em Brasília (20/8) e no Rio (21/8).

“Nos shows, tudo é mais improvisado do que no disco. É um grande prazer estar no palco com esses músicos incríveis. Ainda quero tocar muito com eles”, diz o italiano, que voltará a se apresentar com sua banda carioca, na Europa, em novembro.

Bourbon Street Music Club (r. dos Chanés, 194, Moema). Terça (14/8), às 21h30. Couvert artístico: de R$ 95,00 a R$ 150,00. 

(Texto publicado parcialmente na "Folha de S. Paulo", em 14/8/2018)







Dom Salvador: pianista radicado em Nova York vai festejar seus 80 anos em São Paulo

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Quando desembarcou nos Estados Unidos, em 1973, o pianista Dom Salvador tinha planejado passar um mês de férias, na casa de uma sobrinha, em Nova York. Reconhecido nos meios musicais da época como um dos expoentes do samba-jazz e experiente músico de estúdio, ele teve enfim a oportunidade de frequentar pela primeira vez os clubes de jazz daquela metrópole. Queria se aprofundar mais no gênero musical que tanto admirava.

Salvador nem imaginava que se tornaria morador de Nova York, onde passou a maior parte de sua vida. Uma parceria com o saxofonista Charlie Rouse (ex-parceiro do genial pianista Thelonious Monk) marcou o início da série de gravações e apresentações que o brasileiro veio a fazer com outros craques do jazz, como Ron Carter, Eddie Gómez e Herbie Mann. Já o convite para assumir a função de diretor musical do cantor e ator Harry Belafonte, em 1977, rendeu a Salvador o visto de permanência nos Estados Unidos.

Assim, passou 30 anos sem se apresentar em palcos brasileiros. Em 2003, quando o Chivas Jazz Festival decidiu homenageá-lo, entusiasmadas plateias de São Paulo e Rio deixaram claro que não queriam mais passar tanto tempo sem ouvir o original samba-jazz e a música instrumental brasileira de Salvador.

“Foram duas noites inesquecíveis. Como eu estava distante do país há muito tempo, já nem esperava encontrar tanta gente interessada em minha música”, relembra o pianista, que desde então voltou a tocar e a gravar no Brasil com alguma frequência. Mais sorte têm os nova-iorquinos, que podem ouvi-lo cinco vezes por semana, há mais de 40 anos, no River Café – sofisticado restaurante às margens do East River.

Às vésperas de completar 80 anos, ele vai festejar essa data especial (12/9) no Brasil. Durante o mês de agosto fará apresentações no Festival Sesc Jazz (dias 25 e 26/9, no Sesc Pompeia, na capital paulista; e dias 22 e 24/8, respectivamente, nas unidades de Birigui e Piracicaba, no interior de São Paulo). Ao lado de Salvador estarão Daniel D’Alcântara (trompete), Jorginho Neto (trombone), Rodrigo Ursaia (sax e flauta), Sérgio Barrozo (contrabaixo) e Mauricio Zottarelli (bateria).

Ele abre um sorriso ao falar sobre o recente lançamento do álbum “Duduka da Fonseca Trio Plays Dom Salvador” (selo Sunnyside), com 11 de suas composições no repertório. Baterista e seu antigo parceiro que também vive em Nova York, Fonseca revisita nesse disco clássicos da obra de Salvador, como a balada “Mariá” ou os sambas “Tematrio” e “Meu Fraco é Café Forte”, ao lado do pianista David Feldman e do contrabaixista Guto Wirtti.   


“Eu me sinto orgulhoso por Duduka ter realizado esse projeto. Ele conhece todas as nuances de minhas músicas e, de certo modo, me tirou do ostracismo em matéria de composição”, comenta Salvador, que calcula ter mais de 300 composições próprias na gaveta. “Sempre compus bastante, mas nunca insisti nisso”, admite, com humildade.

Salvador também elogia o talento do pianista David Feldman, com o qual já gravou um álbum, ainda inédito, com duos de pianos. “David é um músico excelente. Ele foi muito cuidadoso durante essas gravações com o trio do Duduka. Ligava para mim quando tinha dúvidas nas partituras, até enriqueceu algumas de minhas composições. Fiquei muito feliz ao ouvir esse disco”.   


Outra gravação que estará disponível em breve, liderada pelo próprio Salvador, registra a apresentação que ele fez em novembro de 2015, no Zankel Hall, salão de recitais do Carnegie Hall, em Nova York. Trata-se de um concerto comemorativo dos 50 anos do Rio 65 Trio, cultuado grupo liderado por Salvador, que deixou apenas dois álbuns gravados.   

Na resenha desse concerto, publicada pelo “The New York Times”, o crítico Ben Ratliff apontou a “boa forma” de Salvador, além de sintetizar com precisão seu original estilo ao piano: “samba na mão esquerda e fraseado de jazz na mão direita”. Ao lado do pianista estavam o contrabaixista Sergio Barrozo, integrante da formação original do Rio 65 Trio, e Duduka da Fonseca, que assumiu o lugar de Édison Machado (1934-1990), sua grande fonte de inspiração à bateria.  

Apesar da costumeira modéstia, Salvador tem consciência de que seu estilo ao piano é praticamente uma assinatura. Lembra-se da reação do antigo parceiro Sergio Barrozo, quando gravaram o álbum “Dom Salvador Trio” (Biscoito Fino, 2007), seu primeiro disco produzido e lançado no Brasil depois de 35 anos. “Logo no primeiro ensaio, o Sergio me disse que já tinha se esquecido de que ninguém toca samba como eu toco”, conta, rindo.

Nada mais natural para um paulista nascido na interiorana cidade de Rio Claro, que se tornou conhecido nas mais badaladas boates paulistanas, ainda no início dos anos 1960. Já vivendo no Rio, em 1964, não demorou a chamar atenção nas “jam sessions” e nos shows do Beco das Garrafas, reduto da bossa nova, onde tocou ao lado de Jorge Ben e Elis Regina, entre outros.

Os fãs mais jovens de Salvador também valorizam o pioneirismo de seu grupo Abolição, marco na história da black music produzida no Brasil. Por sugestão do produtor Hélcio Milito (baterista do lendário Tamba Trio), ele criou em 1970 um grupo formado exclusivamente por músicos negros, para participar do Festival Internacional da Canção. As roupas africanas e os pés descalços dos integrantes do grupo causaram impacto, numa época em que o movimento “black power” chamava atenção, nos Estados Unidos.

“Em entrevistas, chegavam a nos perguntar se o nosso grupo tinha alguma tendência racista. Hoje eu tenho uma certa vergonha por ter chamado o grupo de Abolição, mas naquela época esse termo parecia fazer sentido”, comenta Salvador, reconhecendo uma certa ingenuidade na maneira como a questão racial ainda era abordada no país, na década de 1970.

Já em relação ao aspecto mais musical do Abolição, vale notar que Salvador aderiu às influências da black music que estavam em voga na época, mas não abriu mão de suas raízes. No repertório do único álbum do grupo, “Som, Sangue e Raça” (CBS, 1971), ao lado do emergente samba-soul (que mais tarde veio a inspirar a criação da Banda Black Rio) também havia pitadas de baião e choro.  

Embora ressalte que, mesmo na fase do Abolição, jamais se envolveu diretamente com política ou alguma forma de ativismo, Salvador se mostra preocupado ao ver no noticiário manifestações pela volta do regime militar no Brasil. “Essas pessoas que estão pedindo a volta dos militares ao poder não sabem o que realmente se passou no país durante aquela época. Ver que isso está acontecendo hoje no Brasil provoca até arrepios”, comenta.


(Texto para o caderno de cultura do jornal "Valor", publicado em 6/7/2018)







 

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