Rafa Clarim: CD "Inconstante" destaca estreia promissora do saxofonista paulista

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Ao apresentar composições próprias, no encarte de seu primeiro disco como solista, o saxofonista Rafa Clarim fez questão de comentar cada uma delas, chamando atenção para a capacidade que a música instrumental tem de evocar imagens, de narrar estórias. “Cada música possui um motivo, um filme a ser visto. Está tudo na sua mente”, comenta o músico paulista.

Nas sete faixas do álbum, Clarim revela-se não só um instrumentista expressivo, mas também um compositor inspirado. Sua bagagem jazzística (estudou na conceituada Berklee College, em Boston) transparece em composições como “O Único Caminho” e “A Relação com o Universo”, que destacam a bela sonoridade de seu sax tenor. E a romântica balada “Uma Chance Para Nós” parece talhada para frequentar telas de cinema. Bem acompanhado pelos músicos Ricardo Castellanos (piano), Célio Barros (contrabaixo) e Bruno Tessele (bateria), Rafa Clarim se destaca em uma estreia promissora.

(Resenha publicada no "Guia Folha - Livros, Discos, Filmes", em 27/06/2015)




Cesaria Evora: "Mãe Carinhosa", álbum póstumo da diva de Cabo Verde, traz faixas inéditas

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Já a compararam a grandes damas da canção universal, como a francesa Edith Piaf, a portuguesa Amália Rodrigues, a cubana Celia Cruz ou a norte-americana Billie Holiday. Ao longo de sua carreira musical ela foi chamada de “Diva dos pés descalços”, de “Rainha da morna”, até de “Bessie Smith dos Trópicos”. 

Cesaria Evora, maior estrela da música de Cabo Verde, encantou durante décadas plateias de vários continentes, com sua voz doce e expressiva, interpretando canções carregadas de melancolia. Graças a ela, a morna (modalidade cabo-verdiana de canção, que se assemelha ao fado português e ao blues norte-americano) tornou-se conhecida internacionalmente.

Para os fãs dessa grande intérprete, que lamentaram sua morte (em 17 de dezembro de 2011), o selo SESC tem uma ótima notícia: está lançando no mercado brasileiro o álbum “Mãe Carinhosa”, com gravações inéditas da cantora cabo-verdiana, realizadas entre 1997 e 2005, que ficaram de fora de seus álbuns.

Quando esse disco foi lançado na Europa, em 2013, o cabo-verdiano José da Silva (“descobridor” da cantora e produtor de seus discos) revelou à imprensa portuguesa que ele e Cesaria tinham o hábito de gravar um número maior de canções do que as necessárias para compor os álbuns. Assim tinham mais possibilidades para equilibrar os temas e ritmos do repertório de maneira harmoniosa.

O produtor contou também que se surpreendeu ao encontrar, no arquivo de sua gravadora Lusáfrica, gravações das quais nem se lembrava mais. Entre as 13 treze canções incluídas no álbum, 12 são inéditas na voz de Cesaria. A única exceção é a belíssima morna “Sentimento” (de Epifania “Tututa” Evora), que a cantora gravou, em versão diferente, no seu último álbum oficial, “Nhá Sentimento” (2009).

No repertório de “Mãe Carinhosa”, os fãs vão reencontrar veteranos compositores que Cesaria gravou em seus discos: B.Leza, expoente da canção cabo-verdiana, que assina “Dor di Sodade” e “Talvez”, duas dolentes mornas; Gregorio Gonçalves, autor da nostálgica “Caboverdeanos D’Angola”; ou Frank Cavaquinho, que assina a cáustica “Quem Tem Ódio”, canção que remete à rivalidade entre dois grupos carnavalescos de Mindelo – a cidade portuária da ilha de Cabo Verde em que Cesaria nasceu.

Também há canções de autores da nova geração cabo-verdiana, como Teofilo Chantre, autor da faixa-título do álbum, com uma saborosa influência caribenha, ou Nando Cruz, que assina a dançante “Tchon de França” e a abolerada “Esperança”. Há também um sincopado cha cha chá, “Dos Palabras” (de Humberto “Chicuco” Palomo) gravado originalmente pelo grupo mexicano Los Bribones, que Cesaria canta em espanhol. Já no restante do álbum, ela canta em crioulo cabo-verdiano, dialeto derivado do português.

Em um texto incluído no encarte de “Mãe Carinhosa”, Caetano Veloso se recorda de ter presenciado (em maio de 1994, no Teatro do SESC Pompeia, em São Paulo) o emocionante encontro de Cesaria Evora com Angela Maria – a grande cantora brasileira, que serviu de referência à cabo-verdiana durante seus anos de formação. Não foi à toa que Cesaria sempre demonstrou uma afinidade especial com o Brasil.

Mesmo que esse histórico encontro não tenha sido registrado em som e imagem, restou ao menos uma foto bastante reveladora. Ela pode ser encontrada na biografia de Cesaria, escrita pela jornalista francesa Véronique Mortaigne. Nesse retrato, Caetano aparece entre as duas cantoras, abraçando-as. Curiosamente, ele e Angela Maria sorriem, demonstrando alegria. Já Cesaria está com os olhos bem fechados, como se estivesse sentindo uma forte emoção.

Essa imagem me fez lembrar de algo que Cesaria me disse, em 2005, quando tive o privilégio de entrevista-la. Por alguma razão, o assunto caiu no carnaval brasileiro e, para minha surpresa, ela disse que gostava das folias carnavalescas. Mais que isso, afirmou que, pessoalmente, não era melancólica como as mornas que cantava nos faziam supor.

“Posso não ser muito alegre, mas triste também não sou. A alegria e a tristeza são vizinhas”, filosofou a diva dos pés descalços. Preciso dizer mais alguma coisa?


(Texto escrito a convite do Selo Sesc, por ocasião do lançamento do disco de Cesaria Evora)


Hermeto, Nenê e Arismar: reencontro na Virada Cultural foi prejudicado por som deficiente

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A longa fila em torno do Theatro Municipal, por volta da meia-noite do sábado, sinalizava uma das atrações mais disputadas da Virada Cultural. Só o carisma de Hermeto Pascoal, que completa 79 anos hoje (22/06), já seria suficiente para atrair tanta gente. Melhor: o “bruxo” alagoano iria comandar, minutos depois, um trio de gigantes da música instrumental que poucos viram tocar no Brasil.

Ele, o baixista paulista Arismar do Espírito Santo e o baterista gaúcho Nenê (antigo parceiro de Hermeto, nos anos 1960 e 70) formaram esse trio em 1993, para realizar uma turnê de 40 shows pela Europa. Ainda chegaram a fazer alguns shows pelo Brasil, em 1995, mas desde então não tocaram mais juntos, nem gravaram um disco.

A plateia que ocupou aos gritos, num instante, as 1500 poltronas do Municipal, não reclamou dos 35 minutos de atraso. Como se estivesse em um estádio de futebol, parte dela se divertiu fazendo “olas”. E ao ver Hermeto entrar no palco, ovacionou o craque dos mil instrumentos como um campeão.

Dois dias antes do show, ao se referir à música de Hermeto, o bem humorado Arismar cunhou uma expressão que também soa bem apropriada para sintetizar o que o trio ofereceu à plateia: “dinamite com dinâmica”.

Explosões criativas pipocaram durante todo o show, que começou com uma carinhosa citação de Hermeto em homenagem à cidade: “Êh São Paulo” (sucesso da dupla caipira Alvarenga e Ranchinho), seguido pelo clássico samba “Na Baixa do Sapateiro” (de Ary Barroso).

Durante a elástica releitura da bossa “Wave” (Tom Jobim), esticada por “scats” (vocalizações sem palavras) de Arismar, os sorrisos e caretas do baixista sinalizavam as liberdades que Hermeto tomou com a harmonia dessa canção, em seus improvisos.

“Este trio é muito lindo porque não gosta de ensaiar”, divertiu-se Hermeto, referindo-se aos dois parceiros, em um de seus costumeiros repentes. Também elogiou o talento do baixista Thiago do Espírito Santo, filho de Arismar, que entrou de surpresa no palco, para uma “canja”.

Pena que um incômodo ruído, no sistema de som do palco, tenha prejudicado parte da apresentação. Graças a ele, a plateia foi impedida de ouvir a bela versão da balada “Round Midnight” (de Thelonious Monk), que Hermeto esboçou e logo interrompeu, visivelmente irritado.

Não voltou a tocá-la, mas exibiu todo seu lirismo, minutos depois, em uma delicada releitura da jazzística “Autumn Leaves”. Para alegria geral, também relembrou clássicos de sua obra, como “Bebê” e “Chorinho Pra Ele", em versões cheias de rupturas melódicas, assim como o samba “Trem das Onze”, do paulista Adoniran Barbosa – revitalizados pela inventiva condução rítmica de Nenê.

Talvez a frustração provocada pela sonorização deficiente explique o fato de o trio ter feito um show relativamente curto para os padrões de Hermeto – cerca de 70 minutos, incluindo o bis, com o samba “O Morro Não Tem Vez” (Jobim e Vinicius de Moraes).

Não chegou a ser um show histórico, como se esperava, mas quem sabe seja um recomeço para um trio de músicos tão brilhantes, que poucos ouviram tocando juntos.


(Texto publicado parcialmente na "Folha de S. Paulo", em 22/06/2015)

 

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