4.º Festival BB Seguros: evento aproxima o blues e o jazz do público não-iniciado

|

                                 
O trio do violonista e compositor norte-americano Al Di Meola encerrou, já no início da noite de ontem, em São Paulo, a quarta edição do Festival BB Seguros de Blues e Jazz. Quem passou a tarde no Parque Villa-Lobos, pôde apreciar um programa musical diversificado e de boa qualidade, além de aproveitar o sol e o calor pouco comuns para um dia de inverno.

Diferentemente de outros festivais do gênero, o BB Seguros não tem a preocupação de trazer revelações ou novas tendências musicais ao país. Como já demonstrou nas edições anteriores, sua curadoria busca oferecer um cardápio musical que possa agradar a diferentes gerações, consciente de que boa parte de seu público é formada por famílias, inclusive adolescentes e crianças.

Oficinas de artes plásticas e outras atividades para os pequenos fazem parte da programação desse festival, que também conta com a música descontraída da BB Seguros Jazz Band, cuja formação decalca as típicas bandas de rua de New Orleans, com instrumentos de sopro e washboard (tábua de lavar roupa), para animar a plateia nos intervalos entre os shows.

Não foi por acaso que, no programa deste ano, o saxofonista carioca Leo Gandelman -- um dos melhores instrumentistas do país -- apresentou versões jazzísticas de clássicos dos Beatles, acompanhado pelo Julio Bittencourt Trio. Ou que a banda mineira O Bando, conhecida na cena nacional do blues, fez um show baseado no repertório do “guitar heroe” Jimi Hendrix. Essas são duas válidas tentativas de aproximar o jazz e o blues de um público não acostumado a ouvir esses gêneros musicais.

Já o blues tradicional esteve bem representado neste ano pelo cantor e guitarrista Lil’ Jimmy Reed, veterano bluesman da Louisiana. Mais eclético foi o show do baiano Pepeu Gomes, craque da guitarra de prestígio internacional, que também homenageou Hendrix e fechou seu show com uma versão roqueira do clássico choro “Tico-Tico no Fubá” (de Zequinha de Abreu), com direito a uma inusitada citação da hispânica “Granada”.

Fechando a noite, Al Di Meola aproveitou a ocasião para exibir composições próprias extraídas de seu álbum “Opus”, recém-lançado no mercado internacional. A seu lado, o acordeonista Fausto Beccalossi e o pianista cubano Kemuel Roig compõem um trio acústico de formação incomum. Talvez esse repertório tenha decepcionado alguns fanáticos pela fase eletrificada de Di Meola, mas até eles devem admitir que assistir a um concerto de um dos mais conceituados violonistas da cena da “world music”, sem gastar um centavo, tem o valor de um presente especial.

Sesc Jazz: novo festival mantém a diversidade e a alta qualidade do Jazz na Fábrica

|

                                                              O pianista cubano Omar Sosa, atração do festival Sesc Jazz 

Dois dos melhores festivais brasileiros dedicados ao jazz e à música instrumental se uniram. O Sesc Jazz estreia em agosto, somando a experiência de sete edições do festival paulistano Jazz na Fábrica com os seis anos do Sesc Jazz & Blues, realizado em várias cidades do interior paulista. Quem já se acostumou a frequentar esses eventos anuais pode ficar tranquilo, pois a linha da curadoria é a mesma: diversidade e alta qualidade musical, em uma programação com 22 atrações internacionais e nacionais.

Os shows do Sesc Jazz serão realizados durante três semanas (de 14/8 a 2/9), em oito unidades do Sesc paulista: Pompeia (na capital, que vai receber o maior número de atrações), além das unidades interioranas de Araraquara, Birigui, Campinas, Jundiaí, Piracicaba, Ribeirão Preto e Sorocaba. A programação já está disponível no portal do Sesc (www.sescsp.org.br/programacao/161482_SESC+JAZZ+2018#/content=programacao). A venda de ingressos começa no dia 26/7, pelo portal, e no dia seguinte também nas bilheterias das unidades do Sesc SP.

Quem abre essa maratona musical, no Sesc Pompeia (dias 14 e 15/8), é o veterano guitarrista norte-americano James “Blood” Ulmer e sua eletrizante fusão de jazz de vanguarda, funk e blues. Além de trazer a Memphis Blood Blues Band, Ulmer também terá a companhia de outro gigante da guitarra: Vernon Reid (líder da banda de funk-metal Living Colour), em participação especial.

Vários estilos de jazz estão representados no cardápio desse festival: o hard bop do trompetista norte-americano Charles Tolliver; o jazz mainstream da pianista canadense Renee Rosnes; as fusões eletrificadas do tecladista nova-iorquino Jason Lindner; o free jazz do saxofonista norte-americano Archie Shepp (na foto baixo), que fará um tributo a seu mentor John Coltrane (1926-1967). E para quem gosta de jazz de vanguarda e/ou experimental, há ainda três craques dessa vertente: o pianista Vijay Iyer (norte-americano de ascendência indiana), o saxofonista Henry Threadgill e o guitarrista (inglês) Fred 
Frith.

Outras atrações comprovam que, ao ser cultivado nos mais diversos cantos do mundo, o jazz se se tornou uma linguagem universal. Isso é evidente na música do pianista Isfar Sarabski (da pequena República do Azerbaijão, entre a Ásia e a Europa), que funde a música folclórica de seu país com elementos do jazz moderno. Já o pianista italiano Stefano Bollani, além de ser um dos mais criativos jazzistas de seu país, cultiva uma íntima relação com a música popular brasileira, exibida em vários de seus discos. 

Diversos gêneros musicais convivem no repertório da cantora espanhola Buika, cujas referências vão do flamenco ao jazz, passando pelo blues, pelo soul e pelo bolero. Multifacetada também é a música do pianista cubano Omar Sosa, que combina a linguagem do jazz com os ritmos afro-cubanos, em meio a influencias da música clássica ou mesmo da música pop.

O Brasil também está muito bem representado nesse festival. A começar pelo brilhante quarteto formado por Tutty Moreno (bateria), Rodolfo Stroeter (contrabaixo), Nailor Proveta (saxofone e clarinete) e André Mehmari (piano), que recria populares canções do mestre baiano Dorival Caymmi.

Outro destaque é o sexteto do pianista e compositor Dom Salvador, paulista radicado há mais de 40 anos em Nova York. Expoente do samba-jazz, ele volta ao país para comemorar seus 80 anos. O elenco nacional inclui ainda o septeto do baixista Itiberê Zwarg (que vai lançar um novo disco pelo Selo Sesc), o pianista paraibano Salomão Soares e o guitarrista paulistano Lourenço Rebetez.


Orquestra Mundana Refugi: imigrantes e refugiados se unem a músicos brasileiros

|

                                                                                                  Músicos da Orquestra Mundana Refugi

Não poderia ser mais oportuno o lançamento do primeiro disco da Orquestra Mundana Refugi. Ver músicos refugiados e imigrantes de diversos países se unirem a brasileiros em uma orquestra é um alento, num momento em que mães imigrantes são separadas de suas crianças, nos Estados Unidos. Ou que imigrantes continuam a morrer afogados, no Mar Mediterrâneo, ao buscarem refúgio na Europa.

Por essas e outras razões foi emocionante o concerto da Orquestra Mundana Refugi, ontem, no teatro do Sesc Vila Mariana, em São Paulo. Além de apresentar o original repertório do CD (lançamento do Selo Sesc), a orquestra surpreendeu a plateia com uma criativa versão de “As Caravanas” -- a perturbadora canção de Chico Buarque, que descreve o medo e o preconceito social da classe média frente aos moradores da periferia do Rio de Janeiro, quando eles se atrevem a frequentar as praias da zona sul.

O encanto dessa orquestra cosmopolita não está apenas no fato de incluir em seu repertório músicas tradicionais de diversos países, mas especialmente no diálogo musical que o diretor e multi-instrumentista Carlinhos Antunes promove em suas composições e arranjos. Como em “Trilogia”, que mistura melodias tradicionais da Palestina, do Irã e da Andaluzia com “Cajuína” (a bela canção de Caetano Veloso). Ou em “Barqueiros do Rio” (parceria de Antunes com Mauro Iasi) que inclui temas originários do Haiti e da Bahia.

Como não pensar em uma estimulante utopia, ao ouvir instrumentos musicais que não existem na tradição brasileira (como o bouzouki do palestino Yousef Saif ou o kemanche do iraniano Arash Azadeh) serem misturados aos saxofones do cubano Luis Cabrera e aos vocais da moçambicana Lenna Bahule e do congolês Hidras Tuale?

Ao demonstrar que músicos de culturas bem diversas podem conviver de maneira tão harmônica, Carlinhos Antunes e seus 22 parceiros dão um exemplo de humanidade, um pouco de esperança para quem não se conforma com um mundo marcado por tantos preconceitos e desigualdades. A música da Orquestra Mundana Refugi emociona e faz refletir. 






Joyce Moreno: compositora e cantora recria sua estreia fonográfica no álbum "50"

|


Joyce Moreno pôs em prática uma ideia inusitada. Para comemorar seus 50 anos de carreira, a cantora e violonista decidiu recriar todo o repertório de “Joyce”, seu disco de estreia, gravado no lendário ano de 1968. O resultado desse projeto está no álbum “50” -- lançado em São Paulo, no último final de semana, com shows no Sesc Belenzinho.

O primeiro disco de Joyce já trazia composições próprias, como o irreverente samba “Não Muda Não” e a polêmica canção “Me Disseram” (cuja letra causou celeuma, na época, por utilizar o termo “meu homem”). O repertório incluía também composições de Paulinho da Viola (“Ansiedade”), Marcos Valle e Ruy Guerra (“Bloco do Eu Sozinho”), entre outros jovens colegas de geração da cantora.

Agora Joyce acrescenta àquelas 11 canções a bela “Com o Tempo” (recente parceria com Zélia Duncan), que surge logo ao início do show como um poético flashback. “Com o tempo /Fui ficando mais moça /Mais olhos, menos onça /Mais tempo, menos hora /Fui ficando mais agora /Menos por aí o desejo”, refletem os versos de Zélia.

Formada numa época em que canções também eram usadas para se questionar injustiças e desigualdades, Joyce tem incluído no roteiro de seus shows o samba-afro “Canto de Iansã" (de Ildásio Tavares e Baden Powell). Com ele faz um oportuno desagravo à cultura e às religiões afro-brasileiras, que têm sofrido ataques do atual dublê de pastor e prefeito do Rio e de seus seguidores.

Joyce também não perde a chance de relembrar que sua canção “Superego” foi alvo de preconceito, em 1968. Um crítico-dinossauro chegou a escrever que se tratava de uma “grande música”, mas achava difícil acreditar que ela tivesse sido composta por uma mulher.

Ver e ouvir Joyce, no palco, é uma experiência inspiradora. Além do evidente prazer que exibe ao cantar e tocar seu violão, ela faz questão de apresentar e contextualizar quase todas as canções do show, estabelecendo assim um contato mais direto e enriquecedor com a plateia.

Depois de se ouvir o delicioso samba-jazz “Mingus, Miles & Coltrane”, outra composição da cantora que também faz parte do show, é fácil entender os frequentes sorrisos de Tutty Moreno (bateria), Rodolfo Stroeter (baixo) e Tiago Costa (piano), craques que costumam acompanha-la nos palcos e gravações. Que instrumentista não adoraria tocar com uma “cantautora” tão musical, sensível, bem-humorada e ainda fã do jazz como Joyce?




Dom Salvador: pianista radicado em Nova York vai festejar seus 80 anos em São Paulo

|


Quando desembarcou nos Estados Unidos, em 1973, o pianista Dom Salvador tinha planejado passar um mês de férias, na casa de uma sobrinha, em Nova York. Reconhecido nos meios musicais da época como um dos expoentes do samba-jazz e experiente músico de estúdio, ele teve enfim a oportunidade de frequentar pela primeira vez os clubes de jazz daquela metrópole. Queria se aprofundar mais no gênero musical que tanto admirava.

Salvador nem imaginava que se tornaria morador de Nova York, onde passou a maior parte de sua vida. Uma parceria com o saxofonista Charlie Rouse (ex-parceiro do genial pianista Thelonious Monk) marcou o início da série de gravações e apresentações que o brasileiro veio a fazer com outros craques do jazz, como Ron Carter, Eddie Gómez e Herbie Mann. Já o convite para assumir a função de diretor musical do cantor e ator Harry Belafonte, em 1977, rendeu a Salvador o visto de permanência nos Estados Unidos.

Assim, passou 30 anos sem se apresentar em palcos brasileiros. Em 2003, quando o Chivas Jazz Festival decidiu homenageá-lo, entusiasmadas plateias de São Paulo e Rio deixaram claro que não queriam mais passar tanto tempo sem ouvir o original samba-jazz e a música instrumental brasileira de Salvador.

“Foram duas noites inesquecíveis. Como eu estava distante do país há muito tempo, já nem esperava encontrar tanta gente interessada em minha música”, relembra o pianista, que desde então voltou a tocar e a gravar no Brasil com alguma frequência. Mais sorte têm os nova-iorquinos, que podem ouvi-lo cinco vezes por semana, há mais de 40 anos, no River Café – sofisticado restaurante às margens do East River.

Às vésperas de completar 80 anos, ele vai festejar essa data especial (12/9) no Brasil. Durante o mês de agosto fará apresentações no Festival Sesc Jazz (dias 25 e 26/9, no Sesc Pompeia, na capital paulista; e dias 22 e 24/8, respectivamente, nas unidades de Birigui e Piracicaba, no interior de São Paulo). Ao lado de Salvador estarão Daniel D’Alcântara (trompete), Jorginho Neto (trombone), Rodrigo Ursaia (sax e flauta), Sérgio Barrozo (contrabaixo) e Mauricio Zottarelli (bateria).

Ele abre um sorriso ao falar sobre o recente lançamento do álbum “Duduka da Fonseca Trio Plays Dom Salvador” (selo Sunnyside), com 11 de suas composições no repertório. Baterista e seu antigo parceiro que também vive em Nova York, Fonseca revisita nesse disco clássicos da obra de Salvador, como a balada “Mariá” ou os sambas “Tematrio” e “Meu Fraco é Café Forte”, ao lado do pianista David Feldman e do contrabaixista Guto Wirtti.   


“Eu me sinto orgulhoso por Duduka ter realizado esse projeto. Ele conhece todas as nuances de minhas músicas e, de certo modo, me tirou do ostracismo em matéria de composição”, comenta Salvador, que calcula ter mais de 300 composições próprias na gaveta. “Sempre compus bastante, mas nunca insisti nisso”, admite, com humildade.

Salvador também elogia o talento do pianista David Feldman, com o qual já gravou um álbum, ainda inédito, com duos de pianos. “David é um músico excelente. Ele foi muito cuidadoso durante essas gravações com o trio do Duduka. Ligava para mim quando tinha dúvidas nas partituras, até enriqueceu algumas de minhas composições. Fiquei muito feliz ao ouvir esse disco”.   


Outra gravação que estará disponível em breve, liderada pelo próprio Salvador, registra a apresentação que ele fez em novembro de 2015, no Zankel Hall, salão de recitais do Carnegie Hall, em Nova York. Trata-se de um concerto comemorativo dos 50 anos do Rio 65 Trio, cultuado grupo liderado por Salvador, que deixou apenas dois álbuns gravados.   

Na resenha desse concerto, publicada pelo “The New York Times”, o crítico Ben Ratliff apontou a “boa forma” de Salvador, além de sintetizar com precisão seu original estilo ao piano: “samba na mão esquerda e fraseado de jazz na mão direita”. Ao lado do pianista estavam o contrabaixista Sergio Barrozo, integrante da formação original do Rio 65 Trio, e Duduka da Fonseca, que assumiu o lugar de Édison Machado (1934-1990), sua grande fonte de inspiração à bateria.  

Apesar da costumeira modéstia, Salvador tem consciência de que seu estilo ao piano é praticamente uma assinatura. Lembra-se da reação do antigo parceiro Sergio Barrozo, quando gravaram o álbum “Dom Salvador Trio” (Biscoito Fino, 2007), seu primeiro disco produzido e lançado no Brasil depois de 35 anos. “Logo no primeiro ensaio, o Sergio me disse que já tinha se esquecido de que ninguém toca samba como eu toco”, conta, rindo.

Nada mais natural para um paulista nascido na interiorana cidade de Rio Claro, que se tornou conhecido nas mais badaladas boates paulistanas, ainda no início dos anos 1960. Já vivendo no Rio, em 1964, não demorou a chamar atenção nas “jam sessions” e nos shows do Beco das Garrafas, reduto da bossa nova, onde tocou ao lado de Jorge Ben e Elis Regina, entre outros.

Os fãs mais jovens de Salvador também valorizam o pioneirismo de seu grupo Abolição, marco na história da black music produzida no Brasil. Por sugestão do produtor Hélcio Milito (baterista do lendário Tamba Trio), ele criou em 1970 um grupo formado exclusivamente por músicos negros, para participar do Festival Internacional da Canção. As roupas africanas e os pés descalços dos integrantes do grupo causaram impacto, numa época em que o movimento “black power” chamava atenção, nos Estados Unidos.

“Em entrevistas, chegavam a nos perguntar se o nosso grupo tinha alguma tendência racista. Hoje eu tenho uma certa vergonha por ter chamado o grupo de Abolição, mas naquela época esse termo parecia fazer sentido”, comenta Salvador, reconhecendo uma certa ingenuidade na maneira como a questão racial ainda era abordada no país, na década de 1970.

Já em relação ao aspecto mais musical do Abolição, vale notar que Salvador aderiu às influências da black music que estavam em voga na época, mas não abriu mão de suas raízes. No repertório do único álbum do grupo, “Som, Sangue e Raça” (CBS, 1971), ao lado do emergente samba-soul (que mais tarde veio a inspirar a criação da Banda Black Rio) também havia pitadas de baião e choro.  

Embora ressalte que, mesmo na fase do Abolição, jamais se envolveu diretamente com política ou alguma forma de ativismo, Salvador se mostra preocupado ao ver no noticiário manifestações pela volta do regime militar no Brasil. “Essas pessoas que estão pedindo a volta dos militares ao poder não sabem o que realmente se passou no país durante aquela época. Ver que isso está acontecendo hoje no Brasil provoca até arrepios”, comenta.


(Texto para o caderno de cultura do jornal "Valor", publicado em 6/7/2018)







John Coltrane: álbum inédito do saxofonista ainda soa perturbador 55 anos depois

|

                                                    O saxofonista e compositor John Coltrane / Foto de Bob Thiele

Para quem não está familiarizado com a obra de John Coltrane (1926-1967), a revelação de 14 gravações inéditas desse saxofonista e compositor, reunidas no álbum “Both Directions at Once: The Lost Album” (lançamento Impulse!, no mercado internacional), poderia ser comparada à descoberta de uma coleção de pinturas de Pablo Picasso. Em outras palavras, um pequeno tesouro para os apreciadores do jazz. 

Trata-se de material inédito do músico de jazz mais cultuado e imitado nas últimas cinco décadas, à frente de um dos quartetos mais perfeitos e inovadores na história desse gênero musical. Ao lado do sax tenor e do sax soprano de Coltrane, também brilham o piano inventivo de McCoy Tyner, a explosiva bateria de Elvin Jones e o contrabaixo propulsor de Jimmy Garrison.

Mesmo que essas gravações soem aquém de consagradas obras-primas de Coltrane, como as que integram seus álbuns “A Love Supreme” (1965), “Giant Steps” (1960) ou “My Favorite Things” (1961), isso não impede que o impacto seja grande, ainda mais no caso de ouvintes que desconhecem sua música.

Entre as duas versões lançadas do álbum (uma básica, com sete faixas, e outra ampliada com sete “takes” alternativos) a segunda oferece aos estudiosos, ou mesmo aos fãs mais curiosos, a possibilidade de se acompanhar “por dentro” um pouco do processo de criação de Coltrane e seus parceiros musicais.

Cada uma das quatro novas versões de “Impressions” (composição própria que Coltrane gravou em diversas formações, tanto em estúdio como ao vivo, durante a década de 1960) tem uma personalidade diferente, seja no andamento adotado pelos músicos, seja na maneira de improvisar.

Não à toa, o take 4 de “Impressions” transmite uma sensação de urgência, uma busca de maior liberdade rítmica e harmônica, que identifica essa fase musical do quarteto de Coltrane. Dois anos mais tarde, ao gravar o vanguardista “Ascension”, o saxofonista ingressou de forma definitiva no universo arrítmico e atonal do chamado free jazz.

O título “Both Directions at Once” (ambas as direções de uma vez) remete ao dilema musical que Coltrane enfrentava na época: entre o jazz mais convencional que praticara no passado e a atração vertiginosa pelo jazz de vanguarda, que parecia contagiá-lo mais e mais.

Curiosamente, quando as 14 faixas desse álbum foram gravadas, em 6 de março de 1963, Coltrane ainda tentava responder de alguma maneira à expectativa de Bob Thiele, produtor do selo Impulse!, no sentido de repetirem o sucesso de seu álbum “My Favorite Things” (1961). Logo no dia seguinte, ele e o quarteto entrariam no mesmo estúdio para gravar um álbum ao lado do sofisticado cantor Johnny Hartman, com um repertório de românticos clássicos da canção norte-americana, bem adequado para atingir um público mais amplo.

É possível, portanto, que as duas versões instrumentais de “Vilia” (singela canção do húngaro Franz Lehár, extraída da opereta “The Merry Widow”), reveladas agora, tenham servido de aquecimento para as gravações com Hartman. No segundo take, o lirismo da melodia ganha mais realce graças à sonoridade branda do sax soprano.

Para os ouvidos de quem já se acostumou à redundância e à falta de substância que marcam grande parte da produção musical de hoje, faixas como a encantatória “Untitled Original 11383” (composição própria que não chegou a ser batizada pelo saxofonista) ou a angustiada versão instrumental de “Nature Boy” (popular canção de Eden Ahbez) podem ser um tanto difíceis de encarar. 
Meio século após a precoce morte de Coltrane, a música desse messiânico jazzista soa ainda mais perturbadora.

(Resenha publicada no caderno "Ilustrada" da "Folha de S. Paulo", edição de 2/07/2018)




 

©2009 Música de Alma Negra | Template Blue by TNB