Confesso que, num primeiro momento, não cheguei a ficar animado ao saber que o violonista André Siqueira e o acordeonista Toninho Ferragutti gravaram um álbum com 10 valsas do lendário Garoto (1915-1955). Pensei: será que esses talentosos instrumentistas vão conseguir realizar a proeza de tornar atraente aos ouvintes de hoje um repertório tão antigo, criado quase um século atrás?
Que recursos musicais esses admiradores do grande multi-instrumentista
de cordas – paulista como eles – poderiam utilizar para conquistar a atenção das
plateias contemporâneas? Afinal, já nos acostumamos à alta intensidade sonora e
à variedade rítmica da música de hoje, que nos chacoalha e entorpece,
diariamente, por meio das plataformas de streaming, dos smartphones e canais do
YouTube.
É provável que um receio semelhante ao meu tenha passado pelas cabeças de
alguns dos felizardos que foram ao Sesc 14 Bis, na quinta-feira (3/10), para o
show de lançamento de “Valsas de Garoto”, álbum em formato digital do Selo
Sesc. Mas bastou escutar “Dias Felizes”, a doce valsa que abriu o repertório da
noite, para que a plateia começasse a ser transportada para uma época em que a
música e o lirismo costumavam andar de mãos dadas.
Autores dos arranjos do álbum, Siqueira e Ferragutti optaram por releituras: conseguiram
imprimir um sabor mais atual às valsas de Garoto, tendo o cuidado de preservar a
essência dessas composições. A maior parte do repertório é interpretada em duo de
violão e acordeom. Por outro lado, o álbum ganhou timbres adicionais com as participações
especiais de mais três craques da música instrumental: o violonista Paulo
Bellinati, grande especialista na obra de Garoto; o clarinetista Alexandre
Ribeiro e o violinista Ricardo Herz.
Foi bastante feliz a ideia de relembrar, na releitura da
valsa “Luar de Areal”, o som do cultuado Trio Surdina – grupo formado por Garoto
na década de 1950, quando teve a seu lado os talentos do violinista Fafá Lemos
e de Chiquinho do Acordeom. Tanto nessa faixa do álbum, como no show de lançamento,
Herz brilhou com seu violino, ao trazer de volta a sonoridade de Fafá, em
alguns momentos.
Outra releitura muito especial é a de “A Cruz de Ouro”, que destaca a emotiva
interpretação de Bellinati, ao violão. Já a valsa “Dugenir”, que Garoto dedicou
à sua esposa, destaca a expressividade do clarinete de Ribeiro. Mas só mesmo quem
foi ao show de lançamento, no Sesc 14 Bis, teve o privilégio de ouvir mais uma
vez a emotiva “Gente Humilde”, a composição mais popular de Garoto, interpretada
por Ferragutti, Siqueira e seus três convidados.
Tratando com carinho esse repertório do passado, Siqueira e Ferragutti utilizam
suas sensibilidades contemporâneas para realçar as belezas dessas composições. Aplausos
aos protagonistas do projeto “Valsas de Garoto” por provarem que a música
instrumental de outras épocas também pode e deve ser apreciada, se o
preconceito etarista for deixado de lado. E parabéns ao Selo Sesc por abraçar
um projeto como esse, num momento em que a diluição parece tomar conta de muitas
áreas de nossa cultura.