Filó Machado: novo álbum instrumental com melodias contagiantes e muita alegria

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                                  O violonista e compositor paulista Filó Machado - Foto de Dani Gurgel/Divulgação
 

Filó Machado vive um momento especialmente feliz e produtivo, neste final de 2024. No mesmo 20 de dezembro, dia em que seu novo álbum “Cisne Negro” vai estrear nas plataformas de streaming com canções de sua autoria em parceria com o saudoso letrista Aldir Blanc, o compositor e violonista paulista lança também “A Música Negra de Filó Machado” – álbum com 11 temas instrumentais compostos por ele desde meados da década de 1970.

O rótulo “música negra” soa bem adequado ao repertório desse disco, que reúne sambas, baiões, muito swing e improvisos jazzísticos, destacando alguns dos melhores músicos da cena instrumental de São Paulo. Depois de me deliciar ouvindo esse álbum, penso que ele também poderia se chamar “A Música Feliz de Filó Machado”, tamanhas são as doses de alegria e de prazer, que esse mestre da arte musical e sua banda de craques transmitem nessas gravações.

“Para mim, é sempre uma alegria muito grande tocar com esses músicos, porque somos amigos e a gente se diverte muito quando estamos juntos. Faço música pensando numa coisa legal, numa coisa pura. Por isso, nunca fiz sucesso”, brinca Filó, ironizando as dificuldades que enfrentou durante as duas primeiras décadas de sua carreira profissional, quando tocava em bares e boates da noite paulistana.

Reconhecido na Europa

A virada na trajetória musical desse paulista de Ribeirão Preto começou no final dos anos 1980, quando decidiu tentar a sorte na Europa. Durante sete anos ele se apresentou em diversos países daquele continente, incluindo alguns festivais e palcos de prestígio. Na França, especialmente, conquistou muitas plateias e as atenções de dois músicos conceituados: o pianista e compositor de trilhas cinematográficas Michel Legrand e o guitarrista de jazz Sylvain Luc, que se tornaram seus parceiros.

“Michel me valorizava muito como músico. Éramos como irmãos.”, relembra Filó, que dedicou a ele a composição “To My Friend Legrand”, após receber a notícia de sua morte, em 2019. Curiosamente, essa bela e melancólica balada é a única faixa que não adere à alegria predominante no repertório desse disco – aliás, sete das onze faixas são dedicadas a amigos e parceiros musicais de Filó.

Para abrir o álbum, ele escolheu “Jojô”, um tema dançante em ritmo cubano que os músicos das antigas chamariam de chá-chá-chá, apimentado com um naipe de instrumentos de sopro. Essa faixa é dedicada à Dra. Joelma Florencio, sua dentista. “A Jojô se arriscou durante a pandemia, para fazer implantes dentários e cuidar da minha saúde. Fiquei tão grato que decidi fazer essa música para ela”, conta o compositor.

Contagiante também é o baião “Wal”, dedicado a Walquíria, uma fã que ia com frequência ao bar paulistano Boca da Noite, nos anos 1980, para ouvir Filó. Já a jazzística “L’Habitant du Ciel” – com destaque para as exuberantes participações do saxofonista JP Barbosa e do baixista Thiago Espírito Santo – é uma homenagem a Zito Vieira (pai da produtora paulista Lucia Rodrigues), que morreu no período em que Filó vivia na França. O título da composição se refere ao fato de seu amigo ter sido sepultado em um cemitério vertical da cidade de Santos, no litoral paulista.

Sambas para os amigos

Filó também dedicou composições a três músicos que admirava. No samba “Vadeco”, ele relembra o guitarrista de São José do Rio Preto, que o ajudou com muitas dicas musicais, na época em que ainda tocava em bailes, no interior paulista. “Tema pro Macumbinha” é um samba bem suingado, que Filó dedicou ao violonista paulistano, seu compadre, que morreu tragicamente junto com sua família, em 1977, num acidente de vazamento de gás.

Tema Pro Tio” é um descontraído tributo ao pianista e compositor Laércio de Freitas, muito querido na cena musical de São Paulo, que se foi em meados de 2024. De essência jazzística, essa é a faixa mais livre do disco. Para realizar a gravação, Filó convidou Arismar do Espírito Santo para um duo de violões. “Já cheguei com o tema pronto no estúdio e disse pro Arismar: ‘Vâm’bora’, mas ele perguntou: ‘Como é que a gente vai fazer?’. Respondi: ‘Você fez uma pergunta dessas pra mim? Tá envelhecendo, né?’, diverte-se Filó, rindo da provocação que fez ao parceiro. Como ele, Arismar é conhecido por ser um grande improvisador.

Até mesmo ao homenagear Ligia Zveibil, sua esposa, que morreu um ano atrás em decorrência de um câncer, Filó conseguiu driblar a melancolia. “Ela sofreu demais. Fiquei completamente desnorteado”, relembra, emocionado. Ao compor o suingado tema “Zveibil Song”, o compositor preferiu perpetuar a alegria e leveza que caracterizavam sua relação com Lígia. Filó gravou essa música sozinho, improvisando vocais sem palavras e estalando os dedos, além de tocar teclados.  

Mesmo quando não são dedicados a alguém em particular, os temas instrumentais de Filó remetem a lembranças particulares ou mesmo a histórias que ele conta com prazer. Como a do sinuoso “Baião do Porão”, composto na década de 1980, quando o músico morava em uma casa no bairro de Vila Mariana, em São Paulo. “A gente sempre estava ensaiando no porão daquela casa”, comenta Filó, lembrando também que chegou a gravar esse tema com músicos da França e, mais tarde, na Itália, quando vivia na Europa.

Na cabine de um avião

Mais inusitado é o seu relato da criação de “Plano de Voo”, samba com uma melodia que lembra trilhas sonoras de filmes épicos. Em 1979, Filó voltava de um show em Campo Grande (MS), quando a aeromoça do voo o levou até a cabine de comando. O piloto era um fã que costumava ouvi-lo no Boca da Noite e o convidou a apreciar a vista panorâmica. Filó desceu do avião, levando uma irresistível composição, que nasceu durante o voo. 

Finalmente, “Tarde de Novembro” é uma rara incursão de Filó pelo universo da música clássica. Essa sonata pouco convencional, composta por ele em 1975, inclui entre seus seis movimentos um samba, uma mazurca e uma bachiana. No primeiro movimento, destaca-se a voz de Isabela Mestriner Machado, filha de Filó, que é cantora lírica.

Ao comentar essa faixa, Filó relembra que estudou a música clássica de Bach, assim como obras de autores mais contemporâneos, como Stravinski, Bártok e Berg, estimulado por Hans-Joachim Koellreutter (1915-2005), influente compositor e educador alemão, que viveu suas últimas três décadas no Brasil. Filó chegou a cursar um estágio de um mês, com 12 horas diárias, ministrado por ele. “Como eu tocava na noite, só podia dormir duas ou três horas por dia para chegar a tempo nas aulas, que começavam às 8h da manhã”.  

No final de 1996, quando Filó retornou ao país depois sete anos tocando na Europa, este repórter ainda teve que explicar aos editores do caderno de cultura da “Folha de S. Paulo” porque ele merecia ser tema de uma reportagem. “O meu desejo é que dê certo aqui. Nunca pensei em ficar vivendo no exterior”, me disse Filó, ao entrevista-lo. “Durante a fase mais difícil, cheguei até a pensar que havia algum problema com a minha música”, admitiu, já mais consciente do alto conceito que desfruta nos meios musicais.

Banda de craques

Por essas e outras, quase três décadas mais tarde, hoje é um prazer especial sentir a alegria de Filó Machado ao lançar seu 15.º álbum ao lado de craques da música instrumental produzida em São Paulo, como Daniel D’Alcântara e Sidmar Vieira (trompetes), Jorginho Neto (trombone), JP Barbosa (sax tenor), Salomão Soares (teclados), Thiago Espírito Santo (baixo elétrico) e Fábio Leandro (piano acústico). Sem falar no talento musical da família de Filó, que cresce a cada ano, muito bem representada por seu neto Felipe (voz e violão), seu filho Sérgio (bateria) e seu irmão Gera (percussão).

“As coisas mudaram muito, porque antigamente você sempre estava na dependência de alguma coisa”, compara hoje o compositor e cantor, referindo-se às dificuldades que ele e muitos artistas enfrentavam para lidar com as gravadoras e os meios de comunicação, antes do advento da internet e das redes sociais. “Hoje estou muito mais feliz fazendo minha música”, afirma.

Outra mudança trazida pelas redes sociais, segundo Filó, é o acesso direto e mais fácil aos fãs. “Agora eu crio minhas músicas e já não me sinto sozinho como antes. Eu posto alguma coisa minha nas redes e, de repente, já tem 30 mil, 50 mil, 100 mil visualizações. Daí eu me sinto na responsabilidade de continuar fazendo música com mais de cinco acordes”, diverte-se. “Hoje eu sinto que tenho espaço para fazer meu trabalho. Quem gosta da minha música vai curtir no Brasil, na Nova Zelândia, na Inglaterra, na Coreia, na China, em todo lugar”, comemora o hoje realizado compositor e instrumentista.

                                                                 (Texto escrito a convite da produção do artista)

"A Música Negra de Filó Machado" - 15.º álbum do violonista, compositor e cantor paulista chega às plataformas de streaming neste dia 20/12.




Rodolfo Stroeter: baixista do grupo Pau Brasil lança "Madurô", um autorretrato musical

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                         O baixista e compositor paulistano Rodolfo Stroeter - Foto de Gal Oppido/Divulgação  

Um dos fundadores do conceituado grupo instrumental Pau Brasil, com o qual se apresenta e tem feito gravações desde os anos 1980, o contrabaixista, compositor e produtor paulistano Rodolfo Stroeter vai surpreender seus fãs. “Madurô”, seu segundo disco solo (lançamento do selo Pau Brasil), destaca um repertório autoral com dez canções e três temas instrumentais.

“Este disco é uma espécie de autorretrato musical, que inclui minha família e meus amigos”, sintetiza Stroeter. Nessas gravações, ele reencontra parceiros como os cantores Sérgio Santos, Joyce Moreno, Marlui Miranda e Céline Rudolph, o baterista Tutty Moreno, o pianista Helio Alves e seu filho Noa Stroeter, contrabaixista do Caixa Cubo Trio. E ainda, naturalmente, o quinteto Pau Brasil.  

Vale lembrar que, em seu primeiro disco solo (“Mundo”, lançado em 1986 pelo selo Continental), Stroeter já demonstrara ser um compositor que dialoga com diversas influências: da MPB ao instrumental brasileiro; do jazz à música clássica. Joyce e Marlui também participaram do elenco desse álbum, assim como o pianista e arranjador Nelson Ayres, do Pau Brasil.  

Contrapontos com parceiros

Agora, ao conceber “Madurô”, Stroeter decidiu dedicar mais espaço às suas canções inéditas – algumas compostas ainda nos anos 1980. Acostumado a trabalhar em grupo, mesmo quando produz o disco de algum intérprete, ele gosta de estabelecer contrapontos com os parceiros. “Quando comecei a fazer este disco, percebi que agora o contraponto seria comigo. Não consigo fazer isso sozinho”, admite Stroeter, que mais uma vez convocou parceiros e amigos, para formar um elenco de alto quilate.

Interpretada por Sérgio Santos, a singela canção “Boa Noite, Sereno” desfia sensações e descobertas de um primeiro namoro. O belo timbre do cantor mineiro também empresta brilho especial à lírica canção que dá título ao álbum. Curiosamente, conta Stroeter, a letra de “Madurô” ficou inacabada até ele reencontrá-la em um velho caderno. Logo depois achou a solução que buscava para conclui-la graças a uma sugestão de Noa.

Três cantoras, com as quais Stroeter desenvolve parcerias há décadas, também contribuíram para outras belezas do álbum. Já gravada por Monica Salmaso, a canção “Estrela de Oxum” ressurge na voz de Joyce, em delicado arranjo que destaca o piano de Nelson Ayres, a bateria de Tutty Moreno e o baixo do próprio autor. Em “Cantiga da Estrela”, a cantora franco-germânica Céline Rudolph demonstra sua bagagem jazzística, utilizando a voz como instrumento, em um criativo duo improvisado com o baixo elétrico de Stroeter.  

Exaltação aos indígenas

Outra surpresa do disco é “Rap Americano”, poema de Stroeter que exalta os povos indígenas das Américas, escrito para a “Ópera dos 500 / Popular e Brasileira”. Encenada por Naum Alves de Souza, em 1992, essa ópera pretendia desmistificar o suposto heroísmo de Cristóvão Colombo. Como não entrou na versão final do espetáculo, o poema estreia agora na voz do autor, acompanhado pelo Caixa Cubo Trio. Os vocais de Marlui Miranda, em idioma indígena, criam um contraponto inquietante com os versos.

O samba “Feiticeira” também demorou pelo menos uma década e meia para sair da gaveta. Fã de João Gilberto, Stroeter tem uma paixão especial pelo lendário LP de capa branca do pai da bossa, lançado em 1973. Quando soube que João frequentava a casa do baterista Tutty Moreno, em Nova York, teve a ideia de compor um samba com cara de bossa nova e enviá-lo para o mestre. “Até fiz a música, mas não mandei”, conta, sorrindo. Agora, para inclui-la em “Madurô”, convidou o cantor Zé Renato e Tutty para gravá-la de maneira bem despojada, como fez João Gilberto, em seu cultuado álbum.  

Stroeter agradece por duas sugestões de intérpretes que recebeu do violonista Swami Jr., também presente no disco. “Ele entendeu onde eu queria chegar com duas composições minhas de cunho mais popular”, reconhece. No contagiante samba “Na Boca do Povo” (parceria com o letrista Paulo César Pinheiro), Fabiana Cozza soa bem à vontade, como se estivesse cantando numa roda de amigos. Já “Viva Jackson do Pandeiro” é um alegre tema instrumental de Hermeto Pascoal, para o qual Stroeter escreveu uma letra, que imagina um encontro do carismático músico paraibano com o “bruxo” de Alagoas. Convidado a interpretá-lo, Chico Cesar personifica Jackson, carregando na pronúncia dos “erres”, para reviver um divertido sotaque do passado.

Parceria de quatro décadas

Por outro lado, Stroeter nem precisou pensar em quem gravaria “Aboio”, um dolente tema instrumental, e o gingado samba “Levada da Breca” – parcerias com Noa, que o Pau Brasil tem incluído em suas apresentações. “Eu toco com esse grupo de amigos há mais de 40 anos. Não existe a possibilidade de eu fazer um disco meu sem o Pau Brasil”, afirma o contrabaixista.

Escolhida para fechar o álbum, “A Voz da Oração” nasceu como uma letra de Stroeter que foi musicada por Noa. Com forma e conteúdo de uma prece, ela inspirou a emocionante interpretação de Sergio Santos, que expressa o significado especial dessa canção para o baixista do Pau Brasil e sua família. “Ela foi dedicada ao Noa e meus outros filhos. Não tenho religião que não seja a música, mas acabou saindo uma canção que abarca o sentido de amor aos de muito perto”, ele explica.

Cinco anos atrás, Stroeter enfrentou um grave problema cardíaco, que o levou a refletir mais sobre o sentido da vida, nos últimos anos. Hoje, ele percebe que a decisão de gravar um disco de canções como “Madurô” também tem relação com a experiência extrema que vivenciou. “O fato de eu ter, literalmente, apagado e, minutos depois, ter voltado à vida, me trouxe um sentido de liberdade essencial para fazer um disco como esse. Se não tivesse passado pelo que passei, eu jamais teria a coragem de me expor como faço nesse disco”, conclui. Em outras palavras, Rodolfo Stroeter amadureceu, madurô.

                                                                                          Texto escrito a convite do selo Pau Brasil 


Show de lançamento do álbum "Madurô"
- Dia 6/12/24 (sexta), às 21h, na Sala Crisantempo (Rua Fidalga, 521, Vila Madalena, zona oeste de São Paulo). Entrada franca. Com Rodolfo Stroeter (baixo acústico e elétrico), Hélio Alves (piano) e Tutty Moreno (bateria). Participações especiais de Sérgio Santos (voz), Analu Sampaio (voz) e Paulo Bellinati (violão). 

André Siqueira e Toninho Ferragutti: antigas valsas de Garoto com a sensibilidade de hoje

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                                   André Siqueira e Toninho Ferragutti, no show de lançamento no Sesc 14 Bis 


Confesso que, num primeiro momento, não cheguei a ficar animado ao saber que o violonista André Siqueira e o acordeonista Toninho Ferragutti gravaram um álbum com 10 valsas do lendário Garoto (1915-1955). Pensei: será que esses talentosos instrumentistas vão conseguir realizar a proeza de tornar atraente aos ouvintes de hoje um repertório tão antigo, criado quase um século atrás?

Que recursos musicais esses admiradores do grande multi-instrumentista de cordas – paulista como eles – poderiam utilizar para conquistar a atenção das plateias contemporâneas? Afinal, já nos acostumamos à alta intensidade sonora e à variedade rítmica da música de hoje, que nos chacoalha e entorpece, diariamente, por meio das plataformas de streaming, dos smartphones e canais do YouTube.

É provável que um receio semelhante ao meu tenha passado pelas cabeças de alguns dos felizardos que foram ao Sesc 14 Bis, na quinta-feira (3/10), para o show de lançamento de “Valsas de Garoto”, álbum em formato digital do Selo Sesc. Mas bastou escutar “Dias Felizes”, a doce valsa que abriu o repertório da noite, para que a plateia começasse a ser transportada para uma época em que a música e o lirismo costumavam andar de mãos dadas.

Autores dos arranjos do álbum, Siqueira e Ferragutti optaram por releituras: conseguiram imprimir um sabor mais atual às valsas de Garoto, tendo o cuidado de preservar a essência dessas composições. A maior parte do repertório é interpretada em duo de violão e acordeom. Por outro lado, o álbum ganhou timbres adicionais com as participações especiais de mais três craques da música instrumental: o violonista Paulo Bellinati, grande especialista na obra de Garoto; o clarinetista Alexandre Ribeiro e o violinista Ricardo Herz.

Foi bastante feliz a ideia de relembrar, na releitura da valsa “Luar de Areal”, o som do cultuado Trio Surdina – grupo formado por Garoto na década de 1950, quando teve a seu lado os talentos do violinista Fafá Lemos e de Chiquinho do Acordeom. Tanto nessa faixa do álbum, como no show de lançamento, Herz brilhou com seu violino, ao trazer de volta a sonoridade de Fafá, em alguns momentos.

Outra releitura muito especial é a de “A Cruz de Ouro”, que destaca a emotiva interpretação de Bellinati, ao violão. Já a valsa “Dugenir”, que Garoto dedicou à sua esposa, destaca a expressividade do clarinete de Ribeiro. Mas só mesmo quem foi ao show de lançamento, no Sesc 14 Bis, teve o privilégio de ouvir mais uma vez a emotiva “Gente Humilde”, a composição mais popular de Garoto, interpretada por Ferragutti, Siqueira e seus três convidados.

Tratando com carinho esse repertório do passado, Siqueira e Ferragutti utilizam suas sensibilidades contemporâneas para realçar as belezas dessas composições. Aplausos aos protagonistas do projeto “Valsas de Garoto” por provarem que a música instrumental de outras épocas também pode e deve ser apreciada, se o preconceito etarista for deixado de lado. E parabéns ao Selo Sesc por abraçar um projeto como esse, num momento em que a diluição parece tomar conta de muitas áreas de nossa cultura. 

 

São Paulo Jazz Weekend: novo festival abraça a bossa, o choro e o som instrumental brasileiro

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                                                                             A cantora norte-americana Dianne Reeves     

Muita gente pensa que os grandes festivais de música ao ar livre surgiram na segunda metade da década de 1960, época em que a geração hippie sonhava com uma sociedade libertária e naturalista, em um mundo mais pacífico. Impulsionados pelo carisma de ídolos do rock e da música negra daquele período, como Jimi Hendrix, Janis Joplin e Otis Redding, festivais nos Estados Unidos, como o Monterey Pop (em 1967) e Woodstock (1969), difundiram essa impressão errônea.  

O pioneirismo nesse setor do showbiz pertence, de fato, ao Newport Jazz Festival, hoje chamado de “avô dos festivais de música”. Esse evento comemorou 70 anos em julho último, em Rhode Island, com uma edição recheada de craques do gênero. Seu fundador, o pianista e produtor George Wein (1925-2021) também foi responsável pela criação de outros eventos similares, como o New Orleans Jazz & Heritage, megafestival que segue firme em sua trajetória de 54 anos, na Louisiana. Na edição deste ano, sua atração principal foi simplesmente a banda inglesa The Rolling Stones.      

Quem quiser conferir as credenciais do veterano Newport Jazz vai se surpreender ao assistir ao clássico documentário “Jazz on a Summer’s Day” (de Bert Stern e Aram Avakian, disponível no YouTube). Cenas filmadas durante a edição de 1958 desse festival captam com requinte a descontração e as reações dos fãs na plateia, em meio a brilhantes performances de Thelonious Monk, Anita O’Day, Louis Armstrong e Gerry Mulligan, entre outros.

Passadas sete décadas, hoje os festivais de jazz são realizados nos mais diversos cantos do mundo. Para atender seu público, que pode reunir diversas faixas etárias, os organizadores sabem que já não é suficiente oferecer apenas boa música. Muitos frequentadores valorizam a possibilidade de tomar um drinque e se alimentar bem, em meio à maratona musical, ou mesmo dispor de locais agradáveis para relaxar ou se refrescar entre um show e outro.

Um festival diferente de seus pares

A preocupação com o conforto da plateia também está na lista de itens essenciais do São Paulo Jazz Weekend, festival que realiza sua primeira edição nos dias 28 e 29/09 (sábado e domingo), na área externa do Memorial da América Latina. Mas o que mais chama atenção é o seu menu musical, que combina diversos estilos de jazz, bossa nova, choro e muita música instrumental brasileira. Em outras palavras, um festival diferente de quase todos por aí: sem rap, rock, metal, funk carioca ou música sertaneja, em seus dois palcos.

“Nosso objetivo maior é fomentar o mercado”, afirma a produtora Giselle Ventura, que assina a direção do evento com o músico Thiago Espírito Santo. “A gente cria uma oportunidade para um público que virá ao Memorial por causa dos shows de Dianne Reeves, do Shai Maestro Trio ou de Seu Jorge & Daniel Jobim. Ali esse público vai encontrar um leque de sons e músicos jovens que ainda não conhece”, diz ela.

O nome do “bruxo” Hermeto Pascoal chegou a ser anunciado para o primeiro dia do festival, mas seu show foi cancelado porque ele terá que passar por uma intervenção cirúrgica. “Isso pegou a gente de surpresa. Não é fácil substituir um músico como o Hermeto, porque muita gente vai ao festival na expectativa de assistir ao show dele”, admite Thiago. A solução foi convidar Yamandu Costa, que estará de passagem pelo Brasil. O conceituado violonista gaúcho, que hoje vive em Portugal, terá a seu lado dois antigos parceiros: o baterista Edu Ribeiro e o próprio Thiago, no baixo.

O diretor do Jazz Weekend conta que o projeto do novo festival já existe há oito anos, mas ainda não tinha saído do papel por falta de patrocínio. “Em 2020 quase deu certo, mas aí veio a pandemia”, relembra Thiago. “São poucos os festivais que se arriscam a mexer com música instrumental”, comenta, observando que após o longevo Free Jazz Festival (realizado de 1985 a 2001), quase todos os eventos do gênero no Brasil se tornaram “abrangentes”. Em outras palavras, exageram nas doses de música pop e derivados.

Conforto para a plateia

Além da programação musical de alta qualidade, Thiago destaca também a estrutura do Jazz Weekend, criada para que a plateia se sinta confortável ao encarar a maratona de shows. “Eu não posso fazer um festival com 10 horas de duração e oferecer banheiros químicos. Então teremos uma estrutura com 98 cabines de banheiros de louça, com pia e espelho. Já na área de alimentação, mesas de piquenique vão permitir que as pessoas possam se sentar para comer”. 

Diferentemente de outros festivais com mais de um palco, o evento não vai programar shows simultâneos – livrando assim os frequentadores de serem obrigados a escolher entre um show ou outro. As apresentações no Palco Laércio de Freitas (homenagem ao pianista e compositor paulista, que morreu em julho) vão durar de 40 a 60 minutos.  

Texto publicado no caderno de cultura do jornal "Valor Econômico"

Programação        

Sábado (28/9)
Roda de Choro (às 11h10), Irmãos e Brothers (às 12h25), Carol Panesi (às 13h40), Henrique Mota (às 14h55), Amaro Freitas (às 16h10), Scott Kinsey Group (às 17h40), Yamandu Costa Trio (às 19h10) e Dianne Reeves (às 20h30).

Domingo (29/9)
Morgana Moreno e Marcelo Rosário (às 11h15), Dani e Débora Gurgel Big Band (às 12h30), Octeta (às 14h), Brazú Quintê (às 15h05), Salomão Soares e Guegué Medeiros (às 16h15), Shai Maestro Trio (às 19h), Seu Jorge e Daniel Jobim (às 20h30).   

Ingressos e horários

Abertura dos portões: dia 28, às 11h; dia 29, às 11h

Onde: Memorial da América Latina - Acesso para o público pelo Portão 2, na Rua Tagipuru.

Ingressos: R$ 85,00

Onde comprar: 
https://spjw.byinti.com/#/event/UtXz3Q4u0vYLlfI3Cvrw



       
   

André Christovam: documentário relembra como guitarrista deu ao blues um sotaque brasileiro

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                     O "rei do blues" B.B. King e o brasileiro André Christovam /Acervo do músico 

Expoente do blues com sotaque brasileiro, o guitarrista e compositor paulistano André Christovam é o protagonista do documentário “Mandinga”. Esse longa metragem inédito, que estreia hoje (13/6), será reexibido na próxima semana, em São Paulo, em meio à programação do festival In-Edit Brasil, dedicado a documentários musicais (confira os locais e horários de exibição no link abaixo).

Dirigido por Egler Cordeiro, “Mandinga” aborda o processo de criação e os bastidores das gravações do homônimo álbum de estreia de Christovam, lançado em 1989 pelo selo Eldorado. Um ano especial para os apreciadores do blues, que viram esse gênero musical afro-americano (célula-mãe de todas as vertentes da música negra criada nos Estados Unidos durante o século 20) conquistar uma jovem e fiel legião de fãs brasileiros.
Músico talentoso e perfeccionista, Cristovam se destacou já em sua estreia fonográfica. Na pioneira cena do blues brasileiro (com raras exceções, como o guitarrista e cantor carioca Celso Blues Boy), bandas como Blues Etílicos, Blue Jeans e Baseado em Blues tendiam a cantar em inglês, mesmo em suas composições autorais.
Christovam não deixou por menos: em vez de se limitar à interpretação de clássicos do gênero, ao preparar o repertório de seu primeiro disco mergulhou os ouvidos em inspiradores sambas de Noel Rosa, Cartola e da dupla João Bosco e Aldir Blanc. Nessas fontes de pura brasilidade, encontrou um caminho poético e bem-humorado para criar saborosos blues cantados em português, como “Genuíno Pedaço do Cristo”, “Dados Chumbados”, “Carne de Pescoço”, “Sebo nas Canelas” e, claro, a faixa-título.
O documentário também relembra um evento que, segundo o guitarrista, foi a realização de um sonho. Durante a Virada Cultural de 2014, Christovam comemorou os 30 anos do lançamento do álbum “Mandinga” em um concerto no erudito palco do Theatro Municipal de São Paulo. Foi nesse mesmo ano que ele se mudou para a Escócia, onde vive até hoje.
IN-EDIT BRASIL – O documentário “Mandinga” será exibido hoje (quinta, 13/6), às 18h, no Cine Olido; dia 20/6 (quinta), no centro Matilha Cultural, às 18h; e no SPCine Paulo Emílio, dia 22 (sábado), às 19h30, em São Paulo. Confira a programação no site do festival: https://br.in-edit.org/

 

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