O saxofonista norte-americano Kamasi Washington
“Que tal esquecer os políticos por dois dias e nos concentrarmos apenas na música”? Esse convite faria sentido na abertura de qualquer evento musical no Brasil de hoje, mas foi feito pelo apresentador do Cape Town Jazz Festival, que encerrou sua 18ª edição na madrugada de domingo (2/4), na Cidade do Cabo, na África do Sul.
A menção aos políticos tinha a ver com a notícia de que o presidente sul-africano Jacob Zuma havia demitido o ministro das Finanças e outros nove membros de sua equipe. A demissão de Pravin Gordhan, visto por muitos sul-africanos como um símbolo de integridade, provocou uma forte queda no valor da moeda local.
Pela reação da plateia durante o festival, o convite para se entregar à música foi aceito com animação. Tanto que houve até um pequeno tumulto, no sábado, quando uma multidão se espremeu nas escadas do Centro de Convenções de Cape Town, para entrar no superlotado show da estrela sul-africana Thandiswa Mazwai.
Diferentemente de alguns festivais brasileiros, que oferecem pouco espaço aos artistas locais, o Cape Town Jazz costuma reservar pelo menos metade de sua programação a músicos sul-africanos. Entre as 39 atrações deste ano, 23 incluíam artistas locais, distribuídas entre os cinco palcos do evento.
Aliás, carismáticas cantoras sul-africanas, como Judith Sephuma, Nomfundo Xaluva e a citada Thandiswa Mazwai atraíram – com suas misturas de ritmos locais, gospel e soul music – plateias mais amplas e excitadas do que, por exemplo, a norte-americana Andra Day. Já comparada a Amy Winehouse, esta cantou uma versão pop da canção de protesto “Mississippi Goddam”, capaz de fazer Nina Simone, autora e sua grande intérprete, se revirar no túmulo.
Na porção jazz da programação, três atrações norte-americanas se destacaram. O saxofonista Kamasi Washington (que também está na programação do festival Nublu Jazz, de 6 a 9/4, em São Paulo) comanda uma banda viajandona e divertida, capaz de conquistar tanto apreciadores do jazz hardcore, como fãs bem jovens que até então só se interessavam por rock ou hip hop.
Já o sensacional quinteto do saxofonista Rudresh Mahanthappa impressionou a plateia com suas intrincadas melodias inspiradas pelo bebop de Charlie Parker e pela música indiana. Mais delicada é a concepção musical da cantora Gretchen Parlato (na foto acima), que extrai novas belezas tanto de uma composição do jazzista Herbie Hancock (“Butterfly”), como do sambista Dorival Caymmi (“Doralice”).
Os jazzistas sul-africanos também se destacaram. Não bastasse dar um show de “scat singing”, a cantora e bandleader Siya Makuzeni (na foto ao lado) toca trombone muito bem. E o encontro do trompetista Marcus Wyatt com os indianos Deepak Pandit (violino) e Ranjit Barot (bateria) rendeu improvisos sedutores.
Outro saboroso encontro foi o do veterano saxofonista e vibrafonista camaronês Manu Dibango com o saxofonista moçambicano Moreira Chonguiça. Os dois tocaram faixas do recém-lançado álbum “M&M”, no qual recriam clássicos do jazz, como “Tutu” (Marcus Miller), “Take Five” (Paul Desmond) e “In a Sentimental Mood” (Duke Ellington).
Finalmente, a bela apresentação do sexteto argentino Escalandrum, comandado pelo baterista Daniel “Pipi” Piazzolla, encerrou o evento deixando uma pergunta no ar. Por que uma música instrumental de tão alta qualidade como a produzida hoje no Brasil não tem estado presente em festivais importantes como o Cape Town Jazz? Será que os órgãos de apoio à divulgação da cultura brasileira no exterior pensam que só a MPB ou o pop indie podem representar o país?
(Texto publicado parcialmente na versão online da "Folha Online", em 3/4/2017. Viagem realizada a convite
do Departamento de Turismo da África do Sul e da South African
Airways)