Zé Manoel: cantor e pianista de Pernambuco cultiva a escola clássica da MPB

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Depois que o movimento manguebeat rompeu a hegemonia do eixo Rio-São Paulo, nos anos 1990, conferindo à cidade de Recife status de novo polo criativo do pop brasileiro, ouvir um jovem músico pernambucano com o talento e as referências de Zé Manoel provoca surpresa.

Quem não chegou a conhecer o disco de estreia (“Zé Manoel”, 2012) desse compositor, cantor e pianista, nascido em Petrolina, talvez até duvide de sua origem, ao ouvir seu segundo trabalho. “Canção e Silêncio” (lançamento do selo Natura Musical) reúne composições próprias que remetem ao universo musical do mestre baiano Dorival Caymmi: canções marítimas, como a doce “Habanera Hobie Cat Acalanto” ou a lírica “O Mar”, assim como outras que sugerem imagens ribeirinhas.

Além do sintético piano tocado pelo próprio Zé Manoel, os expressivos arranjos de cordas e sopros de Letieres Leite valorizam as canções – especialmente “Sereno Mar”, que alcança dimensões de trilha cinematográfica. Quem foi mesmo que disse que a MPB acabou? 


(Resenha publicada no "Guia Folha - Livros, Discos, Filmes", publicado em 25/7/2015)


Billie Holiday: centenário da cantora inspira Cassandra Wilson e José James

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Muitos fãs de Billie Holiday nem imaginam que, ao morrer com apenas 44 anos, a mais cultuada cantora do jazz quase não era ouvida nas rádios norte-americanas. Até seus poucos discos em catálogo eram difíceis de encontrar.

Sua morte, em 17 de julho de 1959, ocorreu em condições revoltantes. Internada em um hospital de Nova York, para tratar de problemas no coração e no fígado, ela passou seus últimos dias algemada na cama, vigiada por policiais, após receber ordem de prisão por porte de heroína.

A trágica história de Billie Holiday se tornou uma lenda similar às de outros astros musicais mortos prematuramente, como Charlie Parker, Jimi Hendrix ou Amy Winehouse. Mas é bem provável que suas gravações não tivessem causado tamanho impacto sobre as gerações posteriores, se não transmitissem tanta sinceridade.

Lançada agora por ocasião do centenário de nascimento dessa grande intérprete, a compilação “God Bless the Child” (lançamento Verve/Universal) pode servir de introdução à sua obra. Entre as 14 faixas, gravadas nos anos 1940 e 1950, canções e blues como “My Man”, “Stormy Wheater” ou “I Don’t Want to Cry Anymore” mostram que Billie cantava o que vivia e sentia. 


Seu carisma fica mais evidente ainda na faixa final, “Strange Fruit”, gravada num concerto em Los Angeles, em 1946. Item essencial de seu repertório, a dramática canção de Lewis Allan (cujos versos remetem aos enforcamentos de negros no sul dos EUA) tornou-se símbolo da luta contra o racismo.

“Strange Fruit” também está presente em álbuns recém-lançados por Cassandra Wilson e José James – brilhantes intérpretes da cena atual do jazz. Ambos rendem homenagens à cantora que os influenciou.

“Tenho certeza de que ela não iria querer ouvir alguém cantar uma canção do mesmo modo que ela fez em 1941 ou 51”, afirma Cassandra, no encarte do álbum “Coming Forth by Day” (lançamento Legacy/Sony), justificando sua intenção de “trazer Billie para um novo dia, e dar à (sua) música uma expressão de século 21”.



Para isso, convocou o produtor pop Nick Launey, conhecido por trabalhos com Nick Cave e Arcade Fire. Recheados de cordas, os arranjos do álbum trazem sonoridades incomuns no universo do jazz moderno: como o banjo de Kevin Breit, na lenta versão de “The Way You Look Tonight”; ou o violino de Eric Gorfain, em “I’ll Be Seeing You”. 



Se Cassandra aproxima Billie da música pop, José James prefere adotar uma sonoridade bem jazzística, em seu álbum “Yesterday I Had the Blues” (lançamento Blue Note/Universal, ainda sem edição brasileira), contando com um trio de feras do gênero: Jason Moran (piano), John Patitucci (baixo acústico) e Eric Harland (bateria).

Intimistas, as versões de James para “Good Morning Heartache”, “Body and Soul” e “Tenderly”, entre outras, enfatizam os silêncios, o sentimento. Mais ainda: transmitem aquela sensação de sinceridade que sempre marcaram as interpretações de Billie Holiday.

Ao final da audição dessas homenagens tão diferentes, fica no ar a velha questão que deveria afligir qualquer um que se aventura num projeto de releituras: até onde se pode chegar sem descaracterizar a obra original?


(Resenha publicada no "Guia Folha - Livros, Discos, Filmes", edição de 25/7/2015)

Ronen Altman: bandolinista exibe seu "Som do Bando", ao vivo, em São Paulo

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                                                   O bandolinista Ronen Altman / Foto: Anita Kalikies/Divulgação

Um dos melhores discos de música brasileira da safra 2014 ganha, enfim, um show de lançamento à sua altura. O bandolinista e compositor Ronen Altman exibe o repertório de “Som do Bando”, seu álbum de estreia, hoje (26/7), no Auditório Ibirapuera, em São Paulo.

Entre os mais de 30 músicos e arranjadores que participaram desse disco, o pianista e maestro Laercio de Freitas, o multi-instrumentista Arismar do Espírito Santo e o acordeonista Lulinha Alencar estarão presentes no show, assim como um quinteto de sopros e a “cozinha” que acompanhou Altman nas gravações.

“Foi bem difícil”, admite o mineiro radicado em São Paulo, explicando que a agenda desses músicos foi o que mais complicou a realização do espetáculo, que pretende ser fiel ao disco. “Tive que substituir três músicos, mas o resto do bando estará comigo”, festeja.

O desejo de contar com tantos músicos nas gravações não tem nada a ver com mania de grandeza. O instrumentista e compositor quis homenagear os colegas que o estimularam a se dedicar mais intensamente à música. Aliás, o termo “bando”, no título do álbum, possui duplo sentido: Altman refere-se tanto a seu instrumento, como aos colegas que dividem com ele a mesma paixão.

No repertório do show estarão composições de Altman, como a valsante “Nanai” (parceria com Celso Viáfora, arranjada por Nailor Proveta), a lírica “Cristalina” (arranjo de Tiago Costa) e a encantatória “Deserto” (arranjada por Claudio Leal Ferreira).

Há também canções conhecidas entre fãs da MPB, como a romântica “Fim do Ano” (de Zé Miguel Wisnik e Swami Jr., co-produtor do álbum), que foi arranjada por Gilson Peranzzetta, ou ainda “Obsession” e “Rio Amazonas”, belas composições de Dori Caymmi, que ele mesmo arranjou.

Altman se diverte ao lembrar que chegou a ser gozado por Arismar do Espírito Santo, anos atrás, ao prometer que um dia gravaria uma composição do amigo (“Turma Toda”), só que em ritmo mais lento para destacar a beleza da melodia.

A promessa foi cumprida, em “Som do Bando”, por meio de um saboroso arranjo de Laércio de Freitas. “O Arismar morreu de rir da minha cara, mas se ferrou. Teve de aceitar a gravação mais lenta e ainda participou do disco, tocando o baixo”, conta Altman, sorrindo.

No palco do Auditório Ibirapuera, o bandolinista estará acompanhado por Swami Jr. (violão), Daniel Grajew (piano), Ricardo Mosca (bateria) e Pedro Gadelha (baixo), além do quinteto de sopros formado por Sarah Hornsby (flauta), Ricardo Barbosa (oboé), Ovanir Buosi (clarinete), Alexandre Silverio (fagote) e Luiz Garcia (trompa).
 

Quem gosta de música instrumental brasileira, com harmonias sofisticadas e belas melodias tocadas com emoção, precisa conhecer esse trabalho.

(Texto publicado parcialmente na "Folha de S. Paulo", em 26/7/2015)



Savassi Festival 2015: evento cresce apoiando a cena instrumental de Minas Gerais

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                                                       O cantor e violonista João Bosco (no centro) e seu sexteto
 
Um dos maiores festivais de jazz e música instrumental do país, o Savassi Festival concluiu sua 13ª edição, no último domingo (12/7), em Belo Horizonte (MG), confirmando ser diferente da maioria dos eventos desse gênero. Em vez de exibir um elenco de vistosas atrações internacionais, buscando atrair mais turistas para a cidade, o Savassi Festival cresceu ao longo dos anos estabelecendo uma relação direta com os músicos locais e com a vida cultural da capital mineira.

“Muitas vezes o turismo cultural está ligado a grandes nomes e estrelas que têm uma reverberação mais ampla entre o público. O Savassi Festival não possui essa agenda”, observa o produtor Bruno Golgher, que vem realizando esse evento anualmente desde 2003. “Claro que eu posso trazer uma Esperanza Spalding, por exemplo, mas o festival busca, conscientemente, ser mais orgânico, criar uma relação com a cena musical e as pessoas daqui”.

Antes de criar o Savassi Festival, que neste ano ocupou 24 espaços entre praças, teatros, cafés e bares da cidade, Golgher chegou a produzir dois festivais de jazz menores, também em Belo Horizonte, no início da década passada. Em ambos, seu Café com Letras – misto de café com música ao vivo e espaço para eventos, localizado no bairro central de Savassi – já funcionava como palco.

Segundo Golgher, a estratégia de curadoria do Savassi Festival está diretamente ligada à relação constante que mantém com os músicos da cidade. Isso significa acompanhar os projetos atuais e futuros desses artistas, para poder viabilizá-los como atrações do evento.

Como exemplo, cita o delicioso show de João Bosco, um dos destaques da edição deste ano, que interpretou alguns standards do jazz, como “Blue in Green” e “My Favorite Things”. O cantor, violonista e expoente da MPB tinha a seu lado um sexteto de formação tipicamente jazzística, com destaque para o guitarrista Alexandre Carvalho e o baterista Jimmy Duchowny, norte-americano radicado em Belo Horizonte.

“Essa foi uma ideia do Jimmy, uns cinco anos atrás. Eu trabalho com ele há 19 anos, desde o início do Café com Letras, e os nossos filhos estudam na mesma escola”, conta Golgher. “É de relacionamentos contínuos como esse que surge o diferencial do nosso festival. Esse é nosso jeito de fazer”.  


Outra excelente atração deste ano recebeu o título carinhoso de Jazzinho – uma série de três shows idealizados para o público infantil, ao ar livre, na praça Floriano Peixoto. Após a apresentação do espetáculo musical “Cantigas do Bem Querer”, com a Orquestra Ouro Preto, o pianista André Mehmari hipnotizou crianças e adultos com seus improvisos bastante livres, inspirados em canções do Clube da Esquina, como “Ponta de Areia” (Milton Nascimento e Fernando Brant) ou “Cravo e Canela” (Milton Nascimento).

Fechando a última noite do festival, o pianista Cliff Korman e o saxofonista Nivaldo Ornelas (na foto acima) revisitaram lúdicas melodias do genial Thelonious Monk, como a balada “Ruby My Dear” e a abstrata “Trinkle Tinkle”. Para terminar, uma aparição-surpresa do explosivo pandeirista Sergio Krakowski (ex-integrante grupo Tira Poeira, hoje radicado nos Estados Unidos). Uma ideia tão boa que deveria ser retomada no próximo ano.

Mehmari também brilhou na noite de estreia de seu "Concerto Duplo para Piano, Vibrafone e Orquestra", composto com a intenção de "borrar as fronteiras entre a música popular e a música clássica" (nas palavras do próprio autor). Interpretada por Mehmari, ao lado do vibrafonista Antonio Loureiro e da Sinfônica de Minas Gerais, com regência de Marcelo Ramos, a peça chama atenção por suas cadências repletas de improvisação – algo raro no universo da música sinfônica. 



Ainda muito pouco conhecido por aqui, o compositor e pianista Guillermo Klein (na foto à esquerda) certamente surpreendeu as plateias que acompanharam seus dois concertos no festival –- aliás, suas primeiras apresentações no Brasil. As melodias sedutoras e os ritmos complexos de composições como “Mariana”, “Venga” ou “Amor Profundo” sugerem que esse argentino radicado nos Estados Unidos é um dos nomes para se acompanhar com muita atenção na cena do jazz e da música instrumental contemporânea.

Emocionante também foi o concerto comandado pelo saxofonista e compositor Nivaldo Ornelas, que regeu a Jazz Mineiro Orquestra – formada por outros craques de diversas gerações da música instrumental mineira, como os guitarristas Juarez Moreira e Magno Alexandre, os saxofonistas Cleber Alves e Chico Amaral, o flautista Mauro Rodrigues, o baixista Kiko Mitre e o baterista Neném, entre outros, além da participação especial do guitarrista Toninho Horta. Em composições de Ornelas, como "Colheita do Trigo", "Eterna Amizade" ou "Choratta Quatuor", se ouviu a essência do lirismo da música de Minas Gerais. 


A música mineira também foi devidamente cultuada pelo guitarrista norte-americano Mike Moreno (na foto abaixo), que exibiu belas releituras de clássicos de Milton Nascimento (“Outubro”) e Toninho Horta (“Manuel, o Audaz”), tendo a seu lado o talentoso baixista Frederico Heliodoro, no show intitulado “NY Meets Minas” (Nova York Encontra Minas).

Outras associações entre músicos estrangeiros e locais, como o duo do baixista dinamarquês Jasper Høiby com o percussionista e compositor Antônio Loureiro ou a parceria do saxofonista Tiago Barros com o argentino Guillermo Klein (seu professor de composição), entre outras, só confirmaram o fato de que Belo Horizonte ostenta hoje uma das cenas de música instrumental mais prolíficas e criativas do país. 


Vale ressaltar que o Savassi Festival tem colaborado ativamente para o fortalecimento dessa cena musical, seja por meio dos workshops e residências artísticas que promove anualmente, assim como tem incentivado bastante o diálogo dos músicos locais com os estrangeiros.

Essencial também para o desenvolvimento das carreiras dos instrumentistas de Minas é a iniciativa de realizar edições do Savassi Festival em Nova York (como já se deu em 2013 e 2014), por meio de intercâmbios com escolas de música e universidades norte-americanas, como a Columbia University e a New York University Steinhardt. A edição nova-iorquina deste ano já está confirmada.

Essa internacionalização do festival, segundo Bruno Golgher, não vai se limitar aos Estados Unidos. Depois de contatos iniciais com o Instituto Cultural da Dinamarca, ele já está preparando um intercâmbio com o Norte Europeu. “Para se fazer um único show na Dinamarca são necessários cinco anos de trabalho. Se fôssemos ricos, isso certamente seria mais rápido, mas somos obrigados a usar estratégias de país de periferia. É o nosso jeito de fazer da pobreza uma virtude”, conclui o produtor, com a característica modéstia dos mineiros. 


No vídeo abaixo a homenagem de André Mehmari ao compositor Fernando Brant (1946-2015), em seu concerto no Palácio das Artes, na 13ª edição do Savassi Festival:



Carlos Malta & Pife Muderno: clássicos da canção brasileira em linguagem original

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Um disco de música popular brasileira, gravado ao vivo em um dos teatros mais conceituados da China, pode parecer algo inusitado. Mas não para quem já ouviu a música contagiante do flautista Carlos Malta e seu grupo Pife Muderno, cujas melodias, ritmos e texturas sonoras são capazes de encantar plateias em qualquer lugar do mundo. Até porque essa música -- registrada agora no CD "Ao Vivo na China" (lançamento Delira Música) -- independe completamente da comunicação verbal.

Além dos pífanos e flautas de Malta, o sexteto Pife Muderno destaca também as flautas de Andrea Ernest Dias, o pandeiro de Marcos Suzano e a percussão de Oscar Bolão. Depois de 20 anos juntos, eles desenvolveram uma linguagem tão original que suas releituras de clássicos da canção brasileira, como “Ponteio” (Edu Lobo), “Qui Nem Jiló” ou “Asa Branca” (ambas de Luiz Gonzaga e Humberto Teixeira), ou até mesmo as composições do grupo, soam como músicas ancestrais. É o poder mágico dos “pifes”. 

(Resenha publicada no "Guia Folha - Livros, Discos, Filmes", em 30/05/2015)
 

 

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