Não é comum se ver uma cantora tão talentosa e experiente, como Leila Maria, lançar seu disco mais criativo e elogiado, depois de quatro décadas de carreira em relativo “low profile”. Chega a ser irônico o fato de que, para desfrutar do reconhecimento que finalmente conseguiu entre o grande público, Leila precisou participar do controverso programa “The Voice+”, em 2021.
Nesse “concurso de talentos” produzido pela TV Globo, cantores mais jovens no papel de jurados tinham muito a aprender com os veteranos candidatos, cujas apresentações eram comentadas com platitudes e expressões de surpresa. Alguns jurados chegavam até a demonstrar um certo constrangimento, talvez por não terem uma noção prévia da alta qualidade de muitos concorrentes do programa, que hoje não encontram um lugar no viciado mercado musical.
O sorriso de Leila Maria, ao estrear o show “Ubuntu” – na gelada noite do último sábado (18/6), na Casa Natura Musical, em São Paulo – era contagiante e revelador. “É uma delícia cantar Djavan”, festejou a cantora carioca já no meio do espetáculo, irradiando alegria, consciente de que o sexto álbum de sua carreira é muito mais do que uma coleção de releituras de pérolas do popular compositor e cantor alagoano. É sua indiscutível obra-prima.
Graças à ideia inicial de Ana Basbaum (diretora artística da gravadora Biscoito Fino) e ao trabalho do produtor e percussionista Guilherme Kastrup, a grande sacada conceitual desse álbum foi ter buscado e enfatizado o que há de africano, no cancioneiro de Djavan.
Com sua referência à abominável política separatista do apartheid, na África do Sul, a releitura da canção “Soweto” é um dançante e evidente ponto de partida. O arranjo destaca a contagiante guitarra de Zola Star, congolês-angolano radicado no Rio, que acompanha Leila durante quase todo o show, no quarteto que inclui Rodrigo Braga (teclados), François Moleka (baixo) e o próprio produtor Guilherme Kastrup (percussão).
É surpreendente se ouvir uma canção tão conhecida de Djavan, como a romântica “Meu Bem Querer”, embalada por um sexteto vocal tipicamente africano, o Kuimba, formado por jovens angolanos que vivem no periférico bairro paulistano de Capão Redondo. Inusitado também é o arranjo que une os sambas “Aquele Um” e “Fato Consumado”, vestidos com guitarra e um naipe de metais de coloração africana.
Quem já apreciava os trabalhos de Leila mais ligados ao jazz, gênero que quase sempre a identificou como intérprete, não saiu decepcionado do show. Além de cantar as nove faixas do álbum “Ubuntu”, ela fez questão de incluir no roteiro algumas versões jazzísticas de “standards” da canção norte-americana, como “Night and Day” (Cole Porter) e “Summertime” (dos irmãos Gershwin). E ainda cantou a sinuosa “Night in Tunisia” (de Dizzy Gillespie e Frank Paparelli), uma preciosidade do bebop.
Se você vive em São Paulo e perdeu essa chance de ouvir Leila Maria e suas inventivas releituras de Djavan com ritmos e sonoridades africanas, fique de olho na programação de julho. A cantora tem planos de levar “Ubuntu” ao Sesc Pompeia, em data que deve ser anunciada em breve. Um show brilhante, com grandes chances de estar nas listas de melhores do ano.