Sesc Jazz: o carisma de Yissy Garcia, a baterista cubana que toca sorrindo

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                                                                                   A baterista e compositora Yissy Garcia 

Quem acha que o jazz é música para gente velha (uma bobagem preconceituosa que volta e meia ouvimos por aí) morderia a língua se tivesse assistido ao contagiante show que a baterista e compositora cubana Yissy Garcia e seu quinteto Bandancha fizeram ontem (24/10), em mais uma noite do festival Sesc Jazz, no Sesc Pompeia, em São Paulo.

Além de misturar influências do funk, do hip-hop, do reggae e da música eletrônica em seu jazz contemporâneo de ascendência afro-cubana, Yissy é uma baterista brilhante, que esbanja criatividade nos improvisos. Carismática, ela toca com um irresistível sorriso no rosto, transmitindo à plateia todo o prazer que sente ao tocar sua música.

Yissy abriu o show contando à plateia que seu pai (o baterista Bernardo Garcia, um dos fundadores da Irakere, lendária banda de jazz cubano da qual também faziam parte o trompetista Arturo Sandoval e o saxofonista Paquito D’Rivera) costumava dizer que o Brasil era o seu país favorito. “Estou realizando um sonho nesta noite”, ela disse, demonstrando estar emocionada.

Impossível não lembrar do genial trompetista e jazzista Dizzy Gillespie (1917-1993), que arriscou uma profecia ao visitar a ilha de Cuba, no final dos anos 1980. Segundo ele, o jazz, a música cubana e a música brasileira, que se desenvolveram a partir de raízes comuns, se tornariam uma só no futuro. Mesmo que essa profecia não venha a se realizar, não há dúvida de que essas três preciosas fontes musicais são responsáveis por muito do que se criou de melhor na música do século 20.

Sorte de quem pôde ouvir e se deliciou com a música de Yissy Garcia e sua Bandancha. É sempre bom lembrar que temos primos distantes e queridos em Cuba, cuja música costuma nos emocionar e fazer sorrir.












Sesc Jazz: festival paulista reverencia a arte do saxofonista Gary Bartz

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                                                                             O saxofonista Gary Bartz e o pianista Barney McCall 

Em mais uma noite do festival Sesc Jazz, ontem (20/10, no teatro do Sesc Pompeia, em São Paulo), o saxofonista e compositor norte-americano Gary Bartz foi logo avisando à plateia que não costuma interromper seus shows para receber aplausos, nem mesmo para anunciar a próxima música do repertório.

O veterano jazzista não estava brincando. Só interrompeu o show depois de tocar por mais de uma hora, para recuperar o fôlego. Então trocou o sax alto pelo soprano e anunciou uma pérola de seu repertório naquela noite: “Si Tu Vois Ma Mère” 
 a  singela composição de Sidney Bechet, pioneiro do jazz de New Orleans, que Woody Allen resgatou na trilha sonora de filme “Meia-Noite em Paris” (de 2011).

Em seguida, tocou um trecho da melodia de “Ponta de Areia” (de Milton Nascimento), que provocou sorrisos na plateia. Pouco depois veio “Just Friends”, clássica canção americana que os jazzistas tocam com frequência (não à toa gravada por Charlie Parker, o genial saxofonista cuja influência levou Bartz a adotar esse instrumento). Não faltaram também canções compostas pelo próprio Bartz, como “I’ve Known Rivers” e “Precious Energy”, que ele mesmo cantou.

É bem provável que grande parte da plateia estava ali ouvindo Bartz pela primeira vez e que tenha se interessado por ele ao saber de sua parceria com Miles Davis, ainda no final dos anos 1960. Embora seja muito menos conhecido que seu antigo parceiro, Bartz também tocou com outros gigantes do jazz, como Art Blakey, Charles Mingus, Eric Dolphy, McCoy Tyner e Max Roach 
 seu currículo musical é capaz de deixar qualquer jazzista com inveja.    

O que importa mesmo é que Bartz e seus talentosos parceiros – Barney McCall (piano), James King (contrabaixo) e Francisco Mella (bateria) 
 cativaram a plateia durante duas horas de show, sem recorrer a um repertório mais conhecido. Ver um músico de 79 anos exercer seu ofício com tanta dedicação e respeito por sua plateia é algo estimulante.

Sesc Jazz: Gismonti encanta plateia paulista e anuncia álbum com clássicos da MPB

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                                                                 O pianista e compositor Egberto Gismonti

Ontem, ao assistir ao emocionante show de Egberto Gismonti (no festival Sesc Jazz, em São Paulo), fiquei pensando como tive sorte. Pertenço a uma geração que cresceu e amadureceu acompanhando de perto os discos e os shows de Gismonti, Hermeto Pascoal, Paulo Moura, Naná Vasconcelos, Victor Assis Brasil, Cesar Camargo Mariano, Pau Brasil, Cama de Gato e Duofel, entre tantos outros – para ficar apenas no campo de nossa preciosa música instrumental, que tantas belezas produziu desde os anos 1960.

Ao lado do filho Alexandre, talentoso violonista, Gismonti ofereceu à plateia do Sesc Pompeia, praticamente, uma síntese de sua obra musical. Alternando o violão e o piano, como gosta de fazer, sugeriu novas relações entre algumas de suas composições mais conhecidas, misturando-as em inventivas fusões. Também surpreendeu a plateia com belíssimas releituras de “Carinhoso” (talvez a mais emotiva e original versão do choro-canção de Pixinguinha que já ouvi até hoje) e “Retrato em Branco e Preto” (de Tom Jobim e Chico Buarque).

Não bastassem esses dois presentes musicais, Gismonti também revelou durante o show que já está gravando há algum tempo, na Europa, um álbum com releituras de clássicos da música popular brasileira que aprecia. Segundo ele, a sugestão partiu de Manfred Eicher, o produtor do selo alemão ECM, para o qual Gismonti tem gravado desde “Dança das Cabeças”, o cultuado disco que fez em duo com Naná Vasconcelos, em 1976.

Já ao final da noite, ao retornar ao palco, atendeu dois pedidos de bis entre os muitos que partiram da plateia. Primeiro, tocou a lírica “Palhaço”, uma de suas composições mais populares. Depois, uma versão instrumental de “Água e Vinho”, canção cheia de melancolia do seu álbum homônimo de 1972, que encantou muita gente de minha geração. Num país mais sério do que este, um músico do quilate de Gismonti seria homenageado diariamente.



Jazzmeia Horn: cantora-revelação do jazz exibe seu talento em estreia brasileira

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                                                                  A cantora Jazzmeia Horn e o pianistaTadataka Unno 

Jazzmeia Horn não esperava uma reação tão calorosa da plateia brasileira. Ontem, em sua primeira apresentação no país, ao anunciar à plateia do Teatro Bradesco (em São Paulo) que iria iniciar o show com “Free Your Mind”, a jovem cantora norte-americana foi surpreendida por uma fã. Ao ouvi-la cantarolar a melodia dessa canção de sua autoria (que também abre o recém-lançado “Love and Liberation”, seu segundo álbum), Jazzmeia arregalou os olhos e abriu um sorriso.

Mas quem mais se surpreendeu na noite de ontem foram mesmo aqueles que, sem conhecer bem a música de Jazzmeia, estavam ali porque se animaram ao ver algum anúncio do show. Ou porque já a tinham ouvido na programação da Eldorado FM, rádio paulistana que tem tocado “No More” (de Hubert Laws e Jon Hendricks), canção de forte influência da soul music, que também estava no repertório do show.

Aos 28 anos, Jazzmeia é bem mais do que uma promissora cantora-revelação. Dona de uma voz privilegiada, cuja extensão cobre quatro oitavas, ela mistura em suas criativas improvisações influências de grandes cantoras do jazz (Sarah Vaughan, Betty Carter, Abbey Lincoln, entre outras), do R&B e do hip-hop (Erykah Badu, Ledisi), em meio a espetaculares exibições de “scat singing” (estilo de vocal improvisado a partir de sílabas sem sentido).   


Marcante também é a influência de Rachelle Ferrell, inovadora vocalista de jazz e R&B, que despontou na década de 1990 com um estilo muito original, mas nunca chegou a receber o reconhecimento que mereceria. Jazzmeia não esconde, em entrevistas (como a que fiz com ela para o jornal “Valor”, neste link), que Rachelle é sua favorita – algo evidente, aliás, nos efeitos vocais desenvolvidos por ela, que sua discípula reproduziu em vários momentos da apresentação de ontem.

Falante e bem-humorada, Jazzmeia introduz quase todo o repertório do show, contando causos ou dando detalhes sobre as canções. Antes de interpretar uma emotiva versão de “Green Eyes”, de Erykah Badu, comenta que ambas nasceram em Dallas, no Texas. Conta como sua relação com as duas filhas pequenas inspiraram a canção “When I Say”. Ou ainda revela como a mania de uma colega de quarto da universidade, que insistia em manter as janelas da casa abertas, levou-a a compor sua canção “Legs and Arms”.

Já quase ao final do show, sorrindo, ela avisa que vai “tentar” fazer um samba. Então surpreende mais uma vez a plateia, com um inusitado arranjo de “Night and Day” (de Cole Porter), alternando levadas de samba com outra mais jazzística. E ainda esbanja graça e leveza, de cima de seus altíssimos saltos, arriscando passos de samba.

Não deu outra: depois de aplaudir muito, a plateia a obrigou a voltar ao palco para o bis com a energética versão de “Tight” (de Beth Carter), outro luminoso clássico de seu repertório. Tudo indica que Jazzmeia tem um futuro brilhante à sua frente.

Como grandes cantoras costumam dividir o palco com instrumentistas de alto nível, ela não deixa por menos. Seu quinteto, formado por músicos jovens, destaca os talentos de Tadataka Unno (piano), Irwin Hall (sax alto e flauta), Adonis Rose (bateria) e Rashaan Carter (contrabaixo). Tomara que Jazzmeia e seus músicos retornem logo ao Brasil.

Sesc Jazz: plateia de São Paulo viaja a Saturno com a Sun Ra Arkestra

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                                                                     Músicos da Sun Ra Arkestra, no festival Sesc Jazz 

Os sorrisos de alguns e os olhares intrigados de outros eram reveladores, na noite de estreia do festival Sesc Jazz (no Sesc Pompeia, ontem, em São Paulo). Não é todo dia que se tem a chance de ver e ouvir uma orquestra tão original, irreverente e vanguardista como a Sun Ra Arkestra, fundada na década de 1950 pelo compositor, tecladista e poeta norte-americano Herman “Sun Ra” Blount (1914-1993).

O conceito de afro-futurismo ainda demoraria décadas a ser criado, quando Blount (seu  codinome Sun Ra refere-se ao deus Sol dos egípcios) e os músicos de sua Arkestra desenvolveram um personalíssimo estilo de jazz orquestral que chegou a ser rotulado de “jazz do espaço”. Vale lembrar que Sun Ra costumava afirmar, em entrevistas, que nascera no planeta Saturno.

Liderada durante as últimas décadas pelo saxofonista e compositor Marshall Allen (com uma vitalidade incrível para alguém de 95 anos), a Sun Ra Arkestra mantém vivo o legado musical de seu lendário músico criador, que sempre reverenciou a diversidade da música de origem negra, desde o blues e o swing até o mambo e o funk.

Essa diversidade também marcou o repertório do show de ontem: da inusitada releitura da canção “Stranger in Paradise” (do musical “Kismet”, de 1953, que ficou conhecida no Brasil pela gravação meio brega da orquestra de Ray Conniff) à quase dramática versão de “When You Wish Upon a Star” (do desenho animado “Pinocchio”, de 1940), que fez a plateia sorrir. Naturalmente, não faltaram clássicos do repertório da Arkestra, como a catártica “Angels and Demons” ou a emblemática “Space Is The Place”.

Para quem é obrigado a viver neste país violento e injusto, comandado por políticos e juízes farsantes, as duas horas de música oferecidas pela Sun Ra Arkestra foram terapêuticas. funcionaram como uma relaxante viagem a Saturno.


Jazzmeia Horn: cantora e compositora é herdeira de grandes vozes do jazz

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                                               A vocalista Jazzmeia Horn - Foto de Jacob Blickenstaff/Divulgação  

Os apreciadores do jazz ainda não tinham visto e ouvido, nesta década, uma vocalista jovem tão surpreendente e bem-dotada como ela. Depois de vencer a competição do conceituado Instituto Thelonious Monk, em 2015, a cantora Jazzmeia Horn vem excitando plateias com seus improvisos vocais. Na próxima semana, fará suas primeiras apresentações no Brasil: dia 10 (quinta), no Teatro Bradesco, em São Paulo; e dia 11 (sexta), no Theatro Municipal do Rio de Janeiro.

“Penso que estou dando continuidade a um legado, a uma tradição familiar”, diz a vocalista e compositora de 28 anos, que cresceu em uma igreja batista de Dallas, no Texas, cujo pastor era seu avô. Jazzmeia acredita que a avó, organista, lhe transmitiu o dom musical ao sugerir seu inusitado nome de batismo. Embora adorasse jazz e blues, a avó não pôde se dedicar à música não religiosa por ser a primeira dama da igreja.

Foi só na adolescência que Jazzmeia descobriu e se envolveu com o jazz. “Eu pensava que o jazz era música de gente velha, porque os jovens que eu conhecia só ouviam hip hop e r&b. Isso aconteceu porque as rádios americanas, com exceção de poucas emissoras especializadas, deixaram de tocar jazz. Se não tivessem discos de jazz nas casas de suas famílias, os jovens de minha geração não podiam ouvir jazz”.

Jazzmeia tinha 14 anos, quando recebeu de um professor um CD com gravações de diversos cantores e músicos de jazz. Fascinada pelos sofisticados vocais de Sarah Vaughan (1924-1990), passou meses ouvindo os discos dessa grande intérprete, para reproduzir seu “scat singing” (maneira improvisada de cantar, usando sílabas sem sentido). Com o tempo percebeu que ouvir solos de instrumentistas também poderia inspirá-la no desenvolvimento de seu próprio estilo vocal.

“Gosto de saxofonistas, mas tenho uma coisa especial com os trompetistas”, brinca a cantora, ao explicar que sua afinidade musical com o trompete tem a ver com o timbre e a sonoridade desse instrumento, além da extensão melódica. “Para mim é bem mais fácil cantar as mesmas notas de um trompete do que, por exemplo, cantar as notas de um saxofone. Além disso, adoro a liberdade e a fluidez que o trompete oferece para se improvisar”, afirma.

Depois da obsessão inicial por Sarah Vaughan, Jazzmeia ampliou suas paixões e referências vocais. Em seus dois álbuns, “Social Call” (2017) e o recém-lançado “Love and Liberation”, não é difícil perceber influências de outras grandes cantoras do gênero no passado, como Betty Carter, Ella Fitzgerald e Abbey Lincoln. Outra marcante influência vem de Rachelle Ferrell, cantora de jazz e R&B com um estilo vocal bastante original, que Jazzmeia não esconde ser a sua favorita.

“Quando a ouvi cantar pela primeira vez, fiquei chocada. Não só pela habilidade dela ao fazer tudo que consegue fazer com a voz, mas também pelo uso do corpo. Adoro sua presença no palco, a intimidade que ela estabelece com a plateia e a maneira como se comunica com seus músicos. Tudo isso em um pacote completo. Uma pena que Rachelle não tenha recebido todo o reconhecimento que merece. Ela me inspirou tremendamente”, afirma.

O repertório de Jazzmeia não se limita ao material mais clássico do jazz. Além de eventuais composições próprias, ela combina releituras bem pessoais de standards, como “East of the Sun (West of the Moon)” ou “I Remember You”, com pérolas de grandes jazzistas, como “Tight” (Betty Carter), “Moanin’” (Bobby Timmons) e “Afro Blue” (Mongo Santamaria). Ou ainda versões de sucessos da soul music e do r&b, como “People Make The World Go Round” (do grupo vocal Stylistics) ou “I’m Going Down” (da cantora Mary J. Blige).

“Quando seleciono uma canção, o que mais me atrai de imediato é o ‘feeling’ (sentimento). Nada a ver com os versos, nada a ver com a melodia, mas principalmente com o que eu sinto ao ouvi-la”, diz a cantora, justificando suas escolhas. “Se a canção me dá vontade de dançar, se ela é positiva ou transmite felicidade, é bem provável que eu a escolha na hora, mas isso varia. Às vezes alguma coisa especial na letra de uma canção também pode me estimular a cantá-la”.

Dizendo-se “muito feliz” por ter sua primeira oportunidade de conhecer o Brasil, ela surpreende ao revelar que pratica capoeira, além de ter feito parte de um grupo de maracatu durante três anos, no descolado bairro do Brooklyn, em Nova York. “Essa viagem é muito importante para mim, porque vou poder conhecer melhor a capoeira e o maracatu no lugar onde nasceram”, festeja a cantora, que já reservou alguns dias para conhecer a Bahia.

Jazzmeia Horn
Dia 10/10 (quinta), às 21h, no Teatro Bradesco, em São Paulo. Ingressos de R$ 50 a R$ 260
Dia 11/10 (sexta), às 20h, no Theatro Municipal, no Rio de Janeiro. Ingressos de R$ 80 a R$180

(Texto publicado no caderno cultural do jornal "Valor", em 4/10/2019)



 

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