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Wayne Shorter (1933-2023): perdemos um grande criador e visionário do jazz

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             Wayne Shorter, no festival Jazz al Parque 2015, em Bogotá, na Colômbia
 

Na época da pandemia, abandonei o costume jornalístico de homenagear músicos ao saber que eles morreram. Até porque, durante aqueles deprimentes anos de 2020 e 2021, eu seria obrigado a fazer isso quase diariamente. Homenagens e tributos a grandes artistas podem ser feitos a qualquer dia e hora, mas hoje prefiro o elogio escrito ou postado enquanto esses artistas ainda estão vivos e produzindo. Muitos deles precisam de estímulos para seguir adiante.

Decidi suspender temporariamente minha decisão ao saber da morte de Wayne Shorter, um dos meus heróis musicais desde os tempos de adolescência. Mas não vou repetir aqui tudo que já escrevi sobre esse grande saxofonista e personalíssimo compositor. Prefiro resgatar um comentário que postei no Facebook, por ocasião de sua última apresentação no Brasil, em 2016. Indignado com as atitudes de alguns imbecis, durante e após o concerto de Shorter e Herbie Hancock no Brasil Jazz Fest, confirmo quase sete anos depois que pressenti no ar o mau cheiro da tendência reacionária que já despontava neste país:

“Ouvir um bobão qualquer gritar ‘Toca Raul!’, durante o concerto de Herbie Hancock e Wayne Shorter, em São Paulo, não chegou a me surpreender. Já no dia seguinte, saber que um sujeito deixou a plateia brandindo seu dedo médio com indignação me fez pensar que a estupidez humana não tem limites.

Eu me sinto um felizardo por pertencer a uma geração que cresceu ouvindo músicos inovadores como Hancock e Shorter, assim como Miles Davis, John Coltrane, Hermeto Pascoal, Naná Vasconcelos e tantos outros. Com eles aprendi que a música vai muito além dessas canções redundantes e grudentas feitas para serem repetidas nas rádios e vendidas por atacado. Descobri graças a eles que a música também pode ser uma grande aventura, uma viagem ao desconhecido.

Será que daqui a alguns anos, num Brasil inculto e reacionário (tomara que seja apenas um pesadelo), músicos inventivos e corajosos como Shorter e Hancock serão vaiados?”

Aqui o link para a resenha desse revelador concerto de Shorter e Hancock (na Sala São Paulo, em 2016, incluído na programação do Brasil Jazz Fest), que escrevi para a "Folha de S. Paulo":

https://www.carloscalado.com.br/2016/04/wayne-shorter-herbie-hancock-musica.html



Amazonas Green Jazz Festival: um espaço para mergulhar na música instrumental

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Um dos grandes festivais de jazz e música instrumental de nosso país, que mais enfatizam a educação musical e a formação de público, o Amazonas Green Jazz Festival criou para a edição deste ano o projeto Casa do Jazz. Esse espaço cultural estará aberto ao público da cidade de Manaus até este sábado (30/7), das 9h às 21h.

Com acesso gratuito, a Casa do Jazz fica ao lado do lendário Teatro Amazonas, no centro da capital amazonense. Ao entrar na primeira sala da exposição, o visitante já é apresentado a alguns dos instrumentos mais característicos desse gênero musical, como o saxofone, o trompete ou o trombone. Na sala Faça o Seu Som, os mais animados podem até se relacionar com alguns instrumentos.

A Casa do Jazz também oferece um espaço em que se pode circular pela réplica de um típico clube de jazz de Nova York. Os visitantes têm ainda a oportunidade de ampliar seus conhecimentos musicais, em uma sala dedicada às preciosidades sonoras de dois dos mais cultuados músicos do jazz moderno: o trompetista Miles Davis e o saxofonista John Coltrane, ambos também compositores.

Outro jazzista homenageado é o pianista e compositor Chick Corea, cuja música criativa serviu de inspiração para uma instalação de artes plásticas. “Queremos que os visitantes se sintam imersos no mundo do jazz”, diz Inês Daou, produtora do Amazonas Green Jazz Festival, que coordenou esse projeto.  


Passion4Jazz: podcast aproxima ouvintes do universo do jazz e gêneros afins

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                                                                  O multiinstrumentista e compositor Hermeto Pascoal  

Gosta de jazz e música instrumental brasileira? Então tenho um convite para você: já está disponível no Spotify, no YouTube, na Apple TV e em outras plataformas de streaming o primeiro episódio do podcast Passion4Jazz. Dirigido não só aos fãs do jazz e gêneros afins, mas também àqueles que desejam se iniciar nesse inventivo universo musical, o P4J estreia com um episódio dedicado à música e ao legado da grande cantora e ativista negra Nina Simone (1933-2003), com participações especiais das cantoras Leila Maria e Alma Thomas.

Com oito episódios, a primeira temporada do Passion4Jazz destaca também: a música universal do “bruxo” Hermeto Pascoal comentada por três de seus discípulos; as fusões do jazz contemporâneo com o hip hop assinadas pelo pianista e compositor Robert Glasper; o samba-jazz de ontem e de hoje, com participações especiais do Trio Corrente e do pianista Amilton Godoy; o legado musical do grande maestro pernambucano Moacir Santos; a história e os causos da criativa dupla Airto Moreira e Flora Purim; um panorama da nova geração do jazz em Londres; e um balanço da impactante e mística obra do saxofonista e compositor John Coltrane.

Deu para sentir até onde queremos chegar nessa primeira temporada? Além da conversa descontraída e repleta de informações relevantes, que se espera dos melhores podcasts, contamos ainda com uma atração exclusiva: um quarteto formado pelos craques Gustavo Bugni (piano), Bruno Migotto (baixo), Vitor Cabral (bateria) e Jota P. (sopros), que tocam releituras de clássicos do jazz, em vários episódios.

Como consultor musical desse projeto (e umas coisinhas a mais), tem sido um grande prazer trabalhar ao lado do pianista Jonathan Ferr e da jornalista Debora Pill, nossos hosts, do designer Oga Mendonça e do jornalista Eduardo Roberto. A produção executiva é de Marcelo Pires e Luciana Pavan, à frente da equipe da produtora PlayGround.


Miles Davis: trompetista deflagrou revolução silenciosa, 60 anos atrás, em 'Kind of Blue'

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Em 2009, quando veio ao Brasil para participar de concertos comemorativos do cinquentenário do álbum “Kind of Blue”, o baterista Jimmy Cobb (único remanescente dos sete músicos que participaram das gravações) admitiu, em entrevista que fiz com ele para a “Folha de S. Paulo”, que não tinha uma explicação para a imensa repercussão desse disco, considerado uma das obras-primas da música do século 20.

“Não houve qualquer planejamento, isso simplesmente aconteceu. Ao entrar no estúdio, nossa intenção era apenas fazer mais uma boa sessão de gravação com Miles”, disse Cobb, que fez parte do grupo regular do trompetista e compositor entre os anos de 1958 e 1962, em gravações e concertos.

O alto grau de liberdade que Miles costumava oferecer aos músicos de seus grupos certamente ajuda a explicar o produto dessas gravações. O trompetista entrou no estúdio da gravadora Columbia (na rua East 30th, em Nova York), em março de 1959, levando partituras que não passavam de meros esboços com os quais pretendia estimular a criatividade de seus parceiros musicais.

Se você viveu em uma caverna durante as últimas seis décadas, precisa saber que “Kind of Blue” é composto por cinco longas faixas instrumentais. Ou seja, sem vocais ou qualquer trecho cantado – característica que pode assustar ouvintes mais acostumados à linguagem das canções do universo da música pop. Mas qualquer um que se aventurar a escutar esse disco até o final, com a devida atenção, dificilmente vai se arrepender.

A enigmática introdução de “So What”, faixa que abre o álbum, desperta a atenção do ouvinte, logo conduzida, graças à simplicidade do tema, ao descontraído improviso de Miles, seguido por inventivos solos de John Coltrane (ao sax tenor) e Cannonball Adderley (sax alto). A atmosfera de relaxamento é acentuada pela faixa seguinte, o blues “Freddie Freeloader”, que destaca um radiante solo do pianista Wynton Kelly (sua única participação no disco), sucedido por intervenções de Miles e dos dois saxofonistas.

Faixa mais lírica do álbum, a delicada balada “Blue in Green” (cuja composição o pianista Bill Evans, que fazia parte do quinteto regular do jazzista na época, reivindicou posteriormente ser de sua autoria) envolve o ouvinte com uma calorosa dose de melancolia. Algo que Miles sabia fazer como poucos – especialmente quando alterava o som do trompete, utilizando o recurso da surdina, como se ouve nessa gravação.

Já em estado quase hipnótico, o ouvinte é embalado pelo valsante “All Blues”, outro tema simples e descontraído, que evolui para improvisos mais assertivos de Miles, Coltrane e Adderley. Finalmente, a sensível balada “Flamenco Sketches” encerra o disco com outro solo de trompete tingido de melancolia, além de emotivos improvisos dos saxofonistas e do pianista do sexteto.

Aos ouvidos daquela época, o diferencial desse álbum estava em sua inusitada concepção. Em vez de utilizar as harmonias complexas, a profusão de notas e os ritmos frenéticos que orientaram grande parte do jazz praticado nos anos 1950, Davis decidiu recuperar um pouco da simplicidade que esse gênero perdeu com o advento do bebop – o nervoso e inventivo estilo jazzístico que músicos como Charlie Parker e Dizzy Gillespie desenvolveram na década anterior.

O novo caminho apontado por Miles, já esboçado em seu álbum “Milestones” (1958), foi posteriormente rotulado pelos críticos e estudiosos como jazz modal. Ao substituir por modos (escalas) os improvisos calcados em progressões de acordes, ele encontrou uma maneira mais livre e espontânea de desenvolver melodias que abriu possibilidades até então inéditas para a expressão dos jazzistas.

Uma das melhores definições para o legado musical do álbum “Kind of Blue” foi cunhada por Herbie Hancock, pianista que integrou grupos de Miles nos anos 1960: “um portal para outra era”. Diferentemente do ruidoso free jazz, que quase virou do avesso a cena do jazz durante a mesma década de 1960, a revolução musical sugerida por Davis nesse disco foi mais silenciosa.

Na próxima vez que você decidir encarar uma estrada, seja de carro ou de ônibus, experimente levar “Kind of Blue” para ouvir. Tenho feito isso há décadas e, até hoje, não encontrei uma trilha sonora mais encantadora do que essa para acompanhar uma viagem. 

(Texto escrito para a "Folha de S. Paulo", publicado em 17/8/2019)




Wynton Marsalis: um ensaio aberto da Jazz at Lincoln Center Orchestra em São Paulo

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                                    Wynton Marsalis (ao centro, no fundo) e a Jazz at Lincoln Center Orchestra   

A longa fila em frente ao prédio do Sesc Consolação, em São Paulo, indicava a importância do evento. Com um ensaio aberto ao público da Jazz at Lincoln Center Orchestra (JLCO), liderada pelo conceituado trompetista e educador musical Wynton Marsalis, começou na tarde de ontem (19/6) a extensa programação do projeto que trouxe essa orquestra nova-iorquina de jazz à capital paulista para compartilhar seus conhecimentos. 

Oito unidades do Sesc (três delas na área periférica da cidade) vão sediar durante 12 dias uma série de concertos, ensaios abertos, workshops, palestras e uma jam session. A maratona de eventos termina no dia 30/6 com um concerto gratuito da orquestra no Sesc Parque Dom Pedro II, incluindo participações de Hamilton de Holanda (bandolim), Nailor Proveta (clarinete e saxofones), Daniel D’Alcântara (trompete) e Ari Colares (percussão).  

Apreciadores desse gênero musical, estudantes de música e até alguns instrumentistas profissionais disputaram os ingressos gratuitos para o ensaio de ontem. Quem conseguiu entrar no teatro ouviu uma prévia do repertório que a orquestra nova-iorquina vai tocar por aqui, viu como Marsalis conduz um ensaio e até o ouviu destrinchar e burilar no trompete algumas frases de “Jump Did-Le-Ba”, encrencada composição de Dizzy Gillespie (1917-1993), mestre do bebop. 

Boa parte da plateia vibrou ao ouvir o líder da JLCO anunciar a primeira música do ensaio: “África”, de John Coltrane (1926-1967), que ganhou um arranjo delicado, com solos do percussionista Ari Colares e da saxofonista Camille Thurman. Também uma talentosa vocalista, Camille, que está há poucos meses na orquestra, dividiu com o trombonista Chris Crenshaw os divertidos vocais em “scat” (maneira de cantar sem palavras, utilizando a voz como instrumento), na citada composição de Gillespie.  

Antes de a orquestra tocar “Coisa n.º 2”, de Moacir Santos (1926-2006), Marsalis (na foto ao lado) pediu a Nailor Proveta que falasse à plateia sobre a obra musical do grande compositor e maestro pernambucano. Vale lembrar que Moacir morou nos Estados Unidos por cerca de quatro décadas e só foi homenageado e aplaudido por plateias brasileiras, como merecia, já em seus últimos anos de vida. 

Bastante aplaudido também foi o solo de trompete de Daniel D’Alcântara, em “Epistrophy”, um dos temas mais conhecidos do originalíssimo compositor e pianista Thelonious Monk (1917-1982).  O arranjo assinado pelo trombonista Chris Crenshaw é bem mais suingado do que as versões gravadas por esse pioneiro do jazz moderno. 
  
Já ao anunciar “Brasilliance”, seção da “Latin American Suite”, de Duke Ellington (1899-1974), Marsalis foi logo avisando à plateia que essa composição não se baseia, essencialmente, na música brasileira. O que não impediu Proveta de inflamar a plateia com seu solo, ao citar “Lamento Sertanejo” (de Dominguinhos), em um frenético ritmo de baião puxado pela percussão de Colares. 

A programação de Wynton Marsalis e JLCO prossegue hoje (20/6), com o concerto gratuito “Vozes Visionárias: Mestres do Jazz”, às 17h, no Sesc Campo Limpo. Mais informações sobre outras apresentações e atividades desse projeto no site do SESC SP.


Ilhabela in Jazz: festival destaca tributo a Victor Assis Brasil com Nelson Ayres e quinteto

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                                                                    O pianista Nelson Ayres, no Ilhabela in Jazz 2016 

Os fãs do jazz e da música instrumental brasileira que conhecem Victor Assis Brasil, mesmo que só o tenham ouvido em discos, sabem que é difícil evitar superlativos ao se referir a esse grande saxofonista e compositor carioca, morto prematuramente em 1981, aos 35 anos.

“O Victor foi, provavelmente, o maior jazzista brasileiro. Aliás, ele não tinha a menor vergonha de dizer que era um músico de jazz. Era isso que ele queria na vida”, comenta o pianista e regente paulistano Nelson Ayres, que vai comandar um concerto em homenagem ao seu saudoso parceiro, dia 5/10, no festival Ilhabela in Jazz, no litoral paulista.

Diz a lenda que Leonard Feather, influente crítico britânico de jazz, ficou surpreso com o talento de Victor (na foto abaixo) ao ouvi-lo no Festival Internacional de Jazz de São Paulo, em 1978. Um ano antes, Art Blakey, mestre da bateria e líder dos Jazz Messengers, já o convidara a fazer parte de seu grupo, mas o brasileiro declinou a proposta.

Irmão gêmeo do pianista João Carlos Assis Brasil, que desenvolveu carreira na área da música erudita, Victor era mais eclético. Despontou em meados dos anos 1960, tocando jazz e bossa nova, no Rio de Janeiro, mas também tinha um grande interesse pela música clássica.

Victor e Nelson se conheceram em Boston (EUA), em setembro de 1969, quando começaram a frequentar a conceituada Berklee School of Music. “Moramos no mesmo porão. Uns seis meses depois chegaram o Zeca Assumpção e o Claudio Roditi”, recorda o pianista, referindo-se ao baixista e ao trompetista com os quais logo formaram o quinteto Os Cinco, que se apresentou por cerca de dois anos.

Embora tivessem quase a mesma idade, Victor já possuía uma vivência musical maior que a de Nelson. Além de já ter gravado os álbuns “Desenhos” (1966) e “Trajeto” (1968), também ganhara o título de melhor solista do Festival de Jazz de Berlim. “Ele não chegou a me dar aulas, mas aprendi muito com ele. O Victor jamais escondia as coisas que aprendia. Logo as passava para a frente”, conta o pianista, ressaltando a generosidade do colega. 


Fã declarado do saxofonista John Coltrane (1926-1967), Victor dizia em entrevistas que o mais importante na música era a sinceridade, que era essencial tocar com “feeling” (sentimento). “Ele era um cara muito recolhido, ensimesmado, que usava a música para colocar suas emoções para fora. Sua música era visceral, não tinha nada de controlada”, comenta Nelson.

Uma das composições mais conhecidas de Victor é a emotiva “Balada para Nádia”. Nelson e o saxofonista Roberto Sion a tocavam com frequência em shows durante a década de 1980, para homenagear o amigo (vítima de uma doença rara, a periarterite nodosa, espécie de inflamação arterial).

Essa balada estará no programa do concerto no festival de Ilhabela, ao lado de outras composições de Victor, como “Requiem for Trane” (homenagem a Coltrane), os baiões “Arroio” e “Pro Zeca” (dedicado a Zeca Assumpção) e as valsas jazzísticas “Waltzing” e “Waving”. Já as composições “Le Semeur” e “One for Scriabin” revelam as afinidades do saxofonista com a música clássica.

Para tocar esse repertório, Nelson comanda um quinteto com a mesma instrumentação do Os Cinco, com Assumpção (contrabaixo), Cássio Ferreira (sax alto e soprano), Daniel D’Alcântara (trompete e fluegelhorn) e Ricardo Mosca (bateria). O  conceito desse tributo nasceu no ano passado, quando o pianista e esses mesmos músicos se apresentaram no projeto Sesc Partituras, no Sesc Ipiranga, em São Paulo (veja o vídeo abaixo).

A sexta edição do festival Ilhabela in Jazz, que neste ano dividiu sua programação em dois finais de semana, exibe hoje (28/9) o septeto do baterista Cleber Almeida, o duo do trompetista italiano Paulo Fresu com o pianista espanhol Chano Dominguez e a orquestra Vintena Brasileira. Amanhã (sábado, 29/9), tocam o quarteto do acordeonista Renato Borghetti, o quarteto do trompetista norte-americano Ambrose Akinmusire e a banda Bixiga 70.

No próximo final de semana, a programação destaca o grupo do baterista Airto Moreira, o quinteto do guitarrista Fábio Gouvea e o Tributo a Victor Assis Brasil (sexta, 5/10). Na noite de encerramento (sábado, 6/10) tocam o trio do bandolinista Fábio Peron, o quinteto do gaitista Gabriel Grossi e a Hermeto Pascoal Big Band. Todos esses concertos serão gratuitos.

Mais informações em www.ilhabelainjazz.com.br






Sesc Jazz: a poesia engajada e a música negra do saxofonista Archie Shepp

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                                                       Archie Shepp, cantando no festival Sesc Jazz, em São Paulo 

Vanguardista, radical, revolucionário. Adjetivos como esses são utilizados com frequência ao se traçar o perfil de Archie Shepp – um dos músicos mais ativos e intelectualizados da geração que, na década de 1960, cultivou e difundiu a rebeldia sonora e política do free jazz, ao lado de Cecil Taylor, John Tchicai e Don Cherry, entre outros. Acrescente-se também o fato de Shepp ter sido discípulo e parceiro eventual do messiânico John Coltrane (1926-1967), o jazzista mais cultuado e imitado nas últimas décadas. Pronto, o mito está completo.

Graças a essa imagem divulgada há décadas, qualquer um se surpreende ao ver e ouvir pela primeira vez esse músico, poeta e dramaturgo norte-americano. Na noite de encerramento do festival Sesc Jazz (2/9), na plateia do teatro do Sesc Pompeia, alguns certamente não imaginavam que poderiam ouvir o radical saxofonista tocar uma canção tão romântica como “The Stars Are in Your Eyes” (de sua autoria), quase em ritmo de bossa nova, incluindo uma breve citação de “Nature Boy” (de Eden Ahbez), antigo sucesso do cantor Nat King Cole (1919-1965).

Os mais familiarizados com a obra e a trajetória musical de Shepp sabem que seu ativismo político – na luta pelos direitos civis dos negros ou contra a desigualdade social, entre outras causas – não o impediram de adotar, já na década de 1970, um repertório bem amplo, que inclui diversas vertentes da música negra norte-americana. Para isso contribuiu sua carreira paralela de professor de Estudos Afro-Americanos, em universidades de Massachusetts e Buffalo. Um exemplo: “Goin’ Home” (gravado em 1977) e “Trouble in Mind” (1980)”, álbuns que Shepp dedicou ao gospel, ao blues e ao rhythm & blues, em inspirados duos com o pianista Horace Parlan (1931-2017), são preciosidades musicais que merecem ser descobertas pelos ouvintes de hoje.

Muito bem acompanhado pela percussão de Kahil El’Zabar e seu Ritual Trio, que inclui o baixista Jamaladeen Tacuma e o pianista Henri Morisset, Shepp ofereceu à plateia, praticamente, uma aula sobre a diversidade da música afro-americana. Soprando seu roufenho sax tenor, abriu a noite com o bebop “Hope #2”, que compôs para homenagear o pianista Elmo Hope (1923-1967). Tocou “Don’t Get Around Much Anymore” (de Duke Ellington), com todo o swing que esse clássico da era das big bands pede. Mais inusitada foi a lenta versão de “Summertime” (de George Gershwin), ao sax soprano, com El’Zabar dedilhando uma kalimba (pequeno teclado de origem africana para ser tocado com os polegares).

Já o anunciado tributo a Coltrane não chegou a entusiasmar, talvez porque algumas das músicas escolhidas não são tão representativas de sua obra e ainda foram espalhadas ao longo do show, em vez de formarem um bloco. A serena balada “Naima” ganhou uma versão pouco feliz, com Shepp borrando a melodia, demasiadamente, ao sax tenor. A releitura da romântica “I Want to Talk About You” (de Billy Eckstine) seguiu pelo mesmo caminho, mas foi salva pelo lírico solo de Morisset, ao piano, assim como pelos vocais de Shepp, com seu vozeirão de barítono. Coltrane foi lembrado também por “Cousin Mary”, um animado blues de sua autoria, que Shepp chegou a gravar com El’Zabar e seu Ritual Trio, no álbum “Conversations” (1999).

Entre altos e baixos, o clímax do show veio com “Revolution”, dramática composição baseada em um poema que Shepp dedicou à sua avó, Mama Rose, que viveu na época da escravidão. Acompanhado pelo cajón (instrumento de percussão que consiste em uma caixa de madeira, usado originalmente pelos escravos africanos, no Peru) de El’Zabar, com um ritmo tribal, Shepp expôs o tema com o sax soprano. E emocionou a plateia, ao vocalizar os versos do poema de maneira bem teatral, algo entre um canto falado e um rap. Em nenhum outro momento dessa noite, o músico radical, o poeta engajado e o ativista político estiveram tão próximos.


(Resenha escrita a convite da produção do festival Sesc Jazz. Leia outras críticas de shows desse evento, no site do Sesc SP: https://www.sescsp.org.br/online/revistas/tag/12411_CRITICAS+SESC+JAZZ)

John Coltrane: álbum inédito do saxofonista ainda soa perturbador 55 anos depois

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                                                    O saxofonista e compositor John Coltrane / Foto de Bob Thiele

Para quem não está familiarizado com a obra de John Coltrane (1926-1967), a revelação de 14 gravações inéditas desse saxofonista e compositor, reunidas no álbum “Both Directions at Once: The Lost Album” (lançamento Impulse!, no mercado internacional), poderia ser comparada à descoberta de uma coleção de pinturas de Pablo Picasso. Em outras palavras, um pequeno tesouro para os apreciadores do jazz. 

Trata-se de material inédito do músico de jazz mais cultuado e imitado nas últimas cinco décadas, à frente de um dos quartetos mais perfeitos e inovadores na história desse gênero musical. Ao lado do sax tenor e do sax soprano de Coltrane, também brilham o piano inventivo de McCoy Tyner, a explosiva bateria de Elvin Jones e o contrabaixo propulsor de Jimmy Garrison.

Mesmo que essas gravações soem aquém de consagradas obras-primas de Coltrane, como as que integram seus álbuns “A Love Supreme” (1965), “Giant Steps” (1960) ou “My Favorite Things” (1961), isso não impede que o impacto seja grande, ainda mais no caso de ouvintes que desconhecem sua música.

Entre as duas versões lançadas do álbum (uma básica, com sete faixas, e outra ampliada com sete “takes” alternativos) a segunda oferece aos estudiosos, ou mesmo aos fãs mais curiosos, a possibilidade de se acompanhar “por dentro” um pouco do processo de criação de Coltrane e seus parceiros musicais.

Cada uma das quatro novas versões de “Impressions” (composição própria que Coltrane gravou em diversas formações, tanto em estúdio como ao vivo, durante a década de 1960) tem uma personalidade diferente, seja no andamento adotado pelos músicos, seja na maneira de improvisar.

Não à toa, o take 4 de “Impressions” transmite uma sensação de urgência, uma busca de maior liberdade rítmica e harmônica, que identifica essa fase musical do quarteto de Coltrane. Dois anos mais tarde, ao gravar o vanguardista “Ascension”, o saxofonista ingressou de forma definitiva no universo arrítmico e atonal do chamado free jazz.

O título “Both Directions at Once” (ambas as direções de uma vez) remete ao dilema musical que Coltrane enfrentava na época: entre o jazz mais convencional que praticara no passado e a atração vertiginosa pelo jazz de vanguarda, que parecia contagiá-lo mais e mais.

Curiosamente, quando as 14 faixas desse álbum foram gravadas, em 6 de março de 1963, Coltrane ainda tentava responder de alguma maneira à expectativa de Bob Thiele, produtor do selo Impulse!, no sentido de repetirem o sucesso de seu álbum “My Favorite Things” (1961). Logo no dia seguinte, ele e o quarteto entrariam no mesmo estúdio para gravar um álbum ao lado do sofisticado cantor Johnny Hartman, com um repertório de românticos clássicos da canção norte-americana, bem adequado para atingir um público mais amplo.

É possível, portanto, que as duas versões instrumentais de “Vilia” (singela canção do húngaro Franz Lehár, extraída da opereta “The Merry Widow”), reveladas agora, tenham servido de aquecimento para as gravações com Hartman. No segundo take, o lirismo da melodia ganha mais realce graças à sonoridade branda do sax soprano.

Para os ouvidos de quem já se acostumou à redundância e à falta de substância que marcam grande parte da produção musical de hoje, faixas como a encantatória “Untitled Original 11383” (composição própria que não chegou a ser batizada pelo saxofonista) ou a angustiada versão instrumental de “Nature Boy” (popular canção de Eden Ahbez) podem ser um tanto difíceis de encarar. 
Meio século após a precoce morte de Coltrane, a música desse messiânico jazzista soa ainda mais perturbadora.

(Resenha publicada no caderno "Ilustrada" da "Folha de S. Paulo", edição de 2/07/2018)




João Marcos Coelho: crítico analisa e incentiva a 'música de invenção' em novo livro

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O jornalista João Marcos Coelho (foto acima), grande referência no campo da crítica musical em nosso país, apresenta em seu novo livro uma proposta que muitos apreciadores da música contemporânea certamente aplaudiriam. Maestros, orquestras e intérpretes preguiçosos, que insistem em repetir nas salas de concerto os mesmos clichês do repertório clássico, como “As Quatro Estações” de Vivaldi, a “Nona Sinfonia” de Beethoven ou “Quadros de Uma Exposição” de Mussorgsky, deveriam ser taxados com um imposto que seria revertido à realização de projetos de música contemporânea. 

“Sei que extrapolo ao propor um novo imposto”, escreve Coelho, que não abre mão da ironia e do humor fino nos reveladores textos reunidos no livro “Pensando as Músicas no Século XXI” (lançamento da Editora Perspectiva). “Sei também que só me cabe, como crítico jornalístico, a tarefa de desmontar no dia a dia a narcótica engrenagem da vida musical convencional, cuja matriz magna são as instituições maiores, as orquestras sinfônicas, que embalam o público como se fosse composto de crianças sempre a fim de ouvir um milhão de vezes a mesma obra”. 

De cara, em seu texto de apresentação do livro, Coelho sintetiza em que consiste a “duríssima” vida de um crítico musical. “Ele tem de atuar simultaneamente em duas frentes: como catalisador, deve examinar e descartar o lixo sonoro que nos cerca, filtrando e incentivando a música de qualidade; e, como provocador, tem de surpreender os padrões do gosto, tirar os leitores da zona de conforto, levá-los a experimentar, descobrir o novo”. Para os estudantes de jornalismo, ou mesmo colegas de profissão mais jovens que ainda se perguntam qual é exatamente a função de um crítico musical, aí está uma definição prática e precisa. 

Publicados a partir de 2009 originalmente nos jornais “O Estado de S. Paulo” e “Valor Econômico”, ou nas revistas “Bravo” e Concerto”, os 101 ensaios, resenhas e críticas de discos e concertos reunidos no livro de Coelho não abrangem apenas o universo da música clássica ou contemporânea -- de Brahms e Wagner a Stravinski e Boulez. Abordam também o jazz de Thelonious Monk, John Coltrane, Keith Jarrett e Quincy Jones, assim como abrem espaço para artistas que flertaram com esse gênero musical, como o ator, bailarino e cantor Fred Astaire ou o arranjador e compositor de trilhas sonoras Henry Mancini. 

Praticante da bem-humorada distinção do pianista e compositor Duke Ellington (“Existem dois tipos de música: a boa música e a de outro tipo”), Coelho vai buscar, sem preconceitos, a música que merece ser ouvida e analisada nos mais diversos gêneros --  sejam as canções pungentes do “cantautor” cubano Bola de Nieve (1911-1971), a música instrumental brasileira de Egberto Gismonti ou os blues do cantor e pianista norte-americano Mose Allison (1927-2016). 

Em outras palavras, o que interessa a João Marcos Coelho é a música feita com criatividade, a “música de invenção”, que nada tem a ver, de modo geral, com a música descartável, fabricada para alimentar as paradas de sucesso ou a programação das rádios comerciais. Um exemplo a ser seguido também por aqueles que ainda insistem na preconceituosa e arcaica polêmica das fronteiras entre a música erudita e a popular.


Jazz: Coleção da Folha reúne 30 dos mais cultuados músicos e cantores do gênero

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Você é um daqueles que acham que o jazz é música difícil de ouvir? Não acredite nesse mito. Comecei a ouvir jazz aos 17 anos, sem ter frequentado ainda uma escola de música, e não precisei de nada mais do que os ouvidos abertos para me tornar fã desse gênero musical. Basta ter interesse – e não desistir quando se deparar com uma composição ou uma improvisação um pouco mais complexos.

Quer uma sugestão para começar a penetrar nos improvisos do jazz? Neste final de semana chega às bancas de jornais e algumas livrarias de vários Estados do país a “Coleção Folha Lendas do Jazz”, que oferece um panorama desse gênero musical. Composta por 30 livrinhos com CDs encartados, ela reúne alguns dos mais populares e cultuados músicos do jazz, de cantores como Louis Armstrong, Ella Fitzgerald, Sarah Vaughan, Anita O’Day e Nina Simone, a instrumentistas como John Coltrane, Charles Mingus, Bill Evans, Sonny Rollins e Thelonious Monk, entre outros.

A maioria das gravações selecionadas foi extraída dos catálogos dos selos Verve e Blue Note, reconhecidos entre os mais conceituados do gênero. Alguns dos volumes trazem compilações de gravações do artista retratado. Outros incluem um álbum completo, como os sempre elogiados “Blue Train” (de John Coltrane), “The Birth of the Cool” (de Miles Davis), "The Black Saint and the Sinner Lady" (de Charles Mingus), "Newk's Time" (de Sonny Rollins), "Go" (de Dexter Gordon) e “1958: Paris, Olympia” (de Art Blakey and the Jazz Messengers).

Essa é a oitava coleção nesse formato que, durante a última década, tive o privilégio de editar para a “Folha de S. Paulo”, além de ter escrito dezenas de volumes. Desta vez, contei com a colaboração do experiente jornalista e crítico Helton Ribeiro, que já havia contribuído com a coleção “Soul & Blues” (em 2015). Os textos dos volumes dedicados a Count Basie, Coleman Hawkins, Glenn Miller, Jimmy Smith e Django Reinhardt foram escritos por ele.

Mais uma vez foi um prazer trabalhar com a criativa dupla Erika Tani Azuma e Rodrigo Disperati, autores do projeto gráfico e responsáveis pela diagramação. Destaco também as ilustrações (capas) de Maria Eugenia, que os leitores da “Folha” já admiram há tempos. A realização desse projeto é da Editora MediaFashion. 


Mais informações sobre a coleção, inclusive como comprar, neste site: http://lendasdojazz.folha.com.br/



Miles Davis: caixa reúne quase 4 horas de gravações inéditas do trompetista

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Uma surpresa para os apreciadores do jazz, que viram os lançamentos desse gênero musical desaparecerem do mercado brasileiro na última década: a caixa “Miles Davis at Newport 1955-1975” (lançamento Columbia/Sony Music; R$ 130, em média) traz quase quatro horas de gravações inéditas do trompetista norte-americano que marcou a música do século 20 com seu espírito de transformação constante.

Quarto volume de uma série de registros ao vivo desse artista, que vêm sendo lançados nos EUA desde 2011, a caixa reúne em quatro CDs as apresentações de Miles no Newport Jazz Festival, entre 1955 e 1975. Esse pioneiro evento, criado em 1954 pelo produtor e pianista George Wein, na costa leste norte-americana, serviu de modelo para outros festivais de jazz pelo mundo.

Foi de Wein a ideia de promover, já no segundo ano de seu festival, uma apresentação de Miles com o pianista Thelonious Monk e os saxofonistas Gerry Mulligan e Zoot Sims. Como a sonorização de concertos ao ar livre ainda era precária na época, Miles fez algo incomum ao tocar a melancólica “Round Midnight” (de Monk): encostou a campana do trompete no microfone, para que o som fosse reproduzido de maneira mais clara.

No extenso texto que escreveu para o livreto incluído na caixa, o jornalista Ashley Kahn (autor de um ótimo livro sobre “Kind of Blue”, o disco mais cultuado de Miles) observa que a repercussão dessa performance do trompetista estimulou a gravadora Columbia a contratá-lo. Por meio dessa parceria, que durou três décadas, Miles veio a gravar seus melhores álbuns.

Ao retornar a Newport, em 1958, ele já liderava um dos sextetos mais admirados pelos fãs do gênero, com John Coltrane e Cannonball Adderley (saxofones), Bill Evans (piano), Paul Chambers (contrabaixo) e Jimmy Cobb (bateria). Oito meses antes de gravar com esse mesmo grupo a obra-prima “Kind of Blue”, Miles ainda trazia no repertório pérolas de sua fase “hard bop”, como a sedutora valsa-jazz “Fran-Dance”, de sua autoria, ou o nervoso tema “Two Bass Hit” (Lewis e Gillespie).

Nos anos 1960, ele voltou três vezes a Newport. Em 1966 e 1967, tinha a seu lado o sensacional quinteto com Wayne Shorter (sax tenor), Herbie Hancock (piano), Ron Carter (contrabaixo) e Tony Williams (bateria), que deixou parte da plateia perplexa. Duas diferentes versões de “Gingerbread Boy” (Jimmy Heath) revelam como Miles e parceiros caminhavam para um jazz mais experimental, numa época em que o mundo parecia prestes a explodir em conflitos e revoluções.

“Aquele grupo não estava à frente de seu tempo. Eles eram o tempo”, comenta Wein, no texto do encarte. Já em 1969, outra transformação: Miles exibia sua nova banda com Chick Corea (piano elétrico), Dave Holland (baixo) e Jack DeJohnette (bateria), mostrando em faixas como “Miles Runs the Voodoo Down” e “It’s About That Time” seu interesse em se aproximar do universo do rock e da black music.

Para os felizardos que presenciaram as apresentações de Miles no Brasil, em 1974, um concerto produzido meses depois por Wein, em Berlim (também incluído na caixa), pode trazer lembranças. Ao lado de Dave Liebman (sax soprano), Pete Cosey (guitarra) e Michael Henderson (baixo), entre outros, Miles já tinha mergulhado no funk e no rock. As faixas “Turnaroundphrase” e “Tune in 5” revelam um grau de eletrificação e distorções jamais ouvidas antes nos círculos do jazz. Não à toa os paulistanos cinquentões e sessentões que foram ouvir Miles no Theatro Municipal, naquela época, saíram no meio do concerto.


(Resenha publicada no "Guia Folha - Livros, Discos, Filmes", em 19/12/2015)

 

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