Toninho Ferragutti: acordeonista forma quinteto de craques em seu álbum "A Gata Café"

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É muito provável que uma enquete organizada entre especialistas, para eleger o acordeonista brasileiro mais completo, termine com a escolha de Toninho Ferragutti. Ao longo de três décadas de carreira, esse eclético músico e compositor paulista já exibiu seu talento em inúmeros shows e gravações, tocando choros, valsas, sambas, ritmos nordestinos e sulistas, jazz e música instrumental, além da música erudita – algo raro entre os acordeonistas de nosso país.

Essa facilidade de transitar por diversos gêneros e estilos musicais, assim como sua técnica apurada sempre posta a serviço da emoção, são evidentes em “A Gata Café” – o décimo álbum de Ferragutti, lançado com o selo de qualidade da gravadora Borandá, com a qual desenvolve antiga parceria. Gravado em São Paulo, em janeiro de 2016, esse projeto reúne 10 composições do acordeonista e arranjador.

Quem conhece a discografia de Ferragutti sabe que durante a última década ele já experimentou diversas formações camerísticas em seus álbuns: o quinteto de cordas de “Nem Sol Nem Lua” (2006); o noneto de “O Sorriso da Manu” (2012); os duos com o acordeonista Bebê Kramer, com o violeiro Neymar Dias ou com o violonista Marco Pereira, respectivamente, em “Como Manda o Figurino” (2011), “Festa na Roça” (2013) e “Comum de Dois” (2014).

Ao planejar o álbum “A Gata Café”, Ferragutti decidiu formar um quinteto de sonoridade mais próxima do jazz. Para isso convidou quatro jovens talentos da cena da música instrumental, com os quais ainda só havia tocado separadamente: o saxofonista Cássio Ferreira, o baterista Cleber Almeida, o baixista Thiago Espírito Santo e o violonista e guitarrista Vinícius Gomes.

“Quando surgiu a oportunidade de gravar, pensei que eles seriam perfeitos para um projeto como esse”, comenta o acordeonista, destacando as qualidades de seus novos parceiros. “São músicos antenados, na faixa dos 30 e poucos anos de idade, que também produzem, compõem e tocam qualquer estilo musical, sem qualquer dificuldade técnica. Aliás, os quatro também desenvolvem trabalhos próprios. Sou fã dessa geração”.

Como os parceiros de seu quinteto, Ferragutti também cresceu ouvindo diversos gêneros musicais. “Por causa do acordeom tive a possibilidade de entrar em contato com um lado mais tradicional da música. Ao mesmo tempo sempre fui interessado por música erudita e jazz”, afirma o paulista nascido na interiorana cidade de Socorro, cuja formação musical foi bem diferente do padrão seguido por outros acordeonistas.

“Só no final da década de 1980 é que eu fui escutar acordeonistas como o Dominguinhos ou o Luiz Gonzaga. Eu ouvia muitos saxofonistas, porque meu pai tocava saxofone”, conta Ferragutti, admitindo que essa experiência bem particular contribuiu para moldar seu estilo ao acordeom. “O saxofone é um instrumento de sopro com palheta de bambu; já a sanfona tem palhetas de aço. A proximidade entre esses dois instrumentos é grande, inclusive no fraseado, no pensamento melódico”, justifica.   

 
                                                          Vinicius (esq. para dir.), Thiago, Cássio, Toninho e Cleber
 
Ferragutti já havia participado de grupos com formações semelhantes à do atual quinteto, quando tocava em gafieiras, na década de 1980. Não à toa, ao definir o repertório de “A Gata Café”, decidiu regravar duas de suas composições daquela época: os contagiantes choros “O Mancebo” (inspirado no álbum “São Paulo no Balanço do Choro”, do pianista Laercio de Freitas) e “Chapéu Palheta”, gravados originalmente no final dos anos 1990.

“Esses choros foram feitos para dançar. São choros sambados, que amadureceram em salões de gafieira”, comenta o acordeonista, ressaltando a marcante influência que recebeu desse gênero musical. “Sempre toquei choro. Gosto de improvisar, mas sem romper a estrutura, mantendo uma linha tênue entre o floreado típico do choro e a improvisação”.

Outra faixa do álbum que remete aos populares salões de dança é o samba-canção “Santa Gafieira”, que Ferragutti compôs por volta de 2007 para o projeto “Panorama do Choro Contemporâneo Paulista”, já com a formação de quinteto em mente. “Essa é uma daquelas músicas lentas que você toca no final da noite, numa gafieira, quando as pessoas já estão indo embora para casa, como uma despedida”, explica.

Também feito por encomenda, o saltitante frevo “Bipolar” foi composto a pedido do saxofonista e maestro pernambucano Spok. O curioso título se deve, segundo Ferragutti, à sua preferência por músicas mais melancólicas. “Para tocar frevo você tem que estar bem alegre, mas, conforme compunha essa música, eu ia ficando triste e escolhia acordes menores. Daí surgiu a ideia do nome da música”, admite, rindo.

O conhecido lirismo de Ferragutti está muito bem representado pela delicada valsa que empresta seu título ao álbum. “A Gata Café” foi inspirada por um episódio real: uma gata à procura de um novo teto, que despertou a atenção do acordeonista e de seus vizinhos, no bairro paulistano de Pompéia, no final de 2015. “Todo mundo tem um lado bonito dentro de si. Esse bicho fez com que a solidariedade das pessoas se manifestasse. Todos na rua deixavam uma cumbuquinha com ração e outra com água para o bicho. Ai ele começou a entrar em minha casa e hoje dorme lá na cama”.

Curiosamente, só depois de algumas semanas, quando já havia composto e batizado a valsa, Ferragutti veio a perceber que a atraente Café era, na verdade, um gato. “Justo eu que cheguei a estudar veterinária por três anos, em Botucatu, antes de me mudar para São Paulo. Acho que faltei na aula sobre gatos”, diverte-se o compositor. “Mesmo que soubesse disso antes, eu não mudaria nada”.

A dançante “Com a Búlgara Atrás da Orelha”, faixa inicial do disco, foi composta para a trilha sonora da montagem teatral de “Como Ter Sexo a Vida Toda com a Mesma Pessoa”, monólogo da argentina Mónica Salvador, adaptado para o Brasil por Odilon Wagner, em 2012. “A ‘búlgara’ do título é uma referência à presidente Dilma, que na época estava com (um índice de) 90% de popularidade”, explica o acordeonista, que se inspirou na tradição musical do Leste Europeu para criar essa música.

Composição que também remete ao universo da música oriental, “Beduína” é uma homenagem de Ferragutti à sua esposa, a artista plástica Cinthia Camargo, cuja família é de origem árabe. Cinthia assina com ele a produção do álbum, além de ser a autora da bela pintura que ilustra a capa do CD “A Gata Café”.

Embora não tenha sido composta originalmente com essa intenção, a faixa “Egberto” também é uma homenagem. “Chamei essa composição de ‘Egberto’, porque ela acabou ficando com a cara dele. É um forrozão diluído, cheio de respirações, de espaçamentos. Assim como o Hermeto Pascoal, o Egberto Gismonti é um pilar da música instrumental brasileira, que continua inspirando muita gente até hoje”, comenta o compositor, reconhecendo essas influências.

Outro destaque do álbum é “Cortejo do Rio do Peixe”, composição que também já estava pronta ao ser batizada por Ferragutti com uma referência ao rio que atravessa sua cidade natal. “Fui criado olhando para esse rio. A bateria tem uma levada de cortejo, que até lembra um maracatu, mas não é. Cleber puxou para algo mais interiorano. Essa simbiose de uma coisa tradicional com outra mais contemporânea me seduz. O acordeom se presta muito a isso”.

Em meio à diversidade que caracteriza a música de Ferragutti também não poderia faltar um tango. “Nem Sol, Nem Lua” – composição gravada originalmente no álbum homônimo, lançado dez anos atrás – ganhou um arranjo mais jazzístico, que abre espaço para criativos solos de Vinicius Gomes (violão), Cassio Ferreira (sax soprano) e do próprio acordeonista.

“Em minhas composições está o extrato do que eu ouço, do que eu gosto de tocar”, afirma Ferragutti, confirmando que já encontrou um caminho próprio na cena musical. “Tem um lado de urbanidade nesse caminho que eu escolhi. Decidi morar em São Paulo para poder tocar música francesa, música italiana, tocar em sinfônica, em grupo de choro, em gafieira ou em banda de rock. Se eu morasse no Nordeste, no Sul ou no Centro-Oeste, minha sonoridade certamente seria diferente”.

Demonstrando muita consciência do que pretende como instrumentista, compositor e arranjador, Ferragutti é um exemplo a ser seguido – não só por acordeonistas – com sua concepção contemporânea, que dialoga com a tradição e diversos gêneros musicais sem se fechar em regionalismos. Tomara que “A Gata Café” seja apenas o primeiro episódio de uma longa história para Ferragutti e seu novo quinteto de craques da música instrumental.


(Texto escrito a convite da gravadora Borandá por ocasião do lançamento do álbum "A Gata Café", de Toninho Ferragutti)




André Mehmari e Danilo Brito: choros e risos na estreia de espaço para música instrumental

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                               O pianista André Mehmari e o bandolinista Danilo Brito, em show no CCMI

Se o bem escolhido show de André Mehmari e Danilo Brito servir de modelo ou prévia de sua programação, o Centro Cultural da Música Instrumental (inaugurado ontem, em São Paulo) já pode se considerar um sucesso. Vários detalhes ainda precisam ser melhorados ou finalizados no projeto, que combina dois espaços para shows e um futuro restaurante, mas os convidados que lotaram a Sala do Autor devem ter saído com a sensação de ter presenciado uma estreia bastante promissora.

Por quase duas horas, o duo do pianista com o bandolinista – formado há poucos meses e ainda nem registrado em disco – deliciou a plateia com uma seleção de clássicos da música instrumental brasileira, como os choros “Três Estrelinhas” (de Anacleto Medeiros”) e “Floraux” (Ernesto Nazareth), o maxixe “Bordões ao Luar” (Tia Amélia) e a valsa “Terna Saudade” (outra de Anacleto Medeiros).

Músicos de personalidades e formações diferentes, o eclético André e o chorão convicto Danilo se completam muito bem nesse duo. Até nas releituras mais livres de alguns choros, como “Cochichando” e “Ingênuo” (ambos de Pixinguinha), Danilo dedilha seu bandolim, mantendo ao menos um dos pés no chão. Já André parece sempre disposto a voar mais e mais nas variações melódicas e nos inusitados improvisos.

Bem humorados, os dois também se divertem contando causos ao introduzir as músicas e os autores do repertório. E não bastasse a hilariante releitura do choro “Tenebroso” (Ernesto Nazareth), cheia de efeitos dramáticos, já quase ao final da apresentação a dupla surpreende a plateia com um inesperado duo de bandolins.

E não é que ainda viria mais uma surpresa? Quando alguns já se preparavam para levantar, André anunciou a bela e quase inédita valsa-choro “Impermanências” (veja vídeo abaixo), que compôs em homenagem ao pai de Danilo, morto meses atrás justamente no dia de um show da dupla. Que noite!

Mais um detalhe. Não pude ficar, infelizmente, para o show do Carlos Malta Quarteto, que iria inaugurar a repaginada Sala JazznosFundos, mas em conversa com Miguel Lopez, diretor da casa, soube dos planos para esse espaço, que funciona no subsolo do CCMI. A ideia é transformá-lo em ponto de encontro de músicos e fãs da música instrumental, promovendo “jam sessions” após os shows diários, que podem se estender pelas madrugadas já que essa sala conta com isolamento acústico. 



Centro Cultural da Música Instrumental: fãs do jazz ganham novo espaço em São Paulo

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                                                                           O naipe de saxofones da Banda Mantiqueira

Três noites de shows com a Banda Mantiqueira, o duo André Mehmari e Danilo Brito ou o Carlos Malta Quarteto, entre outras atrações, já renderiam um compacto e atraente festival. Mas o Centro Cultural da Música Instrumental, que será inaugurado no dia 16/6, em São Paulo, promete mais.

Instalado no mesmo local onde funcionou por quase uma década o informal JazznosFundos, esse novo complexo de três andares, com duas salas de shows e um restaurante, pretende oferecer mais opções e conforto aos apreciadores da música instrumental e do jazz, que frequentavam suas despojadas instalações, no bairro paulistano de Pinheiros.

Além do repaginado JazznosFundos, que funcionará no subsolo do CCMI, o espaço Sala do Autor, no andar térreo, vai servir de palco para shows de música instrumental autoral, com ênfase nos ritmos brasileiros.

As atrações de abertura do CCMI já antecipam seu estilo de programação. No dia 16/6 (quinta), às 21h, o pianista André Mehmari (na foto abaixo) e o bandolinista Danilo Brito inauguram a Sala do Autor; às 23h, a Sala JazznosFundos abre suas portas com o quarteto do flautista Carlos Malta.  


As bandas Aláfia e Batanga & Cia dão sequência a essa programação, no dia 17/6 (sexta), às 21h e 24h, respectivamente, em noite dedicada à música brasileira com influências afro-cubanas. No sábado, 18/6, às 21h, apresenta-se a Banda Mantiqueira, que está gravando seu novo disco. Já às 24h toca o Udovic Trio, recém-chegado de turnê pela China, que reúne os paulistas Emerson Udovic (guitarra) e Leonardo Susi (bateria) com o pianista norueguês Steinar Nickelsen.

“Queremos dar continuidade ao que o JazznosFundos já desenvolvia, agora em maior escala: grandes nomes, jovens artistas, projetos consagrados ou experimentais”, resume a programadora Luiza Morandini, que assina a curadoria musical da casa. “O CCMI buscará compor uma programação de referência, contribuindo para ações de formação de público e para o surgimento ou manutenção de um cenário mais criativo da música na cidade”.

Workshops e palestras também farão parte dos eventos organizados pelo CCMI, que promete disponibilizar parte de seu acervo de shows gravados no JazznosFundos para audição no local. Instalado no terceiro andar, o restaurante La Barceloneta, com cardápio inspirado pela culinária espanhola, tem inauguração prevista para agosto. 


O Centro Cultural da Música Instrumental vai funcionar na rua Cardeal Arcoverde, 742 (em Pinheiros, zona oeste de São Paulo). A entrada pelo estacionamento fica na rua João Moura, 1076. Mais informações no jazznosfundos.net

John Pizzarelli: guitarrista põe jazz e bossa nova no pop de Paul McCartney

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                                                                                      O guitarrrista e cantor John Pizzarelli

Imagine a surpresa de um músico de jazz ao receber uma mensagem de um popstar como Paul McCartney, sugerindo que grave um disco com releituras de suas canções pós-Beatles. O eleito foi John Pizzarelli, 56, guitarrista e cantor norte-americano, que a plateia paulistana já se acostumou a aplaudir, quase todos os anos, desde 1996.

A sugestão do ex-beatle se concretizou no álbum “Midnight McCartney”, ainda não lançado no mercado brasileiro, cujo repertório Pizzarelli vai exibir em turnê de shows por quatro capitais: São Paulo (dia 7, no Bourbon Street; dia 12, no Teatro Bradesco), Porto Alegre (dia 9, no Teatro Bourbon Country), Belo Horizonte (dia 10, no Land Spirit Club) e Rio de Janeiro (dia 11, no Vivo Rio).

“Foi muito excitante receber essa proposta de Paul McCartney, um de meus cinco heróis na música”, diz o jazzista, falando à "Folha" por telefone, de Nova York. “Mas recordo que também foi muito excitante, em outros momentos de minha carreira, receber telefonemas de Natalie Cole, de Rosemary Clooney ou James Taylor, dizendo que admiravam o que eu faço na guitarra”, comenta.

Lembrando da experiência de já ter gravado um bem-sucedido álbum com releituras de canções da dupla Lennon & McCartney (“Meets the Beatles”, lançado em 1998), Pizzarelli diz não ter sentido qualquer tipo de pressão para gravar algo que, necessariamente, agradasse ao compositor britânico.

“Paul também já conhecia as versões que já fiz para canções de Frank Sinatra, de James Taylor ou de clássicos da bossa nova. Isso é o que eu faço para viver há muito tempo, portanto só me preocupei em produzir o melhor disco que pudesse”, afirma o guitarrista.

No repertório, canções mais ou menos conhecidas de McCartney, como “Hi Hi Hi”, “Let 'Em In” ou “Heart of the Country”, ganharam um tratamento jazzístico. Já “Silly Love Songs” e “My Valentine” aparecem em sofisticados arranjos com sabor de bossa nova, uma das paixões musicais de Pizzarelli.

“O brilho da música brasileira continua me deslumbrando até hoje”, diz o norte-americano, que lançou em 2004 o álbum “Bossa Nova”, com releituras de clássicas canções de Tom Jobim, Newton Mendonça e Vinicius de Moraes, entre outros autores. “É muito bom pensar que já estive 15 ou 16 vezes no Brasil, onde tenho vivido experiências maravilhosas”.

Para mais esta temporada brasileira, o cantor e guitarrista virá acompanhado por um quarteto, que inclui os músicos Paul Keller (baixo acústico), Konrad Paszkudziki (piano) e Kevin Kanner (bateria).

Dez anos após ter se apresentado (em outra entrevista que fiz com ele para a "Folha") como “um músico de jazz que gosta de entreter plateias”, Pizzarelli confirma que essa definição pessoal ainda continua válida, embora já tenha uma intenção a mais.

“Hoje meu objetivo já não é apenas entreter os fãs de John Pizzarelli, mas sim agradar aquele amigo que um fã levou para assistir meu show. Agora minha tarefa é conseguir que esse amigo saia contente do show por ter me conhecido”, conclui, rindo.


(Entrevista publicada no jornal "Folha de S. Paulo", em 7/06/2016)

 

Michel Camilo: expoente do jazz latino, pianista dominicano toca no Brasil

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                                            O pianista e compositor Michel Camilo, da República Dominicana

Se você já teve a oportunidade de ouvir Michel Camilo tocar, sabe que se trata de um músico excepcional. A energia que esse pianista e compositor da República Dominicana exibe nos palcos e gravações é tão contagiante quanto a suavidade de suas românticas baladas. Marcante também é a diversidade que caracteriza sua concepção musical: jazz, ritmos caribenhos e música clássica convivem sem preconceitos em suas apresentações.

“Acredito que hoje, em pleno século 21, as barreiras entre os gêneros musicais já não são mais as mesmas do passado”, diz ele, falando ao “Valor” por telefone, de Nova York (EUA), onde vive desde o final dos anos 1970. “Eu me sinto abençoado por ser convidado a tocar em muitos festivais de música pelo mundo, não só festivais de jazz, assim como sou convidado a tocar com orquestras sinfônicas”.

Difícil entender porque um músico desse quilate ficou distante de palcos brasileiros por mais de duas décadas. No Free Jazz Festival de 1992, ele impactou paulistas e cariocas com seus improvisos frenéticos – antes havia tocado somente em São Paulo, em 1985, como integrante do quinteto do cubano Paquito D’Rivera. Finalmente, Camilo vai quebrar esse longo hiato com dois concertos de piano solo: dia 14/6, no Teatro Renault, em São Paulo; e dia 19/6, no Theatro Municipal do Rio de Janeiro.

Conhecido por sua preferência por trios, ele explica porque tem se dedicado mais ao piano solo, nos últimos anos – por sinal, retornou há pouco de uma turnê pela Europa, onde fez quatro concertos com esse formato. “Tocar piano solo proporciona muita liberdade, mas também é um grande desafio. Demorei para me dedicar ao piano solo porque queria fazer algo pessoal. Minha abordagem é orquestral: toco o piano pensando em termos de texturas, de cores”, justifica.

Lançado em 2013, seu álbum mais recente –- “What’s Up?”, premiado com o Grammy Latino, na categoria “melhor álbum de jazz latino” –- também adota o formato do piano solo. No repertório, Camilo combina composições de sua autoria com releituras de clássicos do jazz e da canção norte-americana, como “Take Five” (de Paul Desmond) e “Love for Sale” (Cole Porter).

A exemplo de outros jazzistas, que só definem o que vão tocar ao sentir o calor da plateia, Camilo não tem o hábito de anunciar previamente o repertório de seus concertos. “Costumo entrar no palco com o que chamo de ‘lista de compras’, como se eu fosse a um supermercado”, diverte-se. “Nessa relação há sempre muitas opções para que eu possa escolher o que vou tocar”.

Mesmo assim, ele admite que nessa lista há pelo menos um item bem frequente em suas apresentações. “Nem sempre faço isso, mas gosto de abrir os concertos de meu trio com uma composição intitulada ‘From Within’, que fiz especialmente para o filme ‘Calle 54’, do cineasta espanhol Fernando Trueba. Ela é uma espécie de suíte, que funciona como uma demonstração de minha música, porque inclui o jazz, o ritmo latino e o sabor de música clássica”.

Segundo Camilo, essas facetas de sua obra (já registrada em 24 álbuns) o acompanham desde muito cedo. “Tive a sorte de crescer em uma família de músicos, que contribuíram bastante para eu ser como sou. Minha tia era professora de piano clássico; meu tio foi pianista de música popular. Portanto, já conheci os dois supostos lados da música – o clássico e o popular – em minha própria família”, observa.

“A formação clássica, aliás, me ajudou bastante a aprimorar a técnica no instrumento, algo importante para poder expressar o que há dentro de você”, ensina o pianista, que chegou a praticar artes marciais para desenvolver sua impressionante técnica ao piano. “Frequentei durante mais de dez anos uma ótima escola de twaekondo, em Nova York. As aulas me ajudavam a ter mais contato com o meu corpo, mas tive que parar porque minha mulher ficava muito preocupada com as minhas mãos”.

A música brasileira também está entre suas preferências. “Se você der uma olhada em meu repertório, vai ver que eu já compus sambas, bossas lentas, até baião e partido alto. Acho a música brasileira maravilhosa. Essa paixão vem dos tempos de minha adolescência, em Santo Domingo, onde eu costumava ouvir vários programas de rádio dedicados à música brasileira”, relembra.

Adepto da improvisação constante, Camilo encara suas apresentações como obras compostas na frente do público. “Penso que um concerto é como um livro aberto para muitas possibilidades. Os capítulos desse livro serão as canções que vou tocar. A ideia é captar a atenção da plateia do início ao fim. Se ela me seguir desde o prólogo até o epílogo, vou ficar bem satisfeito”, conclui o pianista.

(Entrevista publicada no jornal "Valor", em 3/06/2016)

Areia e Grupo de Música Aberta: improvisação e som instrumental com sotaque nordestino

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                           Ivan do Espírito Santo (esq. para dir.), Walter Areia, Cássio Cunha e Julio Cesar  

Nos  Estados Unidos ou na Europa, a música instrumental do contrabaixista e compositor Walter Areia seria, certamente, rotulada como jazz. Mas o ex-integrante da banda recifense Mundo Livre S/A, expoente do movimento Mangue Bit, prefere chama-la de “música aberta”.

Formado em 2009, o quarteto liderado por Areia já nasceu com a consciência de que a improvisação não é um recurso de composição musical instantânea utilizado somente pelos jazzistas.

“O conceito de ‘música aberta’ dá nome a uma forma mais ancestral de improvisação, onde motes musicais reaparecem após cada solo – mesmo formato das pelejas entre cantadores da poesia popular nordestina”, justifica o baixista.

Como ele, os músicos do grupo trazem experiências com outros projetos e segmentos da cena musical de Pernambuco. O saxofonista e flautista Ivan do Espírito Santo também é arranjador e maestro da Orquestra Contemporânea de Olinda. O acordeonista Julio Cesar integra a SpokFrevo Orquestra. Cássio Cunha também é baterista da banda de Alceu Valença.  
 

“Ao Vivo”, segundo álbum do Areia e Grupo de Música Aberta, reúne seis faixas (todas compostas pelo líder) extraídas do DVD que o quarteto lançou em 2014. O áudio original foi remixado e remasterizado para download em formato digital de alta resolução.  


A presença do acordeom é essencial no conceito musical do grupo, não só como instrumento harmônico, mas também no sentido de trazer uma sonoridade levemente nordestina, diferente daquela que nos acostumamos a ouvir em quartetos de jazz com piano.  


O som encorpado do baixo acústico de Areia introduz a faixa inicial, “Maracatu de Baque Etereo”. A melodia revela um tom de melancolia, presente em outros temas do álbum, que o solo de Espírito Santo, improvisador criativo, dissolve.  

Em “Teus Pés”, é um contagiante ritmo de caboclinho que deflagra os improvisos de soprano e acordeom. “Do Início ao Fim de Tudo” chega como um vendaval, mas logo resgata a atmosfera melancólica. No solo, o acordeonista cita até um fragmento melódico da triste toada “Assum Preto” (Luiz Gonzaga).  

  Seja chamada de jazz ou de música aberta, o fato é que Areia e seus parceiros fazem música instrumental de qualidade, com um original sotaque nordestino. Com um pouco de sorte, esse projeto pode até leva-los a países que valorizam mais a música sem palavras.

(Resenha publicada na "Folha de S. Paulo", em 1º/06/2016)

 

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