Nailor Proveta: clarinetista estreia como compositor "erudito" em concerto da Osesp

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Nailor "Proveta" Azevedo ainda se emociona ao se lembrar da primeira vez em que tocou com uma orquestra. Em 1974, aos 13 anos, saiu da interiorana cidade de Leme (SP) para tentar a carreira musical na capital paulista, já com fama de prodígio (o apelido que o acompanha até hoje vem dessa época, quando os colegas o chamavam de "bebê de proveta"). Durante o ensaio de um programa da antiga TV Tupi, o maestro Luiz Arruda Paes escreveu alguns compassos para que ele pudesse tocar com o naipe de saxofones da orquestra da emissora, do qual fazia parte o lendário sax alto Casé.

"Quando ouvi o som do naipe, disse para mim mesmo: é isso o que eu quero!", relembra Proveta, hoje um dos saxofonistas e clarinetistas mais requisitados na área do choro e da música instrumental brasileira, além de líder e arranjador da conceituada Banda Mantiqueira. "Para mim, o prazer de tocar com outras pessoas é fundamental. Já sentia isso aos sete ou oito anos, quando tocava com minha banda de coreto, mas ainda não entendia por que às vezes caíam lágrimas dos meus olhos. Na minha cabeça, eu estava tocando com uma orquestra sinfônica. Esse prazer eu carrego comigo até hoje."

No dia 1º de maio, Proveta voltará a desfrutar o prazer de realizar algo inédito em sua carreira musical: intitulada "Concertino Forma-Choro", sua primeira composição orquestral será interpretada pelo trompetista Flávio Gabriel e pela orquestra de cordas da Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo (Osesp), em estreia mundial, na Sala São Paulo. "Nessa peça, procurei reviver minha história, indo ao encontro de Pixinguinha, de Ernesto Nazareth e Chiquinha Gonzaga, compositores do início do choro, que me influenciaram profundamente. Não só eu, mas o Brasil tem gratidão enorme por esses autores que organizaram essa música que veio da Europa com a habanera e a polca."

Ao reverenciar seus mestres do universo do choro, nessa composição que o ocupou durante quatro meses, Proveta revela sua intimidade com a linguagem da música clássica. Em algumas passagens, remete-se ao barroco de Bach (1685-1750) e às ambiências sonoras do romântico Richard Strauss (1864-1949), assim como demonstra sua admiração pelas orquestrações impressionistas de Maurice Ravel (1875-1937) e pela rítmica nacionalista de Heitor Villa-Lobos (1887-1959).

"Meu pai me ensinou a ouvir todos os gêneros musicais. Em casa escutávamos muito choro, uma grande paixão dele, assim como as orquestras de Pérez Prado, de Sylvio Mazzuca ou a Tabajara, de Severino Araújo. E na banda do coreto, aos nove anos, já tocava trechos de óperas de Verdi e Carlos Gomes", conta o precoce músico de sopro, que também descobriu o jazz graças aos discos que "seu" Geraldo Azevedo levava para casa. Alguns deles, como a trilha sonora que Henry Mancini compôs para o filme "A Pantera Cor de Rosa" ou "West Coast Jazz in Hi-Fi", do arranjador californiano Bill Holman, seguem até hoje em sua memória.

Com uma formação tão eclética, é natural que Proveta não concorde com a separação que muitos ainda estabelecem entre a chamada música erudita e a popular. "Tenho a impressão de que, em nosso país, sempre se olhou para a música dividindo-a em pedaços, em compartimentos. Gosto de pensar que não existem divisões na música, adoro olhar para a música como um todo. Assim você não tem limites para compor ou tocar. Quando você encontra a liberdade de se expressar por meio de cores, de detalhes, isso que se costuma chamar de clássico ou popular não faz mais sentido", afirma.

Essa visão ampla e sem preconceitos tem levado Proveta a realizar projetos nos quais gêneros musicais aparentemente estanques se relacionam de maneira criativa. O mais antigo e duradouro desses projetos é a própria Banda Mantiqueira, em cujo repertório sambas, choros e baiões convivem com canções brasileiras e temas jazzísticos. Proveta fundou essa banda em 1991 com parceiros de outras big bands e orquestras das quais participara, como a Banda Savana, a Banda Aquarius e a Sambop Brass. Além de lançar os álbuns "Aldeia" (1996), "Bixiga" (2000) e "Terra Amantiquira" (2005), a banda também já gravou três CDs em parceria com a Osesp.

"A Banda Mantiqueira é um resultado das influências que recebemos da Orquestra Tabajara, do Severino Araújo, e da banda do [jazzista americano] Thad Jones, que ouvíamos muito, principalmente pela força de seus arranjos. Acho que conseguimos transmitir um pouco dessa força nos arranjos da Mantiqueira. Mais tarde chegou o Edson Alves, que trouxe para o repertório da banda o formato da canção. Sou aquele que joga mais lenha na fogueira, para não perder a pegada de músico [nos improvisos]. Aliás, isso eu não quero perder jamais, se não vou virar apenas um compositor", comenta o clarinetista.

Curiosamente, embora tenha sido um músico precoce, além de já ter participado de centenas de sessões de gravação com instrumentistas e cantores de vários gêneros, Proveta demorou a gravar seu primeiro disco individual. "Tive que passar por várias fases em minha carreira, como músico, como arranjador, como líder da Banda Mantiqueira, ou mesmo como professor, para poder enfim começar a gravar meu trabalho mais pessoal."

Lançado em 2007, "Tocando para o Interior" (selo Núcleo Contemporâneo) não poderia ser mais característico da sensibilidade musical de seu criador. Nele Proveta recriou a atmosfera sentimental dos coretos de cidades interioranas, como em um filme de época. Para isso resgatou choros, valsas e dobrados, que tocava durante a infância, em Leme. Mesmo nas composições que fez especialmente para esse projeto, teve o cuidado de utilizar nos arranjos uma instrumentação capaz de reproduzir as ambiências sonoras da época.

"Um bolo só acontece se você usar os ingredientes certos e equilibrados", compara o músico e arranjador, que usou uma concepção sonora semelhante em seu álbum seguinte, "Brasileiro Saxofone" (selo Acari), em 2009. Nesse projeto, interpreta temas clássicos do repertório brasileiro para o sax (alto, tenor ou soprano), assinados por Pixinguinha, K-Ximbinho, Moacir Santos e Luís Americano, entre outros. Em vez de focar apenas o papel de solista assumido por esse instrumento, Proveta e seus parceiros Maurício Carrilho e Paulo Aragão escreveram arranjos que criam coloridos particulares para cada faixa.

Previsto para o segundo semestre, "Brasileiro Saxofone - Volume 2" combina choros clássicos de Pixinguinha e Radamés Gnattali com composições próprias. "Se o primeiro volume tinha um conceito mais camerístico, o segundo terá formações maiores, quase orquestrais", antecipa Proveta, revelando que já tem planos para outro álbum. "Um dia ainda quero fazer um disco em que eu apresente todas as linguagens que já experimentei", diz, sonhando com a união definitiva de todas as vertentes musicais.

(Texto publicado no caderno Eu & Fim de Semana, do jornal “Valor”, em 8/4/2011)

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