Jazz, samba, soul, choro, blues, bossa nova, salsa, MPB, instrumental, R&B, funk, hip hop e outras vertentes musicais, em dicas, resenhas, entrevistas e coberturas de festivais
por Carlos Calado
Quem sou
Jornalista, editor e crítico musical, escrevo sobre festivais, shows e discos. Desde meados dos anos 1980 tenho acompanhado profissionalmente a produção fonográfica brasileira e eventos musicais em diversos países. Faço palestras sobre música, curadorias e já dirigi projetos para o Sesc SP. Sou autor dos livros "Tropicália: a História de Uma Revolução Musical", "A Divina Comédia dos Mutantes", "O Jazz como Espetáculo" e "Jazz ao Vivo", entre outros. Colaboro eventualmente para os jornais "Folha de S. Paulo" e "Valor". Nos shows e festivais que acompanho, gosto de fotografar músicos que admiro.
Aos 24 anos, ele representa como nenhum outro músico jovem de Nova Orleans o destaque que essa cidade, conhecida como “berço do jazz”, tem conquistado nos EUA e na mídia internacional, especialmente após a estréia da série de TV “Tremé” (produção do canal pago HBO) e a inusitada vitória dos Saints, o time local de futebol americano, no Superbowl.
Mais conhecido como Trombone Shorty, o músico Troy Andrews acaba de lançar “Backatown” (selo Verve Forecast/Universal), seu primeiro CD produzido e distribuído por uma gravadora multinacional, com participações do astro pop Lenny Kravitz e do pianista Allen Toussaint, veterano da música local. No próximo domingo, esse trombonista e compositor se apresenta com sua banda Orleans Avenue no encerramento da 41ª edição do New Orleans Jazz & Heritage Festival, um dos maiores eventos musicais do mundo, onde tocou pela primeira vez com apenas 4 anos de idade.
“O Jazz Fest, como o chamamos em Nova Orleans, é muito importante em vários aspectos, não só para a economia da cidade, mas também para seus músicos”, diz Shorty, em entrevista à Folha. “Centenas de milhares de pessoas, vindas de muitos lugares, freqüentam nosso festival todos os anos. Além de se apaixonar pela cidade, elas descobrem os artistas e bandas locais e assim começam a acompanhar suas carreiras”.
Shorty, que atuou em alguns episódios de “Tremé”, se mostra bastante excitado pela repercussão da série. “Acho que ‘Tremé’ está contribuindo para que Nova Orleans seja colocada de uma vez por todas no mapa. Já era tempo de nossa cultura receber o reconhecimento que ela merece há mais de um século”, afirma o músico, que nasceu e cresceu nas proximidades da área de Tremé, subdistrito de New Orleans, retratada pela série.
Com shows confirmados em São Paulo, no próximo Bourbon Street Fest (de 14 a 22/8), Shorty avisa que trará ao Brasil a mesma banda e basicamente o mesmo repertório que vai exibir no festival de Nova Orleans. “Nosso som é extremamente dançante e energético. Nós o chamamos de ‘supafunkrock’, porque mistura rock, soul e funk com muita energia. Será uma festa tão animada quanto o carnaval do Brasil ou o de Nova Orleans”, compara.
Um dos raros músicos da Louisiana contratado hoje por uma grande gravadora, com distribuição internacional, Shorty também vai participar nesta semana do Sync Up, um simpósio anual sobre o mercado da música, que acontece em Nova Orleans. Sua carreira será debatida como um caso de sucesso.
“Só tenho 24 anos, mas comecei cedo e já tenho bastante para contar”, diz, consciente que já se transformou em um modelo imitado por muitos garotos da cidade que pretendem ser músicos. “Essa é outra razão pela qual quero progredir cada vez mais em minha carreira. Meu instrumento já me abriu muitas portas, é o meu passaporte”.
O New Orleans Jazz & Heritage Festival segue de hoje a domingo, com shows de Aretha Franklin, Elvis Costello, Pearl Jam. B.B. King e Wayne Shorter entre outros destaques. A expectativa é de que o evento bata seu recorde de público, aproximando-se de 600 mil expectadores.
Texto publicado parcialmente na "Folha de S. Paulo", em 29/04/2010
Como no território do futebol, onde de tempos em tempos as atenções se concentram em um artilheiro jovem e surpreendente, capaz de aterrorizar os defensores de qualquer equipe, algo semelhante acontece hoje nos círculos do jazz. Foi assim também no final dos anos 1940, quando o trompetista Miles Davis desafiou a hegemonia do moderno bebop com a contensão elegante de seu cool jazz. Na virada para a década de 1960, nenhum jazzista causou tanta polêmica quanto o saxofonista Ornette Coleman, pioneiro do transgressivo free jazz. Já nos anos 1980 coube ao também jovem e articulado trompetista Wynton Marsalis a missão de atrair novos fãs para esse gênero, resgatando o jazz clássico de Louis Armstrong e Duke Ellington.
Ainda é um pouco cedo para se afirmar que o trompetista Christian Scott, destaque da próxima edição do festival Bridgestone Music (de 19 a 22 de maio, no Citibank Music Hall, em São Paulo), vai desempenhar um papel tão importante quanto os dos artistas citados. Mas algo é certo: desde que lançou “Rewind That”, seu álbum de estréia, que lhe rendeu uma indicação ao prêmio Grammy de 2005, esse músico e compositor de 27 anos vem provocando discussões nos meios jazzísticos, além de despertar o interesse dos conhecedores desse gênero. Tanto é que, no ano passado, foi eleito “melhor trompetista em ascensão” pelos críticos da influente revista “Down Beat”.
“Acho que o papel de Wynton e de outros músicos daquela época foi importante naquele momento. De certa maneira eu concordo que aquilo era necessário, mas aquele tempo já se foi”, afirma Scott, em entrevista ao Valor, referindo-se à atitude conservadora de Marsalis e seus colegas de geração, os chamados “young lions”. O fato de ter uma relação de amizade com Marsalis – ambos nasceram na mítica cidade de New Orleans, considerada o “berço do jazz” – não impede Scott de replicar as críticas que já ouviu do colega. “Ele disse que minha música não era jazz porque não tinha swing. Respondi que Louis Armstrong, Kid Ory, Jelly Roll Morton e outros músicos pioneiros de New Orleans também não eram jazzistas, já que o swing foi inventado mais tarde, em Kansas City, na década de 20. Wynton ficou passado ao ouvir isso. Pela primeira vez vi um cara negro ficar vermelho”, diverte-se Scott.
Essa irreverência, semelhante à que Robinho e Neymar têm exibido nos campos de futebol, é um traço constante na personalidade desse músico, que prefere não ser chamado de jazzista. “Não gosto de ser rotulado de forma alguma. Dizer que eu sou um músico de jazz diz tanto sobre mim quanto falar que eu sou americano ou negro”, justifica. Mesmo assim, o ex-aluno das conceituadas Nocca (escola de artes de New Orleans) e Berklee College (faculdade de música de Boston) não chega a ser tão radical quanto Miles Davis, que considerava racista o termo jazz. Pergunte a Scott o que o jazz representa em sua concepção musical e a resposta virá em uma palavra: “liberdade”.
Por essas e outras, o recém-lançado CD “Yesterday You Said Tomorrow” (selo Concord Jazz), quarto álbum de Scott, ainda inédito no Brasil, promete provocar mais controvérsia, não só pela atitude nada convencional desse músico em relação à linguagem sonora e à tradição do jazz, mas também pelo fato de abordar temas polêmicos.
Esse é o caso da faixa de abertura, a tensa “K.K.P.D.”, inspirada em um caso de preconceito racial vivido pelo trompetista, em 2008. Scott dirigia de madrugada, em New Orleans, voltando de um show com a banda Soulive, quando foi parado pela polícia local. Nove policiais o arrancaram do carro, apontando armas, e o empurraram no capô. Ao reclamar por ser chamado de “negrinho”, ainda ouviu uma ameaça: se não se calasse, sua mãe teria que “ir buscá-lo no necrotério”.
“Não há maneira melhor de transmitir uma mensagem do que por meio de uma canção”, diz ele, explicando que o título de sua composição “K.K.P.D.” significa “Departamento de Polícia da Ku Klux Klan” – referência à organização racista americana que defende a supremacia dos brancos protestantes. Adepto da arte como veículo para a abordagem de questões sociais, mesmo tendo saído de sua cidade natal para estudar na costa leste, Scott não deixou de abordar a tragédia desencadeada pelo furacão Katrina, que quase destruiu New Orleans, em 2005.
No ano seguinte, entre outras menções ao episódio, incluiu a composição própria “Katrina’s Eyes” em seu álbum “Anthemn” (Concord Jazz). “É trágico constatar que só depois de algo tão horrível a cidade começa a conquistar o interesse que merece”, observa o músico, que ainda conserva sua casa em New Orleans, mas passa a maior parte do tempo em Nova York ou viajando, como numa recente série de apresentações que fez pela Europa.
Dono de uma bela sonoridade ao trompete, que chega a lembrar a de Miles Davis (referência mais ou menos evidente em algumas de suas composições), Scott assume ter recebido também influências da música dos anos 1960 -- não só do jazz de John Coltrane e Charles Mingus, mas também de dois ícones do rock e do pop: o compositor Bob Dylan e o guitarrista Jimi Hendrix.
“Sinto falta da convicção que os artistas daquela época tinham. Eles pareciam não se importar com as conseqüências do que faziam. Eu curto isso”, explica. Assim, não é por acaso que, no álbum “Yesterday You Said Tomorrow”, a guitarra de Matthew Stevens ganha destaque nos improvisos e na ambientação sonora. Chama atenção também a hipnótica versão de Scott para “The Eraser”, canção de Thom Yorke, vocalista da banda de rock Radiohead.
(texto publicado originalmente no caderno "Eu & Fim de Semana", do jornal "Valor Econômico", em 16/4/2010)
Jazz, soul, rhythm & blues, gospel, funk. Diversas correntes da música negra norte-americana contemporânea vão estar bem representadas na terceira edição do Bridgestone Music Festival, de 19 a 22 de maio, no Citibank Hall, em São Paulo. Se você foi um dos felizardos que, no ano passado, assistiu aos disputados shows de Jimmy Cobb & The So What Band (na comemoração dos 50 anos do álbum “Kind of Blue”, de Miles Davis), da dupla de soul-jazz Tok Tok Tok, da diva do rhythm & blues Bettye LaVette ou da ótima cantora de jazz René Marie, nem preciso dizer que é melhor garantir já seus ingressos.
Com quatro noites, neste ano o festival destaca outras atrações de prestígio na cena atual do jazz, como o veterano pianista Ahmad Jamal (que já brilhou por aqui no Tim Festival de 2006 e no pioneiro Festival Internacional de Jazz de São Paulo, em 1978). O recém formado The Overtone Quartet reúne instrumentistas de ponta nesse gênero: Dave Holland (contrabaixo), Jason Moran (piano), Chris Potter (sopros) e Eric Harland (bateria).
O pianista Uri Caine e o clarinetista Don Byron, que já tocaram juntos muitas vezes, retornam como líderes de inventivos projetos de fusão do jazz com o soul ou com o gospel, contando com vocalistas inéditas por aqui: Barbara Walker (vale a pena conferir o vídeo acima, com ela e Uri Caine) e DK Dyson. O time de cantoras do festival inclui ainda as talentosas Dee Alexander (revelação da cena jazzística de Chicago) e Melissa Walker, canadense que vai dividir o palco com o maridão Christian McBride, fera do baixo acústico.
De essência jazzística também são as releituras da banda argentina Escalandrum para clássicos do “nuevo tango” do mestre Astor Piazzolla, do qual o líder e baterista Daniel “Pipi” Piazzolla é neto. Para outras informações, ouvir gravações e ver mais vídeos desses artistas, confira o site do evento: www.bridgestonemusic.com.br
Quem ouve o CD do veterano cantor e gaitista Grandpa Elliott sem conhecer sua história, jamais vai imaginar que ele cantou durante quase seis décadas em troca de gorjetas, na área turística do French Quarter, em New Orleans, no sul dos Estados Unidos. Em 2009, ao aparecer em um vídeo da canção “Stand by Me”, que o projeto Playing for Change transformou em hit mundial com o auxílio da internet, esse artista de rua teve enfim a chance de entrar num estúdio e gravar seu primeiro álbum ("Sugar Sweet", lançamento Universal), ao lado de músicos de várias nacionalidades. E depois ainda saiu fazendo shows pelo país.
A gaita blueseira de Elliott se destaca em várias faixas do álbum, como no clássico “Baby, What You Want Me to Do” e na dançante gravação ao vivo de “Fannie Mae”. Mas o que mais chama atenção é mesmo o vozeirão encorpado e expressivo de Grandpa, seja na saborosa releitura do blues “Ain’t Nothing You Can Do”, temperada pelas guitarras dos africanos Jason Tamba e Louis Mhlanga, ou no tratamento soul que empresta à emotiva “Please, Come Home for Christmas”. Uma história perfeita para ilustrar o ditado "jamais desista do seu sonho".
Revelação recente da música do arquipélago de Cabo Verde, a cantora Mayra Andrade se superou em seu segundo álbum. Para produzi-lo, convidou o brasileiro Alê Siqueira (conhecido por trabalhos com os Tribalistas e Omara Portuondo), que soube ajudá-la a encontrar um formato sonoro leve e sofisticado para realçar sua voz doce.
Eclético, o repertório de Mayra, que também é compositora, mistura gêneros cabo-verdianos, como a delicada morna “Lembránsa” e o encantador funaná que dá título ao álbum, com influências jazzísticas, cubanas e brasileiras. Algumas gravações, por sinal, foram feitas no Rio e em São Paulo, contando com Jaques Morelenbaum (cello), André Mehmari (piano) e Swami Jr. (violão), entre outros craques daqui. Não é à toa que a música dessa cubana de nascimento, que cresceu em Cabo Verde e hoje vive em Paris, deixa no ar uma sensação difusa e agradável de familiaridade, como a de se encontrar um parente desconhecido pela primeira vez. (resenha publicada no "Guia da Folha - Livros, Discos e Filmes", de 26/03/2010)