Discos: samba-jazz nos CDs do trombonista Jorginho Neto e do quinteto No Olho da Rua

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                                                          O trombonista Jorginho Neto / Foto de divulgação

Talvez nem mesmo os músicos ou os apreciadores que acompanhavam as efervescentes “jam sessions” do Beco das Garrafas, no Rio, no início da década de 1960, imaginaram que o samba-jazz seria tão bem sucedido. Hoje, cinco décadas após sua eclosão, essa variante instrumental da bossa nova não só continua a ser cultivada, como exerce um fascínio especial sobre músicos mais jovens.

Isso é evidente em “Samba-jazz” (independente), o álbum de estreia do trombonista paulista Jorginho Neto. Na frenética “Edinho Sapato Branco” (composição do baixista Marcos Paiva), ele esbanja talento e técnica, em um improviso de tirar o fôlego. A envolvente “Pica Pau” (Rubinho Antunes) tem sabor de gafieira. Já na lenta balada “Lia” (de sua autoria), Jorginho combina lirismo e sensibilidade. Seu álbum justifica os elogios de Raul de Souza, mestre do trombone e do samba-jazz, incluídos no encarte.

Popular entre os frequentadores do calçadão da praia de Ipanema, onde costuma se apresentar aos domingos, o quinteto No Olho da Rua gravou, em seu álbum “Samba-jazz 40º” (selo Rob Digital), repertório selecionado pelo “expert” Ruy Castro, que destaca “Os Grilos” (de Marcos & Paulo Sérgio Valle), “Quintessência” (J.T. Meirelles) e “Eu e a Brisa” (Johnny Alf). Pena que nem todos os instrumentistas do quinteto demonstram ter recursos musicais suficientes para interpretar esses clássicos do samba-jazz e da bossa como eles mereceriam.


(Resenha publicada no "Guia Folha - Livros, Discos, Filmes", edição de 31/5/2014)
 

BMW Jazz Festival: trompetista Chris Botti estreia seu show "crossover" no Brasil

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Um bem humorado comentário de uma revista de Minneapolis (EUA) sobre o trompetista Chris Botti, anos atrás, continua válido para o público brasileiro. Ao menos até hoje, quando esse fenômeno de vendagem de discos e ingressos de shows entrará no palco do BMW Jazz Festival, em São Paulo.

“Se você nunca ouviu falar sobre Chris Botti, não se surpreenda. Tudo indica que: a) você, provavelmente, é homem; b) não assiste TV durante o dia; c) seu iPod não contém uma pasta de Música Romântica.”

O público feminino estará em peso, certamente, na plateia do HSBC Brasil. Afinal, a boa pinta desse norte-americano de 51 anos também explica seu sucesso, além do som delicado de seu trompete ou do repertório eclético, que inclui canções pop românticas e melodias extraídas de óperas, da música clássica ou de trilhas do cinema – o chamado “crossover”.

“Já toquei aqui, na banda de Paul Simon, em 1991, e na banda de Sting, em 2001, mas para mim será como uma estreia”, disse Botti à "Folha de S. Paulo", referindo-se ao fato de que vai apresentar seu próprio show pela primeira vez no Brasil. Aliás, o que ele tem feito durante a última década, cerca de 300 noites por ano, em grandes teatros, cassinos e clubes lotados pelo mundo.

No palco, além de contar com conceituados músicos de jazz, como Geoffrey Keezer (piano), Billy Kilson (baterista) e Leonardo Amuedo (guitarra), Botti terá convidados especiais: a violinista clássica Caroline Campbell e os cantores Sy Smith e George Komsky.

“Cresci como músico de jazz, mas meu envolvimento com artistas da música pop, como Sting e Joni Mitchell, me mostrou que esse universo tem um nível de sofisticação que pode ser explorado por um jazzista”, diz.

Botti admite que a preocupação em atingir plateias cada vez mais amplas reduziu, progressivamente, a porção jazzística de seu repertório. “Muito do sucesso que consegui nos últimos sete anos tem a ver com meu ingresso no mundo do ‘crossover’ clássico”, reconhece.

“Peças que eu toco hoje, como ‘Time to Say Goodbye’ ou ‘Emmanuel’, já não têm a ver com o vernáculo jazzístico, mas sim com a noção de tocar trompete ao estilo do ‘bel canto’ da música lírica”, explica. “Sou um grande admirador de Miles Davis e de Wynton Marsalis. Aprendi muito com eles, mas hoje meu show está bem mais próximo da música clássica”.


(Reportagem publicada originalmente na "Folha de S. Paulo", em 30/5/2014)

BMW Jazz Festival: Ahmad Jamal traz seu piano sintético e elegante a São Paulo

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Aos 83 anos, ele continua a entusiasmar plateias, em festivais pelo mundo. Seus improvisos sintéticos e elegantes influenciaram até um gênio musical como o trompetista Miles Davis, seu declarado admirador.

O pianista e compositor norte-americano Ahmad Jamal é a atração principal da noite de abertura do 4º BMW Jazz Festival, nesta quinta-feira, no HSBC Brasil, em São Paulo. Quem fecha o programa é o talentoso saxofonista Kenny Garrett.

Falando à "Folha de S. Paulo", Jamal relembrou sua primeira e conturbada apresentação no Brasil, em 1978. “O piano Steinway que estava no palco era tão velho que as teclas ainda eram feitas de marfim. Quando algumas se soltaram, eu as atirei para a plateia, que adorou. Nem pude terminar o concerto”, conta, rindo.

Esse incidente não chegou a prejudicar a relação de Jamal com o Brasil. Tanto é que ele retornou outras três vezes – a última em 2010, quando se apresentou no extinto Bridgestone Music Festival. “Eu já não toco mais em clubes, nem viajo muito para tocar, só mesmo em ocasiões especiais. Estou aqui outra vez porque se trata de um evento especial”, justifica.

Seu quarteto já não é exatamente o mesmo de quatro anos atrás. Além do percussionista Manolo Badrena, seu antigo parceiro, e do baterista Herlin Riley, destaque na cena musical de Nova Orleans, desta vez Jamal trouxe o contrabaixista Reginald Veal.

Nascido em Pittsburgh, onde começou a tocar aos 11 anos, Jamal lidera seus próprios grupos desde 1951. O fato de essa cidade da Pensilvânia ter gerado outros grandes músicos do jazz, como Earl Hines, Billy Strayhorn, Erroll Gardner, Ray Brown ou Art Blakey, não é gratuito, segundo ele.

“Há um livro sobre Pittsburgh intitulado ‘There Must Be Something in the Water’ (deve ser alguma coisa na água). Poucas cidades norte-americanas, como Nova Orleans, Saint Louis, Detroit ou Memphis, revelaram tantos grandes músicos. Chamo isso de fenômeno”, define.

Quem acompanha a discografia de Jamal sabe que os standards e clássicos do jazz foram, progressivamente, cedendo espaço às composições próprias. Pergunte a ele quais são as fontes de inspiração para suas composições e a resposta virá em uma única palavra: “vida”.

“Essa proporção já foi inversa, mas hoje eu dedico 80% de meu repertório às minhas composições e apenas 20% a clássicos do cancioneiro norte-americano. Às vezes, para ser notado, você precisa tocar alguma coisa com a qual pessoas estão familiarizadas, mas o que torna tão extraordinárias as canções de Gershwin e outros desses autores é justamente a nossa interpretação”, afirma.

O fato de Jamal raramente tocar ou gravar canções compostas após os anos 1950, como chegou a fazer com “Michelle” (dos Beatles) ou “Superstitious” (Stevie Wonder), seria uma evidencia de que ele considera inferiores as gerações mais recentes de compositores?

“Estávamos discutindo isso ontem mesmo, no avião. Não sei, mas parece que a era dos músicos revolucionários está desaparecendo. Músicos como Duke Ellington, Charlie Parker, Dizzy Gillespie, John Coltrane e Miles Davis eram revolucionários. Eles ainda existem hoje? Eu continuo procurando-os entre músicos mais jovens”, diz, mencionando a promissora pianista japonesa Hiromi, sua afilhada musical.

E o que Jamal acha de o slogan “less is more” (menos é mais), às vezes mencionado para definir a sintética concepção musical de Miles Davis (com o qual jamais se apresentou ou gravou), ser utilizado também para representar seu estilo de tocar piano?

“Esse princípio também se aplica à alimentação. Se você comer uma torta inteira, pode até ficar doente. Mas se você comer apenas uma fatia por dia, durante 50 anos, tudo bem. Ele se aplica a tudo, mas prefiro chamar isso de disciplina”, conclui o sábio pianista.


Mais informações no site do BMW Jazz Festival

(entrevista publicada na edição online da "Folha de São Paulo", em 29/5/2014

 

Dorival Caymmi: compilação mostra que o compositor é um de seus grandes intérpretes

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Tom Jobim referia-se a ele como “gênio universal”. Na canção-retrato que dedicou a esse mestre da música popular brasileira, Gilberto Gil o chamou de “buda nagô”. Já Carlos Drummond de Andrade destacou, em crônica publicada em 1984, a perenidade da obra desse compositor tão original: “Não há dia seguinte para o cancioneiro Caymmi. A flor que o vento joga no colo da morena de Itapoã não murchou ainda. Murchará um dia? Não creio.”

Cultor da espontaneidade e da síntese, Dorival Caymmi compôs pouco mais de cem canções, em seus 94 anos de vida. Algumas dessas joias musicais só foram concluídas por ele depois de passar anos à espera de uma inspiração definitiva – como o samba-canção “João Valentão”, que levou quase uma década para terminar. Sinal de preguiça no entender de detratores insensíveis, esse fato só revela o grau de perfeccionismo praticado por esse ourives da canção.

Para comemorar o centenário do influente baiano nascido em Salvador, o produtor Carlos Alberto Sion e o músico Henrique Cazes criaram a compilação “Dorival Caymmi 100 Anos”, que reúne em dois CDs um total de 28 faixas. Em meio a intérpretes prestigiosos, como Clara Nunes, Dick Farney ou Elza Soares, além dos talentos dos herdeiros Nana, Dori e Danilo, o próprio Caymmi – talvez o melhor intérprete de suas canções – surge como cantor em 17 gravações.

As faixas não estão organizadas por ordem cronológica, mas a seleção começa justamente com a mais antiga. Gravado em 1939, por Carmen Miranda, o requebrado samba “O Que É Que a Baiana Tem” serviu de veículo para apresentar ao público o então jovem compositor (na época com 25 anos), que dividiu os vocais com a cantora, discretamente, nesse histórico registro.

Algumas faixas depois, na gravação de “Saudade da Bahia” (em 1967), já surge o maduro Dorival, com sua voz grave e dicção perfeita, acompanhado pelas garotas do Quarteto em Cy e uma pequena orquestra. Enfatizando a faceta de intérprete de Caymmi, a compilação inclui também suas versões de dois sucessos de Ary Barroso: o desiludido samba-canção “Risque” e o hoje clássico “Na Baixa do Sapateiro”, ambos gravados em 1958.

Naturalmente, não faltam exemplares das canções praieiras de Caymmi, que o projetaram como um grande compositor de essência popular. “O Mar”, “Promessa de Pescador”, “O Vento (Vamos Chamar o Vento)”, “É Doce Morrer no Mar” e “O Bem do Mar” são ouvidas na voz de seu autor, em gravações originais lançadas no final da década de 1950.

Seus filhos o homenageiam em cinco faixas. Nana imprime emoção ao samba-canção “João Valentão”. Dori empresta seu vozeirão potente à trágica “Sargaço Mar”. Danilo divide com o sambista João Nogueira os vocais em “Fiz Uma Viagem”, um dançante ijexá. Já em um show realizado em 1987, na companhia do pai e dos irmãos, Nana relembra o samba- canção “Só Louco”; finalmente, Danilo e Dori se divertem com a sestrosa receita de “Vatapá”.

Há ainda gravações menos conhecidas, como a versão instrumental do samba-canção “Dora”, com Ary Barroso dedilhando o piano, extraída do inusitado álbum “Ary Caymmi / Dorival Barroso: Um Interpreta o Outro” (1958). Ou a hipnótica gravação de “Cala Boca, Menino”, com sons eletrificados, que João Donato incluiu em seu cultuado álbum “Quem É Quem” (1973).

Tomara que outros projetos voltem a lembrar, neste e nos próximos anos, como Caymmi é uma fonte essencial na cultura musical brasileira.


(Resenha publicada no "Guia Folha - Livros, Discos, Filmes", edição de 26/4/2014)


 

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