Rui Carvalho: diretor do Festival Amazonas Jazz trocou Europa pelo Brasil

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                                       Rui Carvalho rege a Amazonas Band / Foto de Bruno Zanardo / Divulgação 

Quando desembarcou em São Paulo, em 1978, o jovem músico português Rui Carvalho não imaginava que viveria neste país por mais de quatro décadas. Muito menos que se tornaria regente e arranjador da Amazonas Band, a conceituada big band de Manaus (AM), onde também dirige o Festival Amazonas Jazz, um dos principais eventos desse gênero no Brasil.

“A vida é como ela é, não o que a gente imagina”, reflete hoje o maestro, aos 65 anos. Nascido em Lisboa, ele se interessou pelos improvisos do jazz ainda na adolescência. Ficava acordado até a meia-noite para poder ouvir o programa diário “Cinco Minutos de Jazz”, que o radialista José Duarte, pioneiro divulgador dessa vertente musical em Portugal, produz e apresenta desde 1966.

Carvalho também se lembra de como ficou impressionado ao ver e ouvir Miles Davis, na TV portuguesa, no início dos anos 1970. O trompetista americano provocou os fãs e críticos mais conservadores, na época, por ter eletrificado seu jazz. "Miles chamou minha atenção não apenas pela música, mas também pelo layout de seu grupo. Tinha muito a ver com a minha geração, com o rock 'n' blues, com a soul music, com a contracultura do final dos anos 1960".

Antes de se radicar no Brasil, Carvalho também morou na Suécia – solução que encontrou para fugir do serviço militar obrigatório, na época em que Portugal travava uma guerra contra suas antigas colônias na África. “A Suécia era um dos poucos países na Europa que concediam asilo por razões humanitárias”, explica. Se ficasse em Portugal, teria duas opções: ser soldado em uma guerra absurda ou ir para a prisão.

Na pequena cidade sueca de Lund, ele dividia o aluguel com músicos de uma banda de rock. “Era tudo o que eu queria: morava com um bando de americanos desertores da Guerra do Vietnã e tinha aulas de bateria com um deles. A bateria já ficava montada na sala da casa”, relembra, rindo. Além de iniciar seus estudos musicais, também aproveitou os seis anos na Suécia para se formar em Antropologia.

A vontade de voltar a falar português, no dia a dia, pesou na decisão de deixar a Europa. "O Brasil sempre exerceu um certo fascínio sobre mim. Eu já tinha interesse pela música brasileira, mas depois de ouvir 'Dança das Cabeças', o disco de Egberto Gismonti e Naná Vasconcelos, minha vontade de conhecer mais a música e a cultura brasileira aumentou”.

Já vivendo em São Paulo, no início dos anos 1980, Carvalho assumiu a bateria da Salada Mista, orquestra da Fundação das Artes de São Caetano do Sul. Ali se tornou discípulo de Antonio Duran, maestro e arranjador argentino bastante respeitado nos círculos musicais, que o incentivou a se aprofundar em regência e arranjos para big bands. “Aprendi muito com ele”, reconhece.

Disciplinado e persistente, Carvalho lecionou bateria, percussão sinfônica e prática de big band durante 14 anos, no Conservatório de Tatuí (SP). Nessa fase também regeu e escreveu arranjos para a big band Prata da Casa, trabalho que repercutiu nos meios da música instrumental brasileira. Deixou São Paulo em 2001, ao aceitar o desafio de assumir a regência da Amazonas Band.

“A princípio eu deveria ter ficado 18 meses em Manaus, mas lá vão mais de 18 anos”, comenta o maestro, consciente do legado musical que tem construído à frente da big band. Além de fazer concertos regulares, já lançou dois discos com a Amazonas Band, em parcerias com craques da música instrumental: num deles, o saxofonista Vinícius Dorin; no outro, o pianista Gilson Peranzzetta e o flautista Mauro Senise. Também já dividiu palcos com grandes músicos do jazz, como David Liebman, Bob Mintzer, Cláudio Roditi e Jeremy Pelt.

"Uma big band sustentada pelo Estado, que faz sucesso, é coisa rara”, comenta o maestro. “A Amazonas Band resultou muito bem porque não tem apenas um viés de palco – ela também tem um viés educacional. Todos os músicos da banda são muito ativos e contribuíram bastante para desenvolver a educação, no campo da música popular, aqui em Manaus".

Carvalho não esconde sua animação pela retomada do Festival Amazonas Jazz, evento que criou e comandou desde a edição de estreia, em 2006. Suspenso há cinco anos, esse festival vai realizar sua 10ª edição, em Manaus [Obs: evento adiado por causa da pandemia de coronavírus; novas datas serão anunciadas]. A programação segue o formato de anos anteriores, que combina concertos noturnos com uma extensa série de workshops, oficinas e palestras.

Os trompetistas Randy Brecker e Keyon Harrold, os pianistas Aaron Parks e Edsel Gomez, o baterista Jeff “Tain” Watts, o trombonista John Fedchock e o saxofonista Frode Gjerstad são destaques entre os concertos agendados para o imponente Teatro Amazonas. Também de primeira linha, o elenco brasileiro inclui o Trio Corrente, o Amilton Godoy Trio, Marcelo Coelho & McLav.in, o Daniel D’Alcântara Quinteto, Leila Pinheiro e Amazonas Band, entre outros.

“Eu não imaginava que viveria por tanto tempo em Manaus. Também nunca imaginei que fosse dirigir big bands, mas acabei me apaixonando por elas. Parece quase um sonho”, comenta o maestro, que vai reger a Amazonas Band nas noites de abertura e de encerramento do festival. 


(Texto publicado no caderno Eu & Fim de Semana do jornal "Valor Econômico", em 13/3/2020)

Branca Lescher: compositora e cantora revela afinidades com a vanguarda paulista

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                                     A compositora Branca Lescher e seu disco "Eu Não Existo" / Foto: Laryssa Fraga

É fácil perceber que Branca Lescher é paulistana. Basta ouvir a canção “Eu Não Existo”, que dá título ao segundo disco autoral dessa cantora, compositora e poeta. Com a voz delicada, ela entoa os versos irônicos (“eu não existo /faça de conta /não perca o sono /dorme tranquilo”), quase como se estivesse falando. Seu canto contido contrasta com os pesados sons eletrônicos do arranjo, que destaca um solitário clarinete. 

Branca comenta que escolheu essa canção para abrir seu disco com uma espécie de provocação, já que a letra se relaciona de maneira paradoxal com as outras 11 canções que a seguem. “Todas elas falam de como eu quero ser livre, de como a mulher tem o direito de fazer o que ela quer”. Não é à toa que a triste canção “Desisto” (parceria com Edmiriam Modolo) termina em tom de redenção: “que se dane o bom senso /só me encontro de novo /com a liberdade”.

Como outros adolescentes paulistanos de sua geração, nos anos 1980, Branca foi a shows e ouviu discos de Arrigo Barnabé, de Itamar Assumpção e dos grupos Premê e Rumo 
expoentes da chamada “vanguarda paulista”. Influência que ela reconhece no seu jeito falado de cantar e em composições de sua autoria marcadas por um certo minimalismo. 

Quem assina a produção musical e os arranjos do disco é Marcelo Segreto, também parceiro de Branca em várias canções. “Como eu convivo com ele há muito tempo, conheço bem sua estética musical. Eu já disse ao Marcelo que este disco é tanto meu como dele”, ela comenta, ciente de que os arranjos com instrumentos de cordas trouxeram unidade e uma sonoridade original ao álbum.

Os dois se conheceram em 2013, nos círculos da Faculdade Santa Marcelina, onde compositores ligados à chamada vanguarda paulista, como Luiz Tatit ou Zé Miguel Wisnik, eram referências constantes. Antes de ingressar no curso de pós-graduação em canção popular, Branca teve aulas de canto com Regina Machado, cantora e compositora também influenciada pela estética dessa vertente musical.

“Sou muito paulistana. Não me sinto uma cantora e compositora de samba ou de música brasileira mais tradicional”, admite Branca, que chegou a gravar canções de Ary Barroso e Tom Jobim, em seu disco de estreia (“Intimidade e Silêncio”, lançado em 2005). Dissonante e quebrado, o único samba no repertório do novo álbum, “Antes de Mim”, confirma a declaração da autora.

Essencial no conceito do álbum, a sombria canção “O Dia da Mulher” (parceria com Segreto) sintetiza a temática feminina presente em várias faixas. Nos versos (“mulher é bicho esquisito /todo mês sangra /a Rita disse uma vez”), Branca expressa a indignação da mulher madura que se sente invisível quando não se submete a certas expectativas sociais, como tingir os cabelos brancos.

Já a divertida “Bigode Chinês” (outra com Segreto) brinca com a “mulherada” que malha nas academias e encara artifícios para reduzir os efeitos do envelhecimento (“contra a lei da gravidade /a idade tá subindo / mas o resto, bem /o resto tá caindo”). O arranjo de Segreto, que divide os vocais com Branca, traz leveza e um toque teatral a esse tema incômodo.

Bem-humorada também é “Dia das Mães”, sobre a frustração das mulheres que, ao terem filhos, se veem obrigadas a abrir mão de aspirações pessoais. “Meus filhos ficaram meio chocados”, comenta Branca, referindo-se ao tom sarcástico de seus versos (“tua mãe não tem tempo pra perder /tua mãe não tem tempo pra você /tua mãe já aguentou teu papai / teu avô, teu bisavô, tataravô e o patrão”).

O contraponto desse desabafo materno vem em outras duas canções. A doce “Violeta” (parceria com Edmiriam Modolo), dedicada à filha recém-casada, ganhou, na gravação, uma dose extra de lirismo graças ao acordeom de Toninho Ferragutti. Com batida de rock e um inusitado clarone no arranjo, “Salvo Conduto” inclui um típico conselho de mãe ao filho (“o teu amor leva contigo /mas não beba, não fume, não sofra, não durma demais”).

O álbum inclui também belas canções de temática amorosa, como “Taj Mahal” e “Lisboa” (parceria com Edmiriam). Mais inusitada, “Bailado” (outra com Edmiriam) é um fado leve cuja letra Branca escreveu ao retornar, ainda inebriada, de uma viagem a Portugal. As participações da cantora Cristina Clara e de Bernardo Couto, na guitarra portuguesa, garantem a sonoridade tipicamente lusitana.

Finalmente, a emotiva “Je Suis Nelson Mandela” ganhou um belo arranjo com quarteto de cordas. Admiradora do líder negro sul-africano, que lutou contra a segregação racial, ela o incluiu nos versos como um exemplo de superação. Em suas canções, Branca sugere que a mulher precisa enfrentar o machismo sem perder o humor e a ternura.

Ao perguntar a ela como compararia as letras de suas canções e seus poemas (“Fibromialgia”, seu primeiro livro, saiu em 2016), acabei ouvindo uma autodefinição pessoal. “Poesia e letra de música são diferentes: a forma é diferente, a preocupação com a métrica é diferente, mas minha poesia, assim como minhas canções, têm uma coisa sucinta, econômica. Até ao cozinhar eu sou assim”, compara Branca, rindo. “Esse é o meu jeito de ser. Acho que quanto mais simples são as coisas mais elas são legais”.


(Texto escrito a convite da assessoria de imprensa da cantora)






Festival Amazonas Jazz: evento retorna com novidades após hiato de cinco anos

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                                  Randy Brecker, atração do 10.º Festival Amazonas Jazz / Foto de divulgação

Um dos grandes festivais de jazz e música instrumental em nosso país volta à ativa após um hiato de cinco anos. A 10ª edição do Festival Amazonas Jazz vai oferecer durante nove dias de programação (de 21 a 29/3), na cidade de Manaus, 16 concertos com renomados músicos do gênero. O evento inclui também uma extensa série de atividades educativas, todas gratuitas, num total de 33 workshops, oficinas e palestras.

Entre expoentes dessa vertente musical que vão se apresentar no imponente Teatro Amazonas destacam-se os trompetistas Randy Brecker, Keyon Harrold e Ed Sarath, o baterista Jeff “Tain” Watts, os pianistas Aaron Parks e Edsel Gomez, o saxofonista Frode Gjerstad e o trombonista e arranjador John Fedchock. Os ingressos para os concertos e shows variam entre R$ 20 e R$ 80.

O elenco nacional também é de alto quilate. O duo do pianista Gilson Peranzzetta com o flautista Mauro Senise, o Trio Corrente, o saxofonista Marcelo Coelho e seu grupo McLav.in, o trio do pianista Amilton Godoy com o gaitista Gabriel Grossi e o quarteto do trompetista Daniel D’Alcântara garantem música instrumental brasileira da melhor qualidade. Bem representadas pela cantora Leila Pinheiro, a bossa nova e a MPB também têm um merecido espaço na série de concertos e shows.

Idealizador e diretor artístico do festival desde a primeira edição, o maestro Rui Carvalho estará mais uma vez à frente da Amazonas Band 
 conceituada big band de Manaus, que vai se apresentar nas noites de abertura e de encerramento do evento. Ele conta que o conceito do festival começou a ser desenvolvido um ano antes de sua estreia (em 2006), com a realização de um projeto intitulado Amazonas Band Convida.

“A ideia era trazer a Manaus músicos de alto calibre, que fomentassem o jazz junto à plateia local, oferecendo espetáculos de alto nível”, relembra Carvalho. “Além disso, esses músicos também deveriam realizar workshops que contribuíssem para aumentar o nível dos estudantes e músicos daqui. Logo percebemos que seria interessante ampliar o escopo dessas atividades”.

Assim surgiu um festival de jazz e música instrumental brasileira, que desde a primeira edição investiu bastante na formação de uma plateia para esse gênero musical, assim como no aprimoramento técnico dos instrumentistas da região 
 uma característica essencial, que o diferencia da maioria dos festivais de jazz brasileiros.

“Além das palestras, workshops e masterclasses no campo específico da música, logo no primeiro festival já tivemos um curso sobre áudio, ministrado pelo engenheiro de gravação Clement Zular, que surgiu em decorrência da necessidade de aprimorar o nível dos nossos técnicos de som”, comenta Carvalho, ressaltando também a iniciativa de o festival focalizar em diversas palestras as relações e afinidades do jazz com outras áreas da cultura, como o cinema, o teatro, a dança ou a pintura.

Uma novidade na edição deste ano é a transformação da Casa das Artes (localizada ao lado do Teatro Amazonas, no centro de Manaus), em Casa do Jazz. Esse espaço já funciona diariamente, das 9h às 21h, com uma programação gratuita de filmes que dialogam com o jazz, além da exibição de episódios da série documental “Jazz”, de Ken Burns, que registra e discute a evolução desse gênero musical.


Inédita também na programação do festival é a realização do Concurso Jovem Instrumentista. Os vencedores, eleitos por um júri especializado, vão se apresentar no Teatro Amazonas, dia 24, antes do show do saxofonista norueguês Frode Gjerstad.

Outras informações no site do Festival Amazonas Jazz



 

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