Até uma ou duas décadas atrás, com raras exceções, os instrumentistas brasileiros costumavam esnobar canções e cantores, como se vivessem em um mundo musical paralelo. “Solar”, álbum de estreia do talentoso guitarrista paulistano Daniel Oliva, sugere que as supostas fronteiras entre esses universos musicais são erguidas por gosto pessoal ou mesmo por um certo preconceito.
Produzido por Ricardo Mosca (baterista do grupo Pau Brasil), o disco de Oliva alterna canções e composições instrumentais de sua autoria. Temas como “Navegante”, “Acolhida” e “El Sendero” revelam a ascendência jazzística do guitarrista e dos músicos que o acompanham. Influência que também está presente, tanto no samba “Outras Águas”, cantado por Giana Viscardi, assim como na valsa “Nosso Apartamento”, interpretada por Luciana Alves. Em outras canções do disco, Marina de la Riva, Antônio Zambujo e Bruna Caram assumem os vocais.
(Resenha publicada no "Guia Folha - Livros, Discos, Filmes", em 28/2/2015)
Daniel Oliva: guitarrista e compositor paulistano valoriza canções em seu CD estreia
Marcadores: antônio zambujo, bruna caram, daniel oliva, giana viscardi, instrumental, luciana alves, marina de la riva, MPB, ricardo mosca | author: Carlos CaladoEcuador Jazz 2015: Cassandra Wilson relembra Billie Holiday no festival de Quito
Marcadores: cassandra wilson, Charles Bradley, ecuador jazz, equador jazz, hermeto pascoal, jazz, joss stone, michel camilo, omar sosa, Paolo Fresu, perico sambeat, The Bad Plus, vinicius cantuaria | author: Carlos Calado
Cassandra Wilson / Divulgação
A cantora norte-americana Cassandra Wilson – que vai lançar em abril o álbum “Coming Forth by Day”, dedicado à obra da grande Billie Holiday (1915-1959), cujo centenário é comemorado neste ano – será a atração principal da noite de abertura do Festival Ecuador Jazz. Em sua 11ª edição, o evento tem como sede o Teatro Nacional Sucre, em Quito, de 26/2 a 8/3.
Entre as principais atrações estarão também o trio de jazz contemporâneo The Bad Plus, os cantores de soul Charles Bradley e Joss Stone, o trio de jazz do pianista dominicano Michel Camilo, o quarteto do saxofonista espanhol Perico Sambeat e o duo do pianista cubano Omar Sosa com o trompetista italiano Paolo Fresu.
A música brasileira também está representada no festival: Vinicius Cantuária, cantor, compositor e violonista amazonense radicado nos Estados Unidos, vai se apresentar em duo com o guitarrista norte-americano Marc Ribot.
O elenco do Ecuador Jazz 2015 inclui ainda atrações locais, como o saxofonista Daniel Bitrán (que já gravou um tributo a Hermeto Pascoal), o grupo Pies en la Terra, o guitarrista Fernando Cilio, o trio do pianista Marcos Merino e a Banda Sinfônica Metropolitana de Quito.
A noite de encerramento – ao ar livre, na Praça do Teatro, dia 8/3 – vai contar com a banda de metais Pichirilo Radioactivo, o grupo chileno Cómo Asesinar a Felipes e a cantora colombiana Totó La Momposina. O evento inclui ainda jam sessions, workshops e uma mostra sobre o jazz no cinema.
A cantora norte-americana Cassandra Wilson – que vai lançar em abril o álbum “Coming Forth by Day”, dedicado à obra da grande Billie Holiday (1915-1959), cujo centenário é comemorado neste ano – será a atração principal da noite de abertura do Festival Ecuador Jazz. Em sua 11ª edição, o evento tem como sede o Teatro Nacional Sucre, em Quito, de 26/2 a 8/3.
Entre as principais atrações estarão também o trio de jazz contemporâneo The Bad Plus, os cantores de soul Charles Bradley e Joss Stone, o trio de jazz do pianista dominicano Michel Camilo, o quarteto do saxofonista espanhol Perico Sambeat e o duo do pianista cubano Omar Sosa com o trompetista italiano Paolo Fresu.
A música brasileira também está representada no festival: Vinicius Cantuária, cantor, compositor e violonista amazonense radicado nos Estados Unidos, vai se apresentar em duo com o guitarrista norte-americano Marc Ribot.
O elenco do Ecuador Jazz 2015 inclui ainda atrações locais, como o saxofonista Daniel Bitrán (que já gravou um tributo a Hermeto Pascoal), o grupo Pies en la Terra, o guitarrista Fernando Cilio, o trio do pianista Marcos Merino e a Banda Sinfônica Metropolitana de Quito.
A noite de encerramento – ao ar livre, na Praça do Teatro, dia 8/3 – vai contar com a banda de metais Pichirilo Radioactivo, o grupo chileno Cómo Asesinar a Felipes e a cantora colombiana Totó La Momposina. O evento inclui ainda jam sessions, workshops e uma mostra sobre o jazz no cinema.
Diana Krall: pianista e cantora troca o jazz pelo pop no medíocre álbum "Wallflower"
Marcadores: bob dylan, Carpenters, David Foster, diana krall, Elton John, jazz, Jim Croce, Leon Russell, Mamas and the Papas, paul mccartney, pop | author: Carlos CaladoImagine que um dia Bob Dylan decida largar a guitarra para gravar um disco de clássicos da bossa nova. Ou que João Bosco troque seu violão por uma pick-up de DJ para se dedicar à música eletrônica. Guardadas as proporções, Diana Krall fez algo semelhante em “Wallflower” (lançamento da gravadora Verve/Universal), seu 12º álbum.
Não é fácil entender por que uma talentosa pianista de jazz, que também sabe cantar, toca só em três das 12 faixas oficiais desse álbum. Quem assume o piano --tocando, aliás, de maneira bem burocrática-- é o produtor David Foster, conhecido por trabalhos com figurões da música pop mais convencional, como Celine Dion, Barbra Streisand e Andrea Bocelli. Detalhe: atualmente, ele é o presidente da gravadora Verve.
Dirigido ao segmento de público conhecido nos EUA como “pop adulto”, “Wallflower” traz um repertório previsível. Foster e Diana escolheram canções pop que frequentaram as rádios e paradas de sucesso, nas décadas de 1960 e 1970, assinadas por medalhões do gênero, como Elton John, Don Henley, Randy Newman e Paul McCartney (autor de I'll Take You Home Tonight", a única canção inédita), entre outros.
A versão de “California Dreamin’”, o hit do quarteto vocal The Mamas and the Papas que abre o CD, já antecipa a atmosfera fria, meio deprimente, que marca quase todas as faixas. A versão de Diana, revestida por cordas melosas transforma essa canção solar em uma viagem ao Polo Norte. Pior ainda: o ritmo é marcado, acredite, por um bipe eletrônico.
Em “Superstar” (canção de Leon Russell, que fez sucesso com a dupla Carpenters), Diana força uma certa rouquidão na voz --o velho truque para soar sensual-- que soa artificial. As cordas açucaradas e os vocais de apoio, no arranjo de “Operator (That’s Not the Way It Feels)”, de Jim Croce, fariam mais sentido em um disco da estrelinha country Shania Twain. E as participações "especiais" dos cantores Michael Bublé e Bryan Adams não acrescentam nada de substancial.
Quem conhece os últimos álbuns de Diana sabe que ela já vem evitando o jazz há alguns anos. “Quiet Nights” (2009) era um disco de bossa nova que parecia feito na década de 1960. Em “Glad Rag Doll” (2012), ela resgatou canções dos anos 1920 e 1930 com uma pegada pop. Agora Diana se superou: “Wallflower” é seu disco mais pop, no sentido mais medíocre desse termo.
(resenha publicada na "Folha de S. Paulo", em 16/02/2015)
Marcos Paiva: baixista e compositor busca um jazz brasileiro com mais liberdade
Marcadores: Bruno Tessele, Cesar Roversi, choro, jazz, marcos paiva, música instrumental brasileira, nailor proveta, pixinguinha | author: Carlos Calado
Foto: Maria Clara Villas/Divulgação
Como fazer música instrumental com identidade brasileira, que não soe como um genérico do jazz? Este é um desafio que já foi encarado com maior ou menor sucesso por músicos de diversas épocas, especialmente a partir da década de 1960, com a primeira geração do samba-jazz, que destaca J.T. Meirellles, Edison Machado e os trios Tamba, Zimbo e Sambalanço, entre outros.
Quando se fala na moderna música instrumental brasileira também é obrigatório pensar nas obras de Moacir Santos, Hermeto Pascoal, Egberto Gismonti e Paulo Moura, ou de grupos como o Quarteto Novo, Pau Brasil ou Uakti, entre outros. Nas últimas cinco décadas, esses instrumentistas, compositores e conjuntos desenvolveram estilos e repertórios originais, que dialogam com a linguagem do jazz sem abrir mão de sua brasilidade.
Essa seleção de craques de nosso som instrumental acaba de ganhar um talentoso reforço. Depois de lançar o promissor “São Mateus” (2007), álbum que marcou sua estreia como líder e compositor, seguido por “Meu Samba no Prato” (2011), primoroso trabalho autoral dedicado ao baterista Edison Machado e a outros músicos do samba-jazz, o contrabaixista Marcos Paiva comprova, em “Choroso vol. 2”, seu terceiro álbum, que está preparado para assumir um lugar de destaque na cena da música instrumental.
“Eu busco um jazz brasileiro, uma música que eu possa desenvolver com muita liberdade e, ao mesmo tempo, com um sotaque bem característico do Brasil”, afirma, demonstrando consciência de seu horizonte artístico, esse paulista de Tupã, criado em Viçosa (MG), que vive na cidade de São Paulo desde 2000. Aos 38 anos, com um currículo profissional que inclui trabalhos e parcerias com dezenas de músicos e cantores de destaque, ele decidiu enfim investir mais em sua faceta de instrumentista.
Quem já teve a oportunidade de ouvi-lo tocar, especialmente ao vivo, percebe logo que ele é um daqueles músicos que tocam com a emoção à flor da pele. O controle do som do instrumento e a técnica apurada são metas que, em maior ou menor medida, norteiam a formação de qualquer instrumentista, mas, ao tocar seu contrabaixo, Paiva consegue algo menos comum: é capaz de transmitir sentimentos.
Não é à toa que, quando pergunto a ele quais contrabaixistas o influenciaram mais, Paiva menciona Charlie Haden, também compositor e líder do sofisticado grupo Quartet West, além de outros grandes mestres desse instrumento no universo do jazz, como Dave Holland, Scott LaFaro e Paul Chambers. Já entre os baixistas brasileiros, seus favoritos são Sizão Machado e Zeca Assumpção.
“Charlie Haden conquistou um lugar muito especial no jazz, sem ser um virtuose, propriamente. Ele utiliza a técnica a serviço da criatividade. E se entrega totalmente à música, no momento único em que ela está sendo feita”, comenta Paiva, sugerindo algumas de suas afinidades com esse jazzista norte-americano.
Por outro lado, ressalta também a importância do discurso musical, a concepção sonora que deve preceder qualquer projeto, tanto no estúdio de gravação como nos palcos. “Pensar o som antes de fazê-lo fortalece seu universo sonoro. Eu sempre quis ser mais compositor e arranjador do que instrumentista, porque o discurso musical começa na concepção e visualização desse universo. Esse é um dos aspectos que mais me atraem na música”, afirma.
As ideias que levaram à gravação deste álbum surgiram por volta de 2008. Durante os quase dois anos em que viajou por diversos países, como contrabaixista da banda da cantora portuguesa Teresa Salgueiro (ex-Madredeus), Paiva manteve longas conversas sobre a linguagem e os caminhos da música instrumental brasileira com o clarinetista Nailor Proveta (líder da banda Mantiqueira) e o baterista Daniel de Paula, que também faz parte de seu sextexto, o MP6. Estimulado por essas discussões, decidiu enfrentar o desafio de se aventurar mais pelo universo do choro.
“Naquela época comecei a pensar num projeto em que minha música pudesse se abrir mais, tanto harmonicamente, como para o improviso”, recorda. Embora não se considere um músico de choro, Paiva conviveu e tocou com experientes chorões de São Paulo, como o flautista João Poleto e os violonistas Zé Barbeiro e Luizinho 7 Cordas – sem falar em frequentes canjas na casa noturna paulistana Ó do Borogodó, ponto de encontro de músicos e fãs desse clássico gênero da música instrumental brasileira.
“Por que não abrir mais a linguagem do choro? Por que o contrabaixo não pode assumir o papel do violão de sete cordas?”, ele questiona, observando que, pelo fato de não se considerar um chorão, sente-se à vontade para tratar esse gênero musical com mais liberdade do que seus tradicionais adeptos. “Não tenho a pretensão de fazer o choro evoluir. Acredito que só se consegue fazer uma tradição evoluir quando você vem dela, mas não me agrada a ideia de tocar uma música fechada em uma determinada época”.
Outra influência essencial veio do jazz. Na época em que começou a idealizar o projeto “Choroso”, Paiva estava ouvindo discos dos saxofonistas Joe Lovano, Branford Marsalis e Joshua Redman – todos, coincidentemente, gravados com trios sem piano (sax, contrabaixo e bateria), formato instrumental que permite aos músicos tocar com maior liberdade harmônica. Estimulado por essas gravações, Paiva formou seu vibrante trio com o saxofonista Cesar Roversi e o baterista Bruno Tessele.
Essa formação instrumental mais compacta permite que ele se destaque mais como solista, diferentemente do que se ouve nos seus discos anteriores, gravados com seu sexteto. “Sem o piano ou um violão misturando as frequências sonoras, o contrabaixo sobressai. Ele pode solar, tocar melodias, assumir o papel de protagonista – um desafio para mim”, observa Paiva, destacando também as contribuições de seus novos parceiros.
“Eles têm tanta força dentro deste trio quanto eu”, afirma. “Acho que o César é o saxofonista ideal para este projeto, porque ele soma uma vivência profunda do choro com a influência de John Coltrane e de grandes saxofonistas modernos, como Chris Potter e Rudresh Mahanthappa. Com ele, essa mistura de choro e jazz soa natural”.
“Em relação ao Bruno, eu queria um baterista que soasse mais limpo e tivesse muita força no instrumento. Trabalhamos a ausência do bumbo na condução do choro e ele se adaptou rapidamente”, comenta Paiva, destacando a interação do parceiro com os integrantes do trio. “Ele está sempre inteiro dentro do som, sugerindo ideias e reagindo criativamente ao que é criado no momento”.
Autor das oito faixas do álbum, Paiva conta que gosta de compor, ou mesmo de escrever arranjos, já pensando no potencial e nas características dos músicos que vão participar da gravação. Isso ajuda a explicar o fato de seus arranjos para este álbum soarem tão fluidos e naturais, como se os músicos estivessem improvisando quase todo o tempo, com muita liberdade.
“Sopro”, a breve faixa que abre este álbum, nasceu originalmente como uma marcha-rancho, na época em que Paiva ainda estava escrevendo o repertório para o primeiro volume do projeto “Choroso”. Nesta versão mais lenta, dedicada ao grande contrabaixista cubano Cachao López (1918-2008), o baixo acústico e o sax soprano expõem com delicadeza a melodia, como se preparassem a atenção do ouvinte para emoções mais fortes.
Além de serem mais dinâmicas, as duas composições seguintes têm em comum o fato de terem sido inspiradas por clássicos do jazz ou da música brasileira. Do mesmo modo que Charlie Parker, Dizzy Gillespie e outros criadores do bebop faziam durante as décadas de 1940 e 1950, compondo a partir das harmonias de standards da canção norte-americana, para criar “Seu Joaquim” Paiva reescreveu a harmonia de “Fee-Fi-Fo-Fum” (tema que o saxofonista Wayne Shorter compôs e gravou no álbum “Speak no Evil”, em 1964), adaptando-o à linguagem do choro. “Pensei comigo: se essa música tivesse sido feita na década de 1930, como ela seria? Nos improvisos, brincamos de usar diferentes harmonias”, revela.
Em “Duque”, a conhecida melodia do choro “Tico Tico no Fubá” (de Zequinha de Abreu) já surge nos primeiros compassos, bem alterada, seguida pelo nervoso improviso de Roversi, ao sax soprano. Paiva, que adapta nessa faixa o típico fraseado chorão do violão de sete cordas ao contrabaixo, também reescreveu a harmonia de “Tico Tico”, com um resultado bem jazzístico e contemporâneo.
“São Mateus”, composta originalmente em 2001, nasceu como um choro instrumental – só mais tarde ganhou uma letra escrita por Rodrigo de Campos. Comparada à gravação de 2007, que deu título ao primeiro álbum de Paiva, a nova versão soa mais dramática. O timbre do sax soprano de Roversi e o pandeiro que Tessele utiliza sobre a caixa da bateria reforçam a ascendência árabe da melodia. A atmosfera espiritual que perpassa essa gravação tem uma referência que remete ao jazz da década de 1960: o álbum “A Love Supreme”, obra-prima do saxofonista John Coltrane, cuja influência Paiva reconhece em sua composição.
Exemplo de uma vertente da música instrumental brasileira que costuma conviver com o repertório clássico do choro, “Barão” é um samba sincopado, composto por Paiva em homenagem ao mestre violonista Dino 7 Cordas (1918-2006). Durante o extenso improviso de Roversi, ao sax tenor, o baixista desenvolve um inventivo contraponto rítmico, que não deixa de ser, paradoxalmente, um solo feito em duo.
Em “Miquelito”, também escrita especialmente para esse álbum, Paiva assume o desafio de tocar sem um andamento único. “Quando a compus, queria ter a liberdade de dilatar e encurtar o tempo, um procedimento que também está ligado à noção de espaço”, ele explica, revelando que, nessa composição, tinha em mente a avançada concepção rítmica do quinteto que Miles Davis liderou na década de 1960, tendo a seu lado Tony Williams, Ron Carter, Herbie Hancock e Wayne Shorter.
Com seu tema que parece evoluir de uma frenética marcha para um frevo, embora logo desconstruído, “Chefe” nasceu, segundo Paiva, como uma brincadeira com o cachorro de Tessele, “que não para quieto por um instante”. Também desconstruída, num procedimento tipicamente jazzístico, mas resgatada ao longo da faixa que fecha o álbum, a singela melodia de “Chorosa” remete à clássica forma do choro-canção. Composição que, por sinal, sintetiza o bem sucedido projeto desse álbum. Poucas vezes se ouviu, na história da música instrumental brasileira, choros soarem tão naturalmente jazzísticos. Ou, por outro lado, em raras ocasiões o jazz se aproximou de maneira tão íntima da linguagem do choro.
Para terminar, deixo aqui uma dica pessoal. Se você, como eu, apreciar este álbum, não perca a chance de ouvir o trio de Marcos Paiva ao vivo. Depois de me surpreender com a sensacional performance de seu sexteto, tocando as composições e arranjos de “Meu Samba no Prato”, não vou perder por nada a oportunidade de ouvir de novo esse “power trio”, recriando no palco seu excitante repertório.
(Texto para o encarte do CD "Choroso", que o Marcos Paiva Trio lança dia 11/2, quarta-feira, no SESC Pinheiros, em São Paulo, com participação do clarinetista Nailor Proveta)
Como fazer música instrumental com identidade brasileira, que não soe como um genérico do jazz? Este é um desafio que já foi encarado com maior ou menor sucesso por músicos de diversas épocas, especialmente a partir da década de 1960, com a primeira geração do samba-jazz, que destaca J.T. Meirellles, Edison Machado e os trios Tamba, Zimbo e Sambalanço, entre outros.
Quando se fala na moderna música instrumental brasileira também é obrigatório pensar nas obras de Moacir Santos, Hermeto Pascoal, Egberto Gismonti e Paulo Moura, ou de grupos como o Quarteto Novo, Pau Brasil ou Uakti, entre outros. Nas últimas cinco décadas, esses instrumentistas, compositores e conjuntos desenvolveram estilos e repertórios originais, que dialogam com a linguagem do jazz sem abrir mão de sua brasilidade.
Essa seleção de craques de nosso som instrumental acaba de ganhar um talentoso reforço. Depois de lançar o promissor “São Mateus” (2007), álbum que marcou sua estreia como líder e compositor, seguido por “Meu Samba no Prato” (2011), primoroso trabalho autoral dedicado ao baterista Edison Machado e a outros músicos do samba-jazz, o contrabaixista Marcos Paiva comprova, em “Choroso vol. 2”, seu terceiro álbum, que está preparado para assumir um lugar de destaque na cena da música instrumental.
“Eu busco um jazz brasileiro, uma música que eu possa desenvolver com muita liberdade e, ao mesmo tempo, com um sotaque bem característico do Brasil”, afirma, demonstrando consciência de seu horizonte artístico, esse paulista de Tupã, criado em Viçosa (MG), que vive na cidade de São Paulo desde 2000. Aos 38 anos, com um currículo profissional que inclui trabalhos e parcerias com dezenas de músicos e cantores de destaque, ele decidiu enfim investir mais em sua faceta de instrumentista.
Quem já teve a oportunidade de ouvi-lo tocar, especialmente ao vivo, percebe logo que ele é um daqueles músicos que tocam com a emoção à flor da pele. O controle do som do instrumento e a técnica apurada são metas que, em maior ou menor medida, norteiam a formação de qualquer instrumentista, mas, ao tocar seu contrabaixo, Paiva consegue algo menos comum: é capaz de transmitir sentimentos.
Não é à toa que, quando pergunto a ele quais contrabaixistas o influenciaram mais, Paiva menciona Charlie Haden, também compositor e líder do sofisticado grupo Quartet West, além de outros grandes mestres desse instrumento no universo do jazz, como Dave Holland, Scott LaFaro e Paul Chambers. Já entre os baixistas brasileiros, seus favoritos são Sizão Machado e Zeca Assumpção.
“Charlie Haden conquistou um lugar muito especial no jazz, sem ser um virtuose, propriamente. Ele utiliza a técnica a serviço da criatividade. E se entrega totalmente à música, no momento único em que ela está sendo feita”, comenta Paiva, sugerindo algumas de suas afinidades com esse jazzista norte-americano.
Por outro lado, ressalta também a importância do discurso musical, a concepção sonora que deve preceder qualquer projeto, tanto no estúdio de gravação como nos palcos. “Pensar o som antes de fazê-lo fortalece seu universo sonoro. Eu sempre quis ser mais compositor e arranjador do que instrumentista, porque o discurso musical começa na concepção e visualização desse universo. Esse é um dos aspectos que mais me atraem na música”, afirma.
As ideias que levaram à gravação deste álbum surgiram por volta de 2008. Durante os quase dois anos em que viajou por diversos países, como contrabaixista da banda da cantora portuguesa Teresa Salgueiro (ex-Madredeus), Paiva manteve longas conversas sobre a linguagem e os caminhos da música instrumental brasileira com o clarinetista Nailor Proveta (líder da banda Mantiqueira) e o baterista Daniel de Paula, que também faz parte de seu sextexto, o MP6. Estimulado por essas discussões, decidiu enfrentar o desafio de se aventurar mais pelo universo do choro.
“Naquela época comecei a pensar num projeto em que minha música pudesse se abrir mais, tanto harmonicamente, como para o improviso”, recorda. Embora não se considere um músico de choro, Paiva conviveu e tocou com experientes chorões de São Paulo, como o flautista João Poleto e os violonistas Zé Barbeiro e Luizinho 7 Cordas – sem falar em frequentes canjas na casa noturna paulistana Ó do Borogodó, ponto de encontro de músicos e fãs desse clássico gênero da música instrumental brasileira.
“Por que não abrir mais a linguagem do choro? Por que o contrabaixo não pode assumir o papel do violão de sete cordas?”, ele questiona, observando que, pelo fato de não se considerar um chorão, sente-se à vontade para tratar esse gênero musical com mais liberdade do que seus tradicionais adeptos. “Não tenho a pretensão de fazer o choro evoluir. Acredito que só se consegue fazer uma tradição evoluir quando você vem dela, mas não me agrada a ideia de tocar uma música fechada em uma determinada época”.
Outra influência essencial veio do jazz. Na época em que começou a idealizar o projeto “Choroso”, Paiva estava ouvindo discos dos saxofonistas Joe Lovano, Branford Marsalis e Joshua Redman – todos, coincidentemente, gravados com trios sem piano (sax, contrabaixo e bateria), formato instrumental que permite aos músicos tocar com maior liberdade harmônica. Estimulado por essas gravações, Paiva formou seu vibrante trio com o saxofonista Cesar Roversi e o baterista Bruno Tessele.
Essa formação instrumental mais compacta permite que ele se destaque mais como solista, diferentemente do que se ouve nos seus discos anteriores, gravados com seu sexteto. “Sem o piano ou um violão misturando as frequências sonoras, o contrabaixo sobressai. Ele pode solar, tocar melodias, assumir o papel de protagonista – um desafio para mim”, observa Paiva, destacando também as contribuições de seus novos parceiros.
“Eles têm tanta força dentro deste trio quanto eu”, afirma. “Acho que o César é o saxofonista ideal para este projeto, porque ele soma uma vivência profunda do choro com a influência de John Coltrane e de grandes saxofonistas modernos, como Chris Potter e Rudresh Mahanthappa. Com ele, essa mistura de choro e jazz soa natural”.
“Em relação ao Bruno, eu queria um baterista que soasse mais limpo e tivesse muita força no instrumento. Trabalhamos a ausência do bumbo na condução do choro e ele se adaptou rapidamente”, comenta Paiva, destacando a interação do parceiro com os integrantes do trio. “Ele está sempre inteiro dentro do som, sugerindo ideias e reagindo criativamente ao que é criado no momento”.
Autor das oito faixas do álbum, Paiva conta que gosta de compor, ou mesmo de escrever arranjos, já pensando no potencial e nas características dos músicos que vão participar da gravação. Isso ajuda a explicar o fato de seus arranjos para este álbum soarem tão fluidos e naturais, como se os músicos estivessem improvisando quase todo o tempo, com muita liberdade.
“Sopro”, a breve faixa que abre este álbum, nasceu originalmente como uma marcha-rancho, na época em que Paiva ainda estava escrevendo o repertório para o primeiro volume do projeto “Choroso”. Nesta versão mais lenta, dedicada ao grande contrabaixista cubano Cachao López (1918-2008), o baixo acústico e o sax soprano expõem com delicadeza a melodia, como se preparassem a atenção do ouvinte para emoções mais fortes.
Além de serem mais dinâmicas, as duas composições seguintes têm em comum o fato de terem sido inspiradas por clássicos do jazz ou da música brasileira. Do mesmo modo que Charlie Parker, Dizzy Gillespie e outros criadores do bebop faziam durante as décadas de 1940 e 1950, compondo a partir das harmonias de standards da canção norte-americana, para criar “Seu Joaquim” Paiva reescreveu a harmonia de “Fee-Fi-Fo-Fum” (tema que o saxofonista Wayne Shorter compôs e gravou no álbum “Speak no Evil”, em 1964), adaptando-o à linguagem do choro. “Pensei comigo: se essa música tivesse sido feita na década de 1930, como ela seria? Nos improvisos, brincamos de usar diferentes harmonias”, revela.
Em “Duque”, a conhecida melodia do choro “Tico Tico no Fubá” (de Zequinha de Abreu) já surge nos primeiros compassos, bem alterada, seguida pelo nervoso improviso de Roversi, ao sax soprano. Paiva, que adapta nessa faixa o típico fraseado chorão do violão de sete cordas ao contrabaixo, também reescreveu a harmonia de “Tico Tico”, com um resultado bem jazzístico e contemporâneo.
“São Mateus”, composta originalmente em 2001, nasceu como um choro instrumental – só mais tarde ganhou uma letra escrita por Rodrigo de Campos. Comparada à gravação de 2007, que deu título ao primeiro álbum de Paiva, a nova versão soa mais dramática. O timbre do sax soprano de Roversi e o pandeiro que Tessele utiliza sobre a caixa da bateria reforçam a ascendência árabe da melodia. A atmosfera espiritual que perpassa essa gravação tem uma referência que remete ao jazz da década de 1960: o álbum “A Love Supreme”, obra-prima do saxofonista John Coltrane, cuja influência Paiva reconhece em sua composição.
Exemplo de uma vertente da música instrumental brasileira que costuma conviver com o repertório clássico do choro, “Barão” é um samba sincopado, composto por Paiva em homenagem ao mestre violonista Dino 7 Cordas (1918-2006). Durante o extenso improviso de Roversi, ao sax tenor, o baixista desenvolve um inventivo contraponto rítmico, que não deixa de ser, paradoxalmente, um solo feito em duo.
Em “Miquelito”, também escrita especialmente para esse álbum, Paiva assume o desafio de tocar sem um andamento único. “Quando a compus, queria ter a liberdade de dilatar e encurtar o tempo, um procedimento que também está ligado à noção de espaço”, ele explica, revelando que, nessa composição, tinha em mente a avançada concepção rítmica do quinteto que Miles Davis liderou na década de 1960, tendo a seu lado Tony Williams, Ron Carter, Herbie Hancock e Wayne Shorter.
Com seu tema que parece evoluir de uma frenética marcha para um frevo, embora logo desconstruído, “Chefe” nasceu, segundo Paiva, como uma brincadeira com o cachorro de Tessele, “que não para quieto por um instante”. Também desconstruída, num procedimento tipicamente jazzístico, mas resgatada ao longo da faixa que fecha o álbum, a singela melodia de “Chorosa” remete à clássica forma do choro-canção. Composição que, por sinal, sintetiza o bem sucedido projeto desse álbum. Poucas vezes se ouviu, na história da música instrumental brasileira, choros soarem tão naturalmente jazzísticos. Ou, por outro lado, em raras ocasiões o jazz se aproximou de maneira tão íntima da linguagem do choro.
Para terminar, deixo aqui uma dica pessoal. Se você, como eu, apreciar este álbum, não perca a chance de ouvir o trio de Marcos Paiva ao vivo. Depois de me surpreender com a sensacional performance de seu sexteto, tocando as composições e arranjos de “Meu Samba no Prato”, não vou perder por nada a oportunidade de ouvir de novo esse “power trio”, recriando no palco seu excitante repertório.
(Texto para o encarte do CD "Choroso", que o Marcos Paiva Trio lança dia 11/2, quarta-feira, no SESC Pinheiros, em São Paulo, com participação do clarinetista Nailor Proveta)
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