Savassi Festival: evento mineiro terá seu selo e planeja edições nos EUA e em Portugal

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                                                                            O pianista e compositor israelense Chai Maestro 

Quem teve a sorte de assistir às apresentações do pianista e compositor israelense Shai Maestro, no Savasssi Festival, certamente vai conserva-las na memória por muito tempo. O jazzista radicado em Nova York e seus parceiros de trio -– o baixista Jorge Roeder e o baterista Obed Calvaire -– foram responsáveis por alguns dos momentos mais emocionantes da 15ª edição desse evento, encerrado no domingo (27/8), em Belo Horizonte (MG).

Maestro introduziu sua composição “From One Soul to Another” com uma breve preleção. Chamou a atenção da plateia para o fato de que, numa época em que a intolerância racial e outras formas de preconceito são tão evidentes, um festival que atrai um público interessado na música instrumental de diversos países tem um significado especial. Ouvir a plateia entoar em uníssono a bela melodia do pianista, que soa como um hino pela paz, foi de arrepiar.

Outro músico israelense que se destacou no último final de semana do evento foi Oded Tzur (na foto abaixo). Tocando emotivas composições próprias, como “Single Mother” e “The Whale Song”, o saxofonista surpreendeu ao soprar seu instrumento de maneira muito suave, no limite do silêncio. Algo raro de se ouvir, que tanto a educada plateia do CCBB, como grande parte dos que acompanharam sua apresentação ao ar livre, souberam apreciar com a devida atenção.  

 
Bem escolhidas, as atrações nacionais representaram a diversidade e o alto nível da música instrumental que se produz hoje em nosso país. No sábado (26/8), o jovem quarteto do pianista Vitor Arantes exibiu composições originais calcadas em ritmos brasileiros. Com uma abordagem mais jazzística, o sexteto do pianista Deangelo Silva também contagiou a plateia com composições próprias, como “Bahia” e “São Paulo”, além de um inventivo arranjo de “Aquelas Coisas Todas” (de Toninho Horta).

Já no domingo, a variedade de estilos foi mais ampla ainda. O pandeirista Túlio Araújo exibiu suas fusões de choro, samba e jazz, incluindo uma participação especial do pianista israelense Guy Mintus. À frente de seu Quinteto Experimental, o guitarrista Daniel Santiago (na foto abaixo, com o baixista Frederico Heliodoro) mostrou composições próprias com marcante influência do rock. Soprando seu pífano, Jorge Continentino deu um tratamento jazzístico a ritmos do Nordeste. E encerrou a noite com uma "canja" de bateristas, com destaque para o veterano Neném, grande craque da cena musical mineira, que dividiu o palco com o norte-americano Obed Calvaire, And
ré “Limão” Queiroz e Felipe Continentino.


Planos para 2018

Ao fazer um balanço da 15ª edição do Savassi Festival, Bruno Golgher, criador e produtor do evento, diz que ficou muito sensibilizado com as apresentações de Shai Maestro, em especial, e de Oded Tzur. “Quando esteve aqui pela primeira vez, cinco anos atrás, Shai deixou uma impressão forte, mas principalmente entre os músicos. Naquela época, a programação do festival na rua ainda era encarada como uma festa. Agora há um público muito mais interessado na música do que em festa”, avalia.

Um projeto do festival ao qual o produtor confere um significado especial é o Música Nova. Esse programa de incentivo à criação de composições de música instrumental contemplou, neste ano, quatro jovens compositores: os pianistas Rafael Martini e Luisa Mitre, a cantora Juliana Perdigão e o vibrafonista Fred Selva.

“Tenho a impressão de que a ênfase do festival em composição e em colaborações musicais exerceu um impacto na percepção das pessoas sobre o que é um festival”, observa Golgher, contando que recebeu um retorno positivo bem maior do que em edições anteriores. “As pessoas começaram a sentir que o festival tem um papel, além de reunir muitos shows sobre um palco. Isso quer dizer que o festival está tocando em um ponto que pode ser desenvolvido”.


O produtor comenta também que, embora algumas pessoas já viessem sugerindo há alguns anos a criação de um selo do festival, ainda tinha dúvidas sobre o momento certo para investir nesse projeto. “Você precisa ter um motivo forte para isso. A ideia é que o selo Savassi grave obras comissionadas pelo festival. Nosso selo não vai ter uma função comercial”, afirma Golgher.

A criação desse selo será, segundo ele, uma das ações mais importantes do Savassi Festival, fechando um ciclo, nos próximos anos. “Os músicos vão compor e apresentar suas obras no festival para um grupo de jornalistas e curadores, que vão divulgar e contratar artistas. O selo, que vai registrar composições feitas para o festival, tornará esse material disponível de uma maneira mais ampla”, explica Golgher, que tem a intenção de lançar o selo em 2018. Por isso, as apresentações de Rafael Martini, Luisa Mitre, Fred Selva e Juliana Perdigão durante esta edição já foram registradas em “multitrack” (um processo de gravação em alta definição sonora).

Outra iniciativa do Savassi Festival com potencial para crescer, nas próximas edições, é o concurso Novos Talentos do Jazz, cujo objetivo é criar oportunidades e abrir espaço para jovens instrumentistas. A partir deste ano essa competição será realizada em parceria com outros dois eventos do gênero no país: o POA Jazz Fest (RS) e o Sampa Jazz Fest (SP).

Representando esses festivais de música instrumental, o produtor gaúcho Carlos Badia e o paulista Daniel Nogueira participaram, ao lado do carioca Pedro Albuquerque (curador do Brasil Jazz Fest), de uma mesa redonda na última sexta-feira (25/8), para conversar sobre as estratégias dessa parceria e suas perspectivas. 


“Foi importante começar essa parceria com outros festivais. Pensando sob o ponto de vista do artista, isso pode mudar uma trajetória. Imagine o efeito sobre a carreira de um músico ou de uma banda jovem que tiver a oportunidade de participar de três festivais. Ou de cinco festivais, quem sabe, já no próximo ano”, comenta Golgher (na foto ao lado, à esquerda, com o curador Pedro Albuquerque). O primeiro músico escolhido para se apresentar nos festivais de Porto Alegre e São Paulo, ainda neste ano, é o pianista e compositor Vitor Arantes.

A parceria entre os três eventos deve resultar em outros desdobramentos, como a realização de um festival de música instrumental brasileira em Nova York, onde o Savassi Festival já realizou três edições, no período 2013-2015. “De nosso primeiro encontro surgiu a ideia de voltar a Nova York, com os três festivais assinando o projeto. Isso pode dar muito certo”, festeja o produtor mineiro, prevendo que o retorno aos EUA tem boas chances de acontecer já no próximo ano.

Os planos de internacionalização do Savassi Festival não param por aí. Depois de trazer o vibrafonista português Eduardo Cardinho para a edição deste ano, Bruno Golgher também pretende levar o evento a Portugal. “Lá ele terá uma configuração diferente de Nova York, onde fizemos um festival de música instrumental brasileira. Em Portugal, teremos um programa de colaboração entre artistas brasileiros e portugueses, que vai resultar em um festival. A ideia é promover um ir e vir permanente”.

Cobertura realizada em Belo Horizonte a convite da produção do Savassi Festival. 








 

Annette Peacock: pioneira e vanguardista, compositora canta no Jazz na Fábrica

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                                                   A compositora e vocalista nova-iorquina, em foto de Christian Rose 

Annette Peacock já foi chamada de ícone da vanguarda, de “figura cult do underground”, de “símbolo cult do empoderamento feminino”. Atração do festival Jazz na Fábrica, neste sábado (26) e domingo (27), em São Paulo, a compositora, pianista e vocalista nova-iorquina jamais seguiu padrões convencionais em sua música.

Embora tenha despontado na cena musical dos anos 1960, tocando piano com o expoente do free jazz Albert Ayler, ou tenha composto peças experimentais para o trio de jazz do pianista Paul Bley, ela já não se identificava como jazzista naquela época.

“Eu tinha um grande interesse pela música de vanguarda, pela liberdade, mas não me considerava uma musicista de jazz”, diz ela à Folha. “Sou antes de tudo uma compositora. Gosto de criar ambientes, de tentar romper as fronteiras entre os gêneros musicais”.

Ainda na década de 1960, Annette vivenciou uma experiência radical que alterou sua maneira de encarar a música. Ao se aproximar do psicólogo e neurocientista Timothy Leary, ideólogo do uso criativo do LSD (ácido lisérgico), foi uma das primeiras artistas a experimentá-lo.

“Timothy exerceu uma grande influência sobre mim. Só fiz uma única viagem de ácido e até hoje estou tentando voltar dela. Enfrentar a realidade não tem sido fácil”, ela comenta, rindo. “Quando nos conhecemos, perguntei a ele o que pretendia fazer com o LSD. Timothy me disse que queria influenciar as artes”.

Pioneira também na utilização dos sintetizadores eletrônicos, Annette convenceu o inventor Robert Moog a lhe emprestar um protótipo, antes mesmo de esse instrumento se tornar viável comercialmente. Com ele realizou experimentos sonoros com a própria voz.

Por ser uma artista que, ao criar e gravar sua música, não levava em conta se ela seria ou não rentável, encarou dissabores. “Quando era mais jovem, eu lançava um álbum muito segura de que aquela era a melhor coisa a ser feita naquele momento. No entanto, como eu não conseguia me conectar com o mercado, acabava ficando desiludida, frustrada”, admite.

Depois de passar mais de uma década sem gravar, em 2000 lançou pelo selo europeu de jazz ECM o hoje cultuado “An Acrobat’s Heart”, álbum que reativou o interesse por sua música. Acompanhada por um quarteto de cordas, além de seu piano, ela interpreta nesse disco uma coleção de canções dissonantes e minimalistas, com certa nostalgia.

Algumas dessas canções estarão, segundo ela, no repertório de suas apresentações no Sesc Pompeia. “Vou levar comigo um percussionista (Roger Turner), porque sei que as pessoas valorizam muito de ritmos aí no Brasil”, avisa. “Vamos tocar peças de vários dos meus álbuns. Talvez as pessoas conheçam algumas delas, mas vou rearranjá-las. Será um programa bem diversificado”.

Ao saber que, em São Paulo, deve encontrar uma plateia com jovens interessados em free jazz e música de vanguarda, ela se entusiasma. E conta que se surpreendeu com as reações dos fãs que conheceu após uma apresentação que fez há pouco, em Portugal.

“Tive uma experiência maravilhosa na cidade do Porto. Foi incrível ver aqueles jovens, com os olhos brilhando, me dizerem que adoram minha música”, relembra. “O free jazz e a música que eu faço têm tudo a ver com liberdade – os jovens buscam a liberdade”.

(Entrevista publicada parcialmente na "Folha de S. Paulo", em 26/8/2017)






 

 

Chico Buarque: uma grande canção e novas pérolas, no esperado álbum "Caravanas"

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                                                                                          O compositor, em foto de Leo Aversa                                                                                                                                     
Paixões incontroláveis, conflitos sociais, preconceitos, sonhos. Quem conhece a obra musical de Chico Buarque vai logo se lembrar de que esses temas estão presentes em algumas de suas melhores canções. O compositor carioca volta a abordá-los em “Caravanas” (seu primeiro álbum desde 2011, lançado nesta sexta-feira), mas isso não tem nada a ver com redundância –- até porque esses temas são atemporais. Perfeccionista, quando Chico decide, depois de alguns anos, que está na hora de gravar e apresentar ao público uma nova coleção de composições próprias, a canção brasileira só tem a ganhar com isso.

“Tua Cantiga”, a faixa que abre esse álbum, já circula em rádios e na internet há quase um mês. É uma típica canção de amor, feita em parceria com o pianista Cristóvão Bastos, que já havia composto com Chico a bela “Todo Sentimento”, três décadas atrás. Em ritmo de toada, o piano quase hipnótico e as inversões harmônicas de Bastos, autor também do arranjo, evocam uma atmosfera de encantamento que realça a impetuosa paixão descrita nos versos.

Por mais risível que pareça, essa canção (“Quando teu coração suplicar /ou quando teu capricho exigir /largo mulher e filhos /e de joelhos /vou te seguir”) rendeu a Chico um julgamento sumário nas redes sociais. Apressadas feministas identificaram nesses versos uma prova de machismo do autor – reação típica do “politicamente correto” e do moralismo que têm orientado esses veredictos virtuais. Será que essas pessoas não desconfiam de que um personagem (lembre-se que Chico já criou personagens memoráveis em suas canções e romances) não reflete necessariamente as convicções pessoais de um autor?

“As Caravanas” –- canção que inspirou o título do álbum e o conclui -– talvez não vá provocar tanta polêmica quanto “Tua Cantiga”, mas certamente será lembrada no futuro entre outras grandes canções de Chico, como “Construção” (1971) ou “Vai passar” (1984). Nela, o compositor aborda de maneira impactante um fenômeno social que tem se repetido durante os verões no Rio de Janeiro: os bandos de garotos pobres das favelas e dos subúrbios, que decidem exercer seu direito de visitar as praias da zona sul carioca, desencadeando a rejeição e o medo dos frequentadores de classe média.

“Com negros torsos nus deixam em polvorosa /a gente ordeira e virtuosa que apela /pra polícia despachar de volta /o populacho pra favela /ou pra Benguela, ou pra Guiné”, ironizam os versos de Chico, apontando que o racismo secular se mistura ao preconceito social nas reações dos cariocas “de bem” que rejeitam essas visitas indesejadas. “Tem que bater, tem que matar /engrossa a gritaria / Filha do medo, a raiva é mãe da covardia”, desmascara a letra.

Em uma canção de alto quilate como essa, o tratamento musical precisa estar à altura dos versos. É o que se ouve no arranjo perfeito de Luiz Claudio Ramos, parceiro costumeiro do compositor. À voz de Chico, que de início é acompanhada apenas por um básico trio (violão, baixo e bateria), logo se somam outros instrumentos (teclados, percussões), simulando a tensão crescente provocada pela chegada da “caravana do Arará”. Esta é representada por um batuque tribal típico do funk carioca (vocalizado pelo "beatbox" de Mike), que se junta, num crescendo vertiginoso, ao som de uma orquestra, levando o cantor ao clímax: um grito de medo. Acertadamente escolhida para encerrar o álbum, “As Caravanas” deixa no ar uma sensação perturbadora – efeito que poderia ser diluído se fosse ouvida antes das canções mais líricas, que predominam no disco.

Uma das mais felizes, literalmente, é “Massarandupió”, valsa contagiante que Chico compôs em parceria com o músico Chico Brown (seu neto, filho do percussionista e compositor Carlinhos Brown e de sua filha Helena). O título se refere a uma praia da Bahia, onde o jovem Brown passava férias na infância. “Lembrar a meninice é como ir /cavucando de sol a sol / atrás do anel de pedra cor de areia /em Massarandupió”, imagina Chico, em seus versos nostálgicos.

Também carregando uma boa dose de nostalgia, o bolero “Casualmente” (parceria com o baixista Jorge Helder), com letra em espanhol, remete à beleza das ruas de Havana, a capital da ilha de Cuba. Pode soar como uma resposta elegante de Chico aos “haters” direitistas que já o provocaram (inclusive gritando “vai pra Cuba”), mas o fato é que essa canção nasceu como uma encomenda da cantora Omara Portuondo, do grupo cubano Buena Vista Social Club, ainda não gravada.

O samba-canção “Desaforos” também sugere uma certa ambiguidade. “Sou apenas um mulato que toca boleros /Custo a crer que meros lero-leros de um cantor /possam te dar tal dissabor”, ironizam os versos, que aparentam ter sido escritos para uma mulher. Como não pensar que se trata de um recado sutil, que o autor do gozador refrão “você não gosta de mim /mas sua filha gosta” (do samba “Jorge Maravilha”, assinado com o pseudônimo Julinho da Adelaide, em 1973, durante a ditadura militar) estaria mandando a seus detratores virtuais?

Numa época em que as questões de gênero e sexualidade estão em foco diário na mídia e nas redes sociais, o relaxado “Blues pra Bia” também pode render polêmica, mesmo que isso não estivesse nos planos do autor. Ao suspeitar que o alvo de sua paixão não se interessaria por homens, o personagem conclui seu relato com uma solução gaiata: “Porém nada me amofina /até posso virar menina /pra ela me namorar”.

Paixão arrebatadora também é o tema de “Dueto”, canção composta originalmente por Chico para o musical “O Rei de Ramos”, em 1979, e gravada no ano seguinte em duo com Nara Leão. Agora, em uma versão mais leve, ele divide os vocais com a neta Clara Buarque, irmã de Chico Brown. O ritmo ternário e o acordeom de Marcos Nimrichter emprestam um tempero especial ao arranjo de Luiz Cláudio Ramos, que remete a valsas francesas. Ao final, em descontraído tom de improviso, a dupla atualiza referências clássicas contidas nos versos (o amor que “consta nos autos, nas bulas, nos dogmas”), introduzindo nomes de redes sociais e aplicativos.

Outra canção não inédita do álbum é a lírica “A moça do sonho”, parceria de Chico com Edu Lobo para o musical “Cambaio” (2001). O arranjo despojado de Ramos, só com seu violão e o violoncelo de Hugo Pilger, deixa mais espaço para que o ouvinte se concentre na beleza das imagens oníricas (“Entre escadas que fogem dos pés /e relógios que rodam para trás /se eu pudesse encontrar meu amor /não voltava jamais”).

Finalmente, no samba sincopado “Jogo de Bola”, Chico retorna a outra de suas paixões, que já gerou o hoje clássico samba “O Futebol” (1989). Na letra recheada por firulas poéticas (“outrora, quando em priscas eras /um Puskás eras /a fera das feras da esfera, /mas agora há que aplaudir o toque /o tique-taque, o pique, o breque /o lance de craque do centroavante”), o compositor relembra o passado para lançar um olhar igualmente apaixonado pelo futebol de hoje. 


Só pelo gol de placa que é a canção “As Caravanas” já teria valido a pena esperar seis anos, mas há muito mais a aplaudir no novo disco desse grande craque da canção. 

(Resenha originalmente publicada no jornal "Valor", em 25/8/2017)



Abdullah Ibrahim: pianista sul-africano enfrentou racismo com belezas musicais

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Num momento em que o preconceito racial volta a chamar atenção no noticiário, os concertos do pianista e compositor sul-africano Abdullah Ibrahim – hoje e amanhã, no festival Jazz na Fábrica, em São Paulo – ganham um sentido maior. 

Aos 82 anos, Ibrahim é um remanescente da luta contra o infame regime político do apartheid, que durante quase cinco décadas (1948-1994) segregou a população majoritariamente negra e extinguiu seus direitos civis, na África do Sul. Em outras palavras, o racismo chegou a ser transformado em lei nesse país. 


Maior símbolo da resistência contra essa segregação racial, o ativista Nelson Mandela (1918-2013) passou 27 anos na prisão, até se tornar o primeiro presidente negro sul-africano após a instauração do regime democrático. 


“Entendemos desde cedo que a luta era por nossa própria humanidade”, disse Ibrahim, no ano passado, em entrevista ao jornal irlandês “Irish Times”. Quando decidiu se exilar na Europa, em 1962, seu grupo Jazz Epistles (do qual também fazia parte o trompetista Hugh Masekela) já enfrentava duras restrições do governo separatista, mesmo sem exercer atividades políticas explícitas. 


Nessa época, Ibrahim ainda era conhecido como Dollar Brand (seu nome original era Adolph Johannes Brand). Em 1963, um encontro quase casual elevou sua carreira musical a outro nível. Ao tocar no Africana Club, em Zurique, na Suíça, foi ouvido pelo pianista e compositor norte-americano Duke Ellington (influência marcante em sua música), que fazia uma turnê pela Europa. 


Impressionado, Ellington o ajudou a gravar um disco, intitulado “Duke Ellington Presents the Dollar Brand Trio”, que o introduziu na cena internacional do jazz. Dois anos depois já estava tocando nos Estados Unidos. Ao se converter ao islamismo, em 1968, adotou o nome Abdullah Ibrahim. 


“The Song Is My Story” (2015), sua gravação mais recente, mostra como sua original concepção musical evoluiu ao longo de seis décadas. Nas composições de Ibrahim, líricas melodias de ascendência africana são tratadas com a sofisticação das harmonias do jazz. Sem dispensar, naturalmente, o recurso da improvisação. 


“Improvisação é meditação em movimento”, ele reflete na capa desse álbum, fornecendo uma chave para se penetrar em seu universo sonoro. Na música meditativa de Ibrahim, o silêncio desempenha um papel quase tão importante quanto o das notas musicais ou o dos ritmos. 


Hoje, o veterano pianista e compositor alterna períodos na Alemanha, onde mora, e na bela Cidade do Cabo, onde nasceu. Pode-se dizer que é mais que um vencedor: superou o preconceito e a segregação racial do apartheid com a beleza de sua música. 


(Texto publicado na "Folha de S. Paulo", em 19/08/2017)



 

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