Miles Davis: trompetista deflagrou revolução silenciosa, 60 anos atrás, em 'Kind of Blue'

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Em 2009, quando veio ao Brasil para participar de concertos comemorativos do cinquentenário do álbum “Kind of Blue”, o baterista Jimmy Cobb (único remanescente dos sete músicos que participaram das gravações) admitiu, em entrevista que fiz com ele para a “Folha de S. Paulo”, que não tinha uma explicação para a imensa repercussão desse disco, considerado uma das obras-primas da música do século 20.

“Não houve qualquer planejamento, isso simplesmente aconteceu. Ao entrar no estúdio, nossa intenção era apenas fazer mais uma boa sessão de gravação com Miles”, disse Cobb, que fez parte do grupo regular do trompetista e compositor entre os anos de 1958 e 1962, em gravações e concertos.

O alto grau de liberdade que Miles costumava oferecer aos músicos de seus grupos certamente ajuda a explicar o produto dessas gravações. O trompetista entrou no estúdio da gravadora Columbia (na rua East 30th, em Nova York), em março de 1959, levando partituras que não passavam de meros esboços com os quais pretendia estimular a criatividade de seus parceiros musicais.

Se você viveu em uma caverna durante as últimas seis décadas, precisa saber que “Kind of Blue” é composto por cinco longas faixas instrumentais. Ou seja, sem vocais ou qualquer trecho cantado – característica que pode assustar ouvintes mais acostumados à linguagem das canções do universo da música pop. Mas qualquer um que se aventurar a escutar esse disco até o final, com a devida atenção, dificilmente vai se arrepender.

A enigmática introdução de “So What”, faixa que abre o álbum, desperta a atenção do ouvinte, logo conduzida, graças à simplicidade do tema, ao descontraído improviso de Miles, seguido por inventivos solos de John Coltrane (ao sax tenor) e Cannonball Adderley (sax alto). A atmosfera de relaxamento é acentuada pela faixa seguinte, o blues “Freddie Freeloader”, que destaca um radiante solo do pianista Wynton Kelly (sua única participação no disco), sucedido por intervenções de Miles e dos dois saxofonistas.

Faixa mais lírica do álbum, a delicada balada “Blue in Green” (cuja composição o pianista Bill Evans, que fazia parte do quinteto regular do jazzista na época, reivindicou posteriormente ser de sua autoria) envolve o ouvinte com uma calorosa dose de melancolia. Algo que Miles sabia fazer como poucos – especialmente quando alterava o som do trompete, utilizando o recurso da surdina, como se ouve nessa gravação.

Já em estado quase hipnótico, o ouvinte é embalado pelo valsante “All Blues”, outro tema simples e descontraído, que evolui para improvisos mais assertivos de Miles, Coltrane e Adderley. Finalmente, a sensível balada “Flamenco Sketches” encerra o disco com outro solo de trompete tingido de melancolia, além de emotivos improvisos dos saxofonistas e do pianista do sexteto.

Aos ouvidos daquela época, o diferencial desse álbum estava em sua inusitada concepção. Em vez de utilizar as harmonias complexas, a profusão de notas e os ritmos frenéticos que orientaram grande parte do jazz praticado nos anos 1950, Davis decidiu recuperar um pouco da simplicidade que esse gênero perdeu com o advento do bebop – o nervoso e inventivo estilo jazzístico que músicos como Charlie Parker e Dizzy Gillespie desenvolveram na década anterior.

O novo caminho apontado por Miles, já esboçado em seu álbum “Milestones” (1958), foi posteriormente rotulado pelos críticos e estudiosos como jazz modal. Ao substituir por modos (escalas) os improvisos calcados em progressões de acordes, ele encontrou uma maneira mais livre e espontânea de desenvolver melodias que abriu possibilidades até então inéditas para a expressão dos jazzistas.

Uma das melhores definições para o legado musical do álbum “Kind of Blue” foi cunhada por Herbie Hancock, pianista que integrou grupos de Miles nos anos 1960: “um portal para outra era”. Diferentemente do ruidoso free jazz, que quase virou do avesso a cena do jazz durante a mesma década de 1960, a revolução musical sugerida por Davis nesse disco foi mais silenciosa.

Na próxima vez que você decidir encarar uma estrada, seja de carro ou de ônibus, experimente levar “Kind of Blue” para ouvir. Tenho feito isso há décadas e, até hoje, não encontrei uma trilha sonora mais encantadora do que essa para acompanhar uma viagem. 

(Texto escrito para a "Folha de S. Paulo", publicado em 17/8/2019)




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