Bettye LaVette: a volta por cima de uma veterana do rhythm & blues e do soul

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No grande show que festejou a posse do presidente Barack Obama, três meses atrás, em Washington, Bettye LaVette era, provavelmente, a artista menos popular entre os astros de Hollywood e figurões da cena musical americana que estavam naquele palco. Esse fato só aumentou o impacto da apresentação dessa carismática cantora de soul e rhythm & blues, que fez muitos dos espectadores se perguntarem por que ainda não a conheciam.

“Nasci em um país segregado. Por isso, para mim, foi especialmente emocionante participar daquele evento”, diz a cantora de 63 anos, referindo-se à platéia (estimada em 400 mil pessoas), que uniu negros, brancos, latinos e orientais para saudar a chegada de um novo tempo na história americana. Para LaVette, a emblemática canção “A Change Is Gonna Come” (de Sam Cooke), que interpretou ao lado do cantor de rock Jon Bon Jovi, ganhou duplo sentido.

Foi só a partir de 2005, ao lançar o álbum “I've Got My Own Hell to Raise” (Anti Records), que ela viu seu nome voltar a ganhar destaque, na mídia de seu país, quatro décadas depois de ter freqüentado as paradas de sucesso com as gravações de “My Man, He's A Lovin' Man” (em 1962) e “Let Me Down Easy” (1965). Quem poderia imaginar que uma cantora que chegou a fazer turnês com astros da black music, como James Brown, Otis Redding e Ben E. King, teria de enfrentar quase 40 anos no ostracismo?

Força interior
“Não sei como consegui resistir por tanto tempo. Pensei em desistir da carreira muitas vezes”, admite a intérprete, cujas performances viscerais e a voz rouca costumam ser comparadas às de outra grande cantora de sua geração: Tina Turner. “Não faço idéia de onde vem minha força. Acho que ela sempre esteve comigo. Já estou ficando um pouco velha, mas faço o possível para usar essa intensidade da melhor maneira”, diz LaVette, que vai se apresentar pela primeira vez no Brasil, em maio, no festival Bridgestone Music.

Betty Haskins (seu nome verdadeiro) nasceu em Muskegon, no Estado de Michigan, mas cresceu em Detroit. Este centro da indústria automobilística americana foi também um dos berços da soul music, estilo derivado do rhythm & blues e do gospel, que se tornou bastante popular na década de 1960. Descoberta pelo produtor Johnnie Mae Matthews, LaVette tinha 16 anos ao gravar “My Man, He’s a Lovin’ Man”, seu primeiro single, que se tornou sucesso nacional ao ser distribuído pela influente gravadora Atlantic. Mais tarde chegou a ser gravado até por Tina Turner e Ann Peebles.

“Eu sempre cantei de um jeito um pouco diferente da maioria das cantoras, mas sei que minha carreira nunca chegou a ser promovida de maneira apropriada", diz ela, tentando explicar as dificuldades que enfrentou nas décadas seguintes. Gravou dezenas de singles por diversos selos (Motown, Epic, Big Wheel, Silver Fox e West End, entre outros), mas mesmo que algumas dessas gravações tenham frequentado a parada de sucessos do rhythm & blues, nenhuma delas chegou a ingressar na parada pop – parâmetro que costuma indicar, nesse setor do mercado musical, o suposto potencial de um artista para atingir o grande público.

A evidente qualidade de grande parte dessas gravações não impediu que Bettye LaVette se sentisse vítima de uma espécie de maldição, que parecia impedi-la de progredir na carreira. Em 1972, em sua segunda e última experiência com a gravadora Atlantic, ela entrou no lendário estúdio Fame, em Muscle Shoals (no Alabama), para gravar seu primeiro álbum. Intitulado “Child of the Seventies”, esse disco chegou a ser finalizado pelo produtor Brad Shapiro, mas não foi lançado pela gravadora, que, estranhamente, decidiu arquivá-lo sem uma justificativa convincente.

Álbum perdido
Essas gravações só chegaram ao público quase três décadas mais tarde, em 2000, quando o colecionador Gilles Petard localizou o “álbum perdido” e o lançou na França com outro título: “Souvenirs” (selo Art & Soul). Críticos e fãs comemoraram o resgate desse precioso tesouro musical, que trouxe um novo impulso à carreira da cantora, especialmente na Europa. Não foi à toa que, depois de lançar o elogiado CD “I've Got My Own Hell to Raise”, ela retornou a Muscle Shoals, no Alabama, para gravar seu álbum mais recente. O irônico título “The Scene of the Crime” (Anti, 2007) refere-se ao retorno à “cena do crime” cometido contra seu hoje clássico álbum de 1972.

“Muscle Shoals tem uma história da qual, infelizmente, eu não fiz parte. Wilson Pickett, Aretha Franklin, os Staple Singers e outros artistas se deram muito bem gravando naquele estúdio, mas eu não. Depois de 1972 praticamente não os encontrei mais, porque todos eles se tornaram grandes astros”, diz a cantora, que hoje já consegue falar sobre as décadas de ostracismo sem demonstrar mágoas. Mesmo assim não deixa de responsabilizar as gravadoras por seu desaparecimento da cena musical. “Acho que as pessoas demoraram a se acostumar ao som da minha voz, mas não importava tanto se eu estava fazendo algo muito bom ou não, naquela época. As gravadoras não sabiam como promover minha música”, observa.


Hoje, aos 47 anos de carreira, a cantora comemora a nova fase de sucesso. “O som do rhythm & blues voltou a ser aceito. As pessoas estão gostando de ouvir música mais áspera, mais real. Vejo muita gente jovem em meus shows. Chego a pensar que eles não vão me entender, mas eles olham para mim e sei que estão curtindo a intensidade da minha música. Fico contente ao ver que as pessoas finalmente começaram a prestar atenção em mim”.

(entrevista publicada no caderno cultural do "Valor Econômico", em 9/04/2009)



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