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Rodolfo Stroeter: baixista do grupo Pau Brasil lança "Madurô", um autorretrato musical

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                         O baixista e compositor paulistano Rodolfo Stroeter - Foto de Gal Oppido/Divulgação  

Um dos fundadores do conceituado grupo instrumental Pau Brasil, com o qual se apresenta e tem feito gravações desde os anos 1980, o contrabaixista, compositor e produtor paulistano Rodolfo Stroeter vai surpreender seus fãs. “Madurô”, seu segundo disco solo (lançamento do selo Pau Brasil), destaca um repertório autoral com dez canções e três temas instrumentais.

“Este disco é uma espécie de autorretrato musical, que inclui minha família e meus amigos”, sintetiza Stroeter. Nessas gravações, ele reencontra parceiros como os cantores Sérgio Santos, Joyce Moreno, Marlui Miranda e Céline Rudolph, o baterista Tutty Moreno, o pianista Helio Alves e seu filho Noa Stroeter, contrabaixista do Caixa Cubo Trio. E ainda, naturalmente, o quinteto Pau Brasil.  

Vale lembrar que, em seu primeiro disco solo (“Mundo”, lançado em 1986 pelo selo Continental), Stroeter já demonstrara ser um compositor que dialoga com diversas influências: da MPB ao instrumental brasileiro; do jazz à música clássica. Joyce e Marlui também participaram do elenco desse álbum, assim como o pianista e arranjador Nelson Ayres, do Pau Brasil.  

Contrapontos com parceiros

Agora, ao conceber “Madurô”, Stroeter decidiu dedicar mais espaço às suas canções inéditas – algumas compostas ainda nos anos 1980. Acostumado a trabalhar em grupo, mesmo quando produz o disco de algum intérprete, ele gosta de estabelecer contrapontos com os parceiros. “Quando comecei a fazer este disco, percebi que agora o contraponto seria comigo. Não consigo fazer isso sozinho”, admite Stroeter, que mais uma vez convocou parceiros e amigos, para formar um elenco de alto quilate.

Interpretada por Sérgio Santos, a singela canção “Boa Noite, Sereno” desfia sensações e descobertas de um primeiro namoro. O belo timbre do cantor mineiro também empresta brilho especial à lírica canção que dá título ao álbum. Curiosamente, conta Stroeter, a letra de “Madurô” ficou inacabada até ele reencontrá-la em um velho caderno. Logo depois achou a solução que buscava para conclui-la graças a uma sugestão de Noa.

Três cantoras, com as quais Stroeter desenvolve parcerias há décadas, também contribuíram para outras belezas do álbum. Já gravada por Monica Salmaso, a canção “Estrela de Oxum” ressurge na voz de Joyce, em delicado arranjo que destaca o piano de Nelson Ayres, a bateria de Tutty Moreno e o baixo do próprio autor. Em “Cantiga da Estrela”, a cantora franco-germânica Céline Rudolph demonstra sua bagagem jazzística, utilizando a voz como instrumento, em um criativo duo improvisado com o baixo elétrico de Stroeter.  

Exaltação aos indígenas

Outra surpresa do disco é “Rap Americano”, poema de Stroeter que exalta os povos indígenas das Américas, escrito para a “Ópera dos 500 / Popular e Brasileira”. Encenada por Naum Alves de Souza, em 1992, essa ópera pretendia desmistificar o suposto heroísmo de Cristóvão Colombo. Como não entrou na versão final do espetáculo, o poema estreia agora na voz do autor, acompanhado pelo Caixa Cubo Trio. Os vocais de Marlui Miranda, em idioma indígena, criam um contraponto inquietante com os versos.

O samba “Feiticeira” também demorou pelo menos uma década e meia para sair da gaveta. Fã de João Gilberto, Stroeter tem uma paixão especial pelo lendário LP de capa branca do pai da bossa, lançado em 1973. Quando soube que João frequentava a casa do baterista Tutty Moreno, em Nova York, teve a ideia de compor um samba com cara de bossa nova e enviá-lo para o mestre. “Até fiz a música, mas não mandei”, conta, sorrindo. Agora, para inclui-la em “Madurô”, convidou o cantor Zé Renato e Tutty para gravá-la de maneira bem despojada, como fez João Gilberto, em seu cultuado álbum.  

Stroeter agradece por duas sugestões de intérpretes que recebeu do violonista Swami Jr., também presente no disco. “Ele entendeu onde eu queria chegar com duas composições minhas de cunho mais popular”, reconhece. No contagiante samba “Na Boca do Povo” (parceria com o letrista Paulo César Pinheiro), Fabiana Cozza soa bem à vontade, como se estivesse cantando numa roda de amigos. Já “Viva Jackson do Pandeiro” é um alegre tema instrumental de Hermeto Pascoal, para o qual Stroeter escreveu uma letra, que imagina um encontro do carismático músico paraibano com o “bruxo” de Alagoas. Convidado a interpretá-lo, Chico Cesar personifica Jackson, carregando na pronúncia dos “erres”, para reviver um divertido sotaque do passado.

Parceria de quatro décadas

Por outro lado, Stroeter nem precisou pensar em quem gravaria “Aboio”, um dolente tema instrumental, e o gingado samba “Levada da Breca” – parcerias com Noa, que o Pau Brasil tem incluído em suas apresentações. “Eu toco com esse grupo de amigos há mais de 40 anos. Não existe a possibilidade de eu fazer um disco meu sem o Pau Brasil”, afirma o contrabaixista.

Escolhida para fechar o álbum, “A Voz da Oração” nasceu como uma letra de Stroeter que foi musicada por Noa. Com forma e conteúdo de uma prece, ela inspirou a emocionante interpretação de Sergio Santos, que expressa o significado especial dessa canção para o baixista do Pau Brasil e sua família. “Ela foi dedicada ao Noa e meus outros filhos. Não tenho religião que não seja a música, mas acabou saindo uma canção que abarca o sentido de amor aos de muito perto”, ele explica.

Cinco anos atrás, Stroeter enfrentou um grave problema cardíaco, que o levou a refletir mais sobre o sentido da vida, nos últimos anos. Hoje, ele percebe que a decisão de gravar um disco de canções como “Madurô” também tem relação com a experiência extrema que vivenciou. “O fato de eu ter, literalmente, apagado e, minutos depois, ter voltado à vida, me trouxe um sentido de liberdade essencial para fazer um disco como esse. Se não tivesse passado pelo que passei, eu jamais teria a coragem de me expor como faço nesse disco”, conclui. Em outras palavras, Rodolfo Stroeter amadureceu, madurô.

                                                                                          Texto escrito a convite do selo Pau Brasil 


Show de lançamento do álbum "Madurô"
- Dia 6/12/24 (sexta), às 21h, na Sala Crisantempo (Rua Fidalga, 521, Vila Madalena, zona oeste de São Paulo). Entrada franca. Com Rodolfo Stroeter (baixo acústico e elétrico), Hélio Alves (piano) e Tutty Moreno (bateria). Participações especiais de Sérgio Santos (voz), Analu Sampaio (voz) e Paulo Bellinati (violão). 

André Siqueira e Toninho Ferragutti: antigas valsas de Garoto com a sensibilidade de hoje

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                                   André Siqueira e Toninho Ferragutti, no show de lançamento no Sesc 14 Bis 


Confesso que, num primeiro momento, não cheguei a ficar animado ao saber que o violonista André Siqueira e o acordeonista Toninho Ferragutti gravaram um álbum com 10 valsas do lendário Garoto (1915-1955). Pensei: será que esses talentosos instrumentistas vão conseguir realizar a proeza de tornar atraente aos ouvintes de hoje um repertório tão antigo, criado quase um século atrás?

Que recursos musicais esses admiradores do grande multi-instrumentista de cordas – paulista como eles – poderiam utilizar para conquistar a atenção das plateias contemporâneas? Afinal, já nos acostumamos à alta intensidade sonora e à variedade rítmica da música de hoje, que nos chacoalha e entorpece, diariamente, por meio das plataformas de streaming, dos smartphones e canais do YouTube.

É provável que um receio semelhante ao meu tenha passado pelas cabeças de alguns dos felizardos que foram ao Sesc 14 Bis, na quinta-feira (3/10), para o show de lançamento de “Valsas de Garoto”, álbum em formato digital do Selo Sesc. Mas bastou escutar “Dias Felizes”, a doce valsa que abriu o repertório da noite, para que a plateia começasse a ser transportada para uma época em que a música e o lirismo costumavam andar de mãos dadas.

Autores dos arranjos do álbum, Siqueira e Ferragutti optaram por releituras: conseguiram imprimir um sabor mais atual às valsas de Garoto, tendo o cuidado de preservar a essência dessas composições. A maior parte do repertório é interpretada em duo de violão e acordeom. Por outro lado, o álbum ganhou timbres adicionais com as participações especiais de mais três craques da música instrumental: o violonista Paulo Bellinati, grande especialista na obra de Garoto; o clarinetista Alexandre Ribeiro e o violinista Ricardo Herz.

Foi bastante feliz a ideia de relembrar, na releitura da valsa “Luar de Areal”, o som do cultuado Trio Surdina – grupo formado por Garoto na década de 1950, quando teve a seu lado os talentos do violinista Fafá Lemos e de Chiquinho do Acordeom. Tanto nessa faixa do álbum, como no show de lançamento, Herz brilhou com seu violino, ao trazer de volta a sonoridade de Fafá, em alguns momentos.

Outra releitura muito especial é a de “A Cruz de Ouro”, que destaca a emotiva interpretação de Bellinati, ao violão. Já a valsa “Dugenir”, que Garoto dedicou à sua esposa, destaca a expressividade do clarinete de Ribeiro. Mas só mesmo quem foi ao show de lançamento, no Sesc 14 Bis, teve o privilégio de ouvir mais uma vez a emotiva “Gente Humilde”, a composição mais popular de Garoto, interpretada por Ferragutti, Siqueira e seus três convidados.

Tratando com carinho esse repertório do passado, Siqueira e Ferragutti utilizam suas sensibilidades contemporâneas para realçar as belezas dessas composições. Aplausos aos protagonistas do projeto “Valsas de Garoto” por provarem que a música instrumental de outras épocas também pode e deve ser apreciada, se o preconceito etarista for deixado de lado. E parabéns ao Selo Sesc por abraçar um projeto como esse, num momento em que a diluição parece tomar conta de muitas áreas de nossa cultura. 

 

Choraço 2023: Paulo Bellinati lidera homenagem a Garoto, mestre do violão moderno

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                                        Daniel Murray (da esq. para dir.), Paulo Bellinati e Swami Jr., no tributo a Garoto 

Quase sete décadas após a morte do grande violonista e compositor Aníbal Augusto Sardinha (1915-1955), mais conhecido como Garoto, o Brasil ainda tem uma dívida com ele. Considerado um fundador do moderno violão brasileiro e precursor da bossa nova, esse “gênio das cordas”, como chegou a ser chamado, jamais foi reconhecido pelo grande público de nosso país na medida em que sua obra musical mereceria.

É provável que ao menos algumas pessoas que foram anteontem (o feriado de 1.º de maio) ao show “Tributo a Garoto” tenham saído do Sesc 24 de Maio, em São Paulo, surpreendidas pela modernidade de sambas como “Lamentos do Morro” e “Sinal dos Tempos” ou pela beleza de choros e valsas, como “Quanto Dói Uma Saudade”, “Tristezas de Um Violão” e “Naqueles Velhos Tempos”, que revelam a maestria desse compositor paulistano.

Incluída na programação do projeto Choraço, essa homenagem não poderia estar em melhores mãos. A começar por Paulo Bellinati, grande violonista e profundo conhecedor da obra de Garoto, que lançou em 1986 um disco integralmente dedicado às composições do mestre (aliás, intitulado “Garoto”, esse álbum foi remasterizado e relançado pelo Selo Sesc, em 2019).

Ao lado de Bellinati estavam outros dois craques das cordas: Swami Jr. (violão de sete cordas) e Daniel Murray (violão), que se alternaram com ele em diferentes formações. A noite contou ainda com a participação especial de Cainã Cavalcante, outra grande revelação do violão brasileiro neste século.

Pena que Garoto, morto precocemente aos 39 anos, não tenha tido o prazer de ouvir suas composições nas interpretações desses brilhantes discípulos de gerações posteriores. Graças a eles, sua música continua encantando plateias.

Sesc Jazz 2021: quinteto Pau Brasil festeja 40 anos, enfim, ao vivo

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                                                                          O quinteto Pau Brasil, em show no festival Sesc Jazz
                                      

A plateia foi chegando aos poucos, meio ressabiada. Em outras épocas, uma apresentação do brilhante quinteto Pau Brasil certamente teria lotado o teatro do Sesc Vila Mariana, provocando até uma descontraída balbúrdia, antes da abertura da sala. Ontem à noite, um sábado, o saguão de espera estava vazio. Outros como eu, que passaram cerca de 20 meses distantes dos shows ao vivo, por causa das necessárias restrições de enfrentamento da pandemia, também devem ter achado esse retorno um tanto estranho.

Já no teatro, um pouco mais de 50% das poltronas estavam cobertas por capas, indicando que as pessoas só poderiam se sentar nos lugares pré-determinados. Além dessa medida para garantir o necessário distanciamento social, vale lembrar, ao entrar na unidade do Sesc todos tiveram que mostrar seus certificados de vacinação contra a Covid-19 e estavam usando máscaras de proteção.

“Gente, que saudade disso tudo”, disparou o saxofonista Teco Cardoso, quebrando de vez o gelo, logo após uma fusão do samba-canção “No Rancho Fundo” (de Lamartine Babo e Ary Barroso) com a clássica “Ária da Bachiana n.º 4”, de Heitor Villa-Lobos. Foi com essa inusitada associação musical que Teco, o pianista Nelson Ayres, o baixista Rodolfo Stroeter, o violonista Paulo Bellinati e o baterista Ricardo Mosca -- evidentemente emocionados -- abriram o show, incluído na programação do festival Sesc Jazz.

“Tocar para celular é horrível. E assistir ‘live’ de pijama, em casa, vocês também não aguentavam mais, não é?”, seguiu Teco, provocando mais risos. E ao comentar que o quinteto está comemorando 40 anos de atividade musical, o bem-humorado saxofonista fez até seus parceiros rirem de si mesmos. “Depois da pandemia tomamos uma decisão muito sábia. A gente não tem mais produtora, agora temos cuidadora”.

Pronto! Após uma explosão geral de risadas, já estávamos mais à vontade para nos deliciarmos com uma combinação de clássicos e belezas do repertório que o grupo acumulou durante essas quatro décadas, como o contagiante “Caixote” (xote de Ayres), a criativa releitura jazzística de “O Pulo do Gato” (composição de Bellinati) ou a lírica “Cidade Encantada” (de Nelson e Milton Nascimento).

E a festa musical não parou por aí. Também entrou no repertório material mais recente que o quinteto paulistano já tinha experimentado em alguns shows. Além do samba “Levada da Breca” (parceria de Rodolfo com seu filho baixista Noa Stroeter), o baião “Juazeiro” (de Luiz Gonzaga) ganhou como introdução a delicada “Aboio” (outra de Rodolfo e Noa), com Teco ao sax alto e ao pífano.

Que bela noite para se comemorar o tão esperado retorno dos shows ao vivo, em São Paulo. Salve o Pau Brasil! Salve o Sesc Jazz!

Esse show foi gravado e está disponível online neste link:
https://www.youtube.com/watch?v=14arLXs65DE&t=4497s





Dom Salvador e Garoto: músicos brilhantes em documentários do 12.º In-Edit Brasil

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                                                               O pianista Dom Salvador - Foto de Phoebe Landrum / Divulgação

Dois brilhantes instrumentistas e compositores paulistas – ainda pouco conhecidos entre o grande público – chamam atenção na seleção de filmes do festival In-Edit Brasil. Em versão online pela primeira vez, a 12ª edição dessa mostra dedicada a documentários musicais reúne mais de 60 filmes nacionais e internacionais inéditos.

“Garoto - Vivo Sonhando” (projeto de Henrique Gomide, Lucas Nobile e Rafael Veríssimo, que também assina a direção) resgata a breve trajetória musical do paulistano Aníbal Augusto Sardinha, o Garoto (1915-1955). Em composições de sua autoria, como o samba-canção “Duas Contas” ou o samba “Lamentos do Morro”, esse virtuose do violão (na foto abaixo) antecipou inovações harmônicas e rítmicas consolidadas anos mais tarde pela geração da bossa nova.

Por meio de depoimentos (Paulinho da Viola, João Gilberto, Roberto Menescal, Paulo Bellinati e Zé Menezes, entre vários outros), o filme credita o papel essencial de Garoto na modernização da música popular brasileira. Mas o que surpreende nesse documentário é a sólida construção da narrativa a partir de fotos, gravações de programas de rádio e até anotações das agendas pessoais de Garoto, que as usava como diários de suas realizações musicais.

A narrativa é tão rica em imagens, registros musicais e outros elementos que, provavelmente, muitos espectadores nem vão perceber que o protagonista do documentário só é visto e ouvido, em movimento, uma única vez. Trata-se de uma cena do filme “Serenata Tropical” (Down Argentine Way, de 1940), onde Garoto dedilha seu violão, em segundo plano, atrás de Carmen Miranda, que canta “Bambu, Bambu”. 

Essa cena foi filmada durante a viagem aos Estados Unidos, que Garoto fez para acompanhar a cantora, como integrante do conjunto Bando da Lua, no final dos anos 1930. Frustrado por ser tratado como coadjuvante, o violonista retornou ao Brasil. Chegou a receber propostas para voltar, meses depois, mas não foi. A morte precoce, aos 39 anos (vítima de um infarto), o impediu de realizar o desejo de se estabelecer como músico solista, na terra do jazz. 

O pianista, compositor e arranjador Dom Salvador – paulista de Rio Claro, que completa 82 anos neste sábado (12/9)  – também tinha esse sonho e conseguiu realizá-lo. Expoente do samba-jazz, na década de 1960, e pioneiro das fusões do samba com o soul e o funk à frente de seu grupo Abolição, no início dos anos 1970, ele desembarcou com a cara e a coragem, em Nova York, em 1973. Até se tornar reconhecido na cena do jazz, batalhou muito. Chegou a ficar 30 anos sem tocar em palcos brasileiros.

Artur Ratton e Lilka Hara, brasileiros que vivem em Nova York, enfrentaram um duplo desafio ao filmar e dirigir o documentário “Dom Salvador & Abolition”. Além da difícil tarefa de sintetizar em 88 minutos as seis décadas da diversificada carreira musical de Salvador, a dupla também decidiu registrar, nos últimos anos, cenas de seu cotidiano – do trabalho diário no sofisticado restaurante River Café (onde começou a tocar em 1977) até questões familiares.

Especialmente comoventes são as cenas de Salvador com a cantora Mariá, parceira musical e de vida, com qual se casou, em 1965, e teve dois filhos. Desde 2004, quando ela começou a exibir sintomas de demência, até os últimos meses de vida de sua amada (que morreu em abril deste ano), Salvador fez questão de cuidar dela sozinho.

O acesso ao acervo pessoal do pianista permitiu que os cineastas pudessem incluir na trilha sonora do filme algumas gravações inéditas, como trechos da primeira sessão de ensaio da banda Abolição. Ou uma sessão de gravação de Salvador com o percussionista norte-americano Steve Thornton, que conheceu quando se tornou diretor musical da banda do cantor e ator Harry Belafonte, pouco tempo depois de se instalar em Nova York.

Expoentes de diferentes épocas da música popular brasileira, os inovadores Garoto e Dom Salvador merecem ser mais conhecidos e ouvidos pelas gerações mais jovens. Estes documentários certamente podem contribuir para isso.

Veja os documentários do 12.º In-Edit Brasil (com ingressos a R$ 3), neste link: https://br.in-edit.org/ 



Paulo Bellinati & Marco Pereira: violonistas celebram afinidades no álbum 'Xodós'

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                                           Os violonistas Paulo Bellinati e  Marco Pereira / Fotos de Tarita de Souza 

Um encontro de músicos de alto quilate, como Paulo Bellinati e Marco Pereira, já seria por si só um evento especial, mas por trás do álbum “Xodós” (lançamento com o selo de qualidade da gravadora Borandá) há uma amizade de quase cinco décadas. Uma parceria musical marcada por afinidades, perfeccionismo técnico e profunda dedicação a esse instrumento tão essencial na linguagem da música brasileira.

Paulistanos, eles nasceram no mesmo mês de setembro, em 1950, com uma diferença de apenas três dias. Conheceram-se quando cursavam o Conservatório Dramático e Musical do Estado de São Paulo, onde frequentavam aulas de violão com o mesmo mestre: o uruguaio Isaías Sávio.

Também cultivaram praticamente as mesmas referências no violão. “Nosso grande ídolo foi Baden Powell (1937-2000). Naquela época quase não havia partituras de música popular, então o jeito era ralar muito ouvindo os LPs, para tirar de ouvido as músicas que queríamos tocar”, relembra Pereira.

Chegaram a se apresentar algumas vezes em duo, no início dos anos 1970, mas a parceria foi suspensa quando decidiram aprimorar os estudos na Europa. Depois de ingressar no Conservatório de Genebra, na Suíça, Bellinati não demorou a formar um grupo de música instrumental brasileira. Pereira se fixou em Paris, onde obteve o título de mestre em violão clássico e se tornou um conceituado concertista. De vez em quando, um deles convidava o outro para tocarem juntos.

De volta ao Brasil, já em 1981, os dois formaram o trio Pó de Mico, com o percussionista Zé Eduardo Nazário. Apresentaram-se algumas vezes, mas pouco depois Pereira decidiu deixar São Paulo para se tornar professor da Universidade de Brasília. Ali assumiu a recém-criada cadeira de Violão Superior, além de lecionar Harmonia Funcional. Paralelamente, seguiu com sua carreira de solista erudito, mas também gravou elogiados discos de música brasileira.

Já tocando também guitarra, viola caipira e cavaquinho, Bellinati uniu-se ao grupo instrumental Pau Brasil, com o qual se destacou como solista e compositor por cerca de uma década. O interesse pela música do violonista e compositor paulista Garoto (1915-1955) reativou sua ligação com o violão, levando-o a uma bem-sucedida carreira de concertista, especialmente em palcos dos Estados Unidos. Em 2002, voltou a fazer parte do grupo Pau Brasil, com o qual continua tocando até hoje.

“Sempre me surpreendi com o fato de termos continuado nossas carreiras em paralelo”, observa Pereira. “Alguns anos atrás tive a ideia de escrever um concerto para dois violões e orquestra. Passei oito meses feito doido, escrevendo. Estava finalizando o último movimento, quando li a notícia de que o Bellinati ia estrear um concerto para dois violões e orquestra. Era muita coincidência”, relembra o violonista, que sugeriu ao amigo, em meados de 2015, que retomassem a parceria.

A reestreia do duo se deu no Clube do Choro de Brasília (DF), algumas semanas depois. No programa dessa apresentação já figurava boa parte do repertório que viria a compor o álbum “Xodós”. Por sinal, os arranjos da dupla para “Eu Só Quero Um Xodó”, “Isso Aqui Tá Bom Demais”, “De Volta pro Aconchego” e “Gostoso Demais”, sucessos do sanfoneiro Dominguinhos (1941-2013), nasceram para atender a um pedido da produção do Clube do Choro, que costuma homenagear figuras importantes da música brasileira.

“Eles pedem que a gente toque ao menos uma música do homenageado, mas acabamos tocando cinco. Poderíamos fazer até um disco inteiro dedicado a Dominguinhos”, diz Pereira. Só a toada “Lamento Sertanejo” não entrou no disco, mas o duo costuma toca-la nos shows. “É muito legal, porque as pessoas saem cantando, espontaneamente, assim que a reconhecem”, conta Bellinati.

Se o acaso contribuiu para a criação dessas saborosas versões instrumentais de canções de Dominguinhos, as composições do violonista Dilermando Reis (1916-1977) já frequentavam o repertório de Pereira desde cedo. Tanto que este homenageou o influente mestre do violão, recriando com elegância suas composições no álbum “Dois Destinos” (Borandá, 2016).

O batuque “Xodó da Bahiana”, o choro “Magoado” e a valsa “Se Ela Perguntar”, interpretadas por Pereira em seu disco, ganham novos tratamentos e sonoridades nas releituras do duo. Vale lembrar que, nas 14 faixas de “Xodós” (foto da capa abaixo), Pereira toca violão com cordas de nylon no canal esquerdo; o violão com cordas de aço de Bellinati é ouvido no canal direito. A produção do álbum ficou a cargo de Swami Jr., outro grande violonista.


“Já nos ensaios a gente se surpreendia ao notar que rola uma liberdade, uma grande confiança entre nós, algo que não é comum entre qualquer músico. Se você toca completamente relaxado, com a certeza de que seu parceiro está 100% com você, você toca com mais calor. O rendimento é muito maior”, comenta Bellinati.

Pereira concorda com o parceiro e observa que a maturidade traz uma relação diferente com a música. “Quando você tem vinte e poucos anos se preocupa em impressionar o público com sua performance, com exuberância técnica. Mais tarde você amadurece e passa a valorizar o resultado musical. Esse disco também tem um pouco de exuberância, mas nós estamos a serviço da música o tempo todo”, considera.

O repertório de “Xodós” inclui também composições próprias. “Foi difícil escolher”, admite Pereira. “Ficamos com aquelas que poderiam funcionar bem com os dois violões”. De Bellinati entraram a inédita “Fandango” e “Jongo”, composição que se tornou um clássico no repertório do grupo Pau Brasil. Pereira contribuiu com “Choro de Juliana”, “Amigo Leo”, “Santo Amaro” e “Café Compadre”.

Hoje, tanto “Choro de Juliana” como “Jongo” são tocadas por violonistas de diversos países, em gravações mais tradicionais do que a ouvida em “Xodós”. “Algumas de nossas composições entraram no repertório do violão clássico. O cara pega a partitura, decora e a reproduz nos concertos”, observa Pereira. “Como eu e Bellinati também temos em nossa formação a bagagem do jazz, nossas versões acabam ficando diferentes, também por causa das partes improvisadas”.

Os dois admitem terem ficado especialmente satisfeitos com a releitura da lírica valsa “Se Ela Perguntar” (de Dilermando Reis). “Toquei essa música a vida inteira. Minha avó sempre chorava quando a ouvia. Ficamos emocionados ao escutar essa gravação”, conta Bellinati. “Ela possui uma magia que nem a gente consegue entender como conseguiu. É uma coisa rara, uma benção. Talvez tenham baixado alguns anjos no estúdio, na hora em que a tocamos”, brinca Pereira.

Perfeccionistas, eles contam que chegaram a masterizar o disco pela segunda vez, por não terem ficado satisfeitos com o resultado sonoro da primeira versão. “Passei a vida achando que eu era perfeccionista, mas ao fazer esse disco com o Bellinati percebi que eu sou fichinha perto dele. Ele tira até a última gota do som”, diverte-se Pereira. “Esse disco representa a história de nossas vidas, então tínhamos que caprichar”, retruca Bellinati.

Tratando-se desses dois grandes violonistas, que há décadas desenvolvem carreiras consagradas internacionalmente (e já não precisam provar mais nada a ninguém), só poderíamos esperar por algo assim: música brasileira de alta qualidade, tocada com requinte técnico, elegância e emoção.


(Texto escrito a convite da gravadora Borandá)

Paulo Bellinati e Marco Pereira lançam o álbum "Xodós", dia 15/08, às 21h, em show no Sesc 24 de Maio, na região central de São Paulo. Ingressos de R$ 7,50 a R$ 25,00, nas bilheterias das unidades do Sesc SP (a partir de 7/8) e online (a partir de 8/8), no portal do Sesc SP



Pau Brasil: quinteto paulista aprimora sua utopia musical no álbum "Daqui"

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                                      Teco, Nelson, Ricardo, Paulo e Rodolfo, do Pau Brasil / Foto: Gal Oppido

Ainda há quem consiga imaginar um país inspirador, com sua população vivendo em harmonia, na maior liberdade. Contrastes, só mesmo nos domínios da música, tão rica em sotaques regionais. “Esse Brasil ainda não existe, mas a gente quer que ele exista”, diz Rodolfo Stroeter, baixista do grupo instrumental Pau Brasil, um dos mais longevos na história da música brasileira.

Em “Daqui” (lançamento do selo Pau Brasil), seu 11º álbum, o quinteto paulista continua a perseguir sua utopia, aprimorando a receita que já utilizou em trabalhos anteriores. No repertório, combina composições próprias com releituras de clássicos da música brasileira – dos populares Ary Barroso (“No Rancho Fundo”) e Tom Jobim (“Saudade do Brasil”) ao supostamente erudito Villa-Lobos (“Bachianas Brasileiras nº 1”).

Depois de assumir diversas formações, o Pau Brasil já conta há uma década com os mesmos músicos: o pianista Nelson Ayres e Stroeter, que fundaram o grupo em 1979; o violonista Paulo Bellinati, que entrou dois anos depois; o saxofonista Teco Cardoso, convocado em 1986; e, finalmente, o baterista Ricardo Mosca, que chegou em 2005.

Décadas de parceria e convivência fazem diferença. Isso é evidente na versão de “Agora Eu Sei”, deliciosa marcha-rancho de Moacir Santos, na qual o quinteto imprime sua personalidade – desde a maneira descontraída de Bellinati e Stroeter dedilharem suas cordas, ao introduzirem a melodia, até a liberdade organizada dos improvisos.

O virtuosismo dos integrantes do Pau Brasil não impede que a música do grupo soe leve e, quase sempre, bem humorada, mesmo quando improvisam sobre encrencadas harmonias ou misturam influências. Como em “Caixote” (de Ayres), um descontraído xote cujo sotaque nordestino ganha uma coloração levemente jazzística. Contagiante também é a alegre brasilidade de “Lá Vem a Tribo”, composição de Stroeter e Bellinati, que encerra o álbum. 


Quem sabe a mencionada utopia possa ganhar mão dupla: se tomasse a música do Pau Brasil como modelo, o Brasil poderia voltar a ser um país invejável.

(Resenha publicada no "Guia Folha - Livros, Discos, Filmes", publicado em 26/3/2016)

Pau Brasil: grupo instrumental paulista lança seu 'Caixote' com 8 CDs, DVD e livreto biográfico

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                                                                                                                          Photo by Dani Gurgel

Com shows no Sesc Pompéia, em São Paulo, neste final de semana (dias 30 e 31/3), o grupo Pau Brasil, referência da melhor música instrumental feita em nosso país, comemora três décadas de carreira com o lançamento de seu "Caixote". Esse box, patrocinado pela Petrobrás, reúne seus primeiros oito álbuns, do primogênito "Pau Brasil" (de 1983, ainda inédito em CD) até "2005" (CD que marcou o retorno do grupo, em 2005, após um hiato). 

O "Caixote" inclui ainda um DVD com registro do show "Babel" (1996), e um livreto sobre a trajetória do grupo, incluindo saborosos relatos dos músicos de suas várias formações, que tive o prazer de escrever. Reproduzo abaixo a breve introdução desse livro, aliás, ricamente ilustrado, que também pode ser lido no site do Pau Brasil:
http://www.grupopaubrasil.com/historia.php

Pau Brasil: três décadas de música instrumental brasileira

No futuro, quando algum pesquisador tomar para si a essencial tarefa de narrar e analisar a história da música instrumental brasileira, certamente dedicará um capítulo dessa obra ao grupo Pau Brasil. Nada mais justo: a exemplo de outros expoentes desse gênero musical que o precederam, como o Tamba Trio e o Zimbo Trio, ou de grupos liderados por grandes compositores e improvisadores ainda na ativa, felizmente, como Hermeto Pascoal e Egberto Gismonti, o Pau Brasil tornou-se uma referência para várias gerações de apreciadores e músicos.
Nas gravações reunidas nesta caixa, realizadas ao longo das últimas três décadas, é fácil perceber como a obra do Pau Brasil reflete, com personalidade, as inquietações estéticas e as transformações sonoras da moderna música instrumental produzida no país – gênero que alguns preferem chamar de jazz brasileiro. Em suas diversas formações, o Pau Brasil sintetizou a busca de uma música essencialmente brasileira e moderna, que utiliza a improvisação sem recorrer aos clichês ou aos standards do jazz norte-americano. Para isso, seus integrantes buscaram novas formas musicais, criando um repertório próprio e original.
O reconhecimento da importância desse grupo musical de São Paulo, tanto pela crítica especializada, como pelo público, foi imediato. Seu álbum de estreia, Pau Brasil (1983), recebeu elogios dos principais órgãos da imprensa nacional, assim como suas gravações posteriores. Sucesso que logo se estendeu à Europa, onde o grupo realizou extensas turnês anuais pelos principais clubes de jazz e festivais de música, além de apresentações nos Estados Unidos e no Japão, exportando o que há de melhor na música instrumental brasileira. E hoje, com uma bagagem musical ainda mais ampla e diversificada, o Pau Brasil segue ativo e criativo, com o mesmo bom humor que sempre o identificou.

 

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