Sesc Jazz: blues e rebeldia nos improvisos da pianista Amina Claudine Myers

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                            A pianista norte-americana Amina Claudine Myers, no Sesc Jazz 2025
 

Os aplausos calorosos da plateia do Sesc Pompeia – no show de encerramento do festival Sesc Jazz, no último domingo (2/10), em São Paulo – demonstraram mais uma vez que, quando se domina um idioma universal como o jazz, os músicos nem precisam utilizar palavras para se comunicarem com pessoas que mal os conheciam até aquele dia.

Entre aqueles que ainda não tinham alguma familiaridade com a música da norte-americana Amina Claudine Myers é possível que alguns tenham se decepcionado um pouco por causa de seu repertório. Com uma carreira musical de seis décadas, na qual se destacam parcerias com vários expoentes do jazz de vanguarda, essa pianista e compositora revelou que hoje está bem mais próxima da tradição do blues e do gospel do que das experimentações jazzísticas dos anos 1960 e 1970.

Mesmo que o início de sua vida profissional tenha se dado na metropolitana cidade de Chicago, onde se filiou à lendária AACM (Associação pelo Avanço dos Músicos Criativos), Amina, nascida no interior do Arkansas, é uma musicista assumidamente religiosa. O fato de que, em suas apresentações, ela costuma se alternar entre um piano acústico e um órgão já é revelador.

A religiosidade de Amina jamais a impediu de expressar suas convicções pessoais ou políticas. Como em “African Blues”, sua composição mais conhecida, revisitada por ela logo na parte inicial do show no Sesc Jazz, quando tocou piano, acompanhada pelos parceiros Reggie Nicholson (bateria) e Jerome Harris (baixo e vocais).

Essa composição nasceu de um improviso, em 1980, durante as gravações do álbum que a pianista dedicou à cantora Bessie Smith. Como relatou mais tarde em entrevistas, nessa mencionada gravação Amina improvisou por cerca de 15 minutos com vocais sem palavras, como se estivesse possuída por um espírito, pensando no sofrimento dos negros da África do Sul em sua luta contra o injusto regime do apartheid. Pena que a norte-americana não tenha tomado a iniciativa de explicar esse contexto à plateia brasileira, que assim poderia captar totalmente o sentido de sua composição.  

Mesmo quando se sentou ao órgão, para interpretar a seção mais espiritual do repertório de seu show, ela não perdeu a chance de se manifestar como uma rebelde cidadã norte-americana. Ao improvisar os versos do gospel “Have Mercy Upon Us”, sem citar nomes, ela se referiu aos anunciados planos do atual governo dos Estados Unidos de reduzir programas e benefícios sociais, que têm gerado muitos protestos naquele país.

Mostrando que costuma definir o repertório de suas apresentações de acordo com o local e o momento presente, Amina também lembrou outro item costumeiro em seu repertório. Cantou um blues muito adequado para um dia nublado e chuvoso, em São Paulo, como o último domingo: “Standin’ in the Rain”, de Bessie Smith, a famosa Imperatriz do Blues.

Tomara que o Sesc repense a frequência do Sesc Jazz e volte a realizar esse festival anualmente, como fazem os eventos similares no Brasil e pelo mundo. Para os fãs desse gênero musical, como eu, não é fácil esperar dois anos por um festival – talvez o melhor do país nesta década – ao qual já nos acostumamos. 


Walmir Gil: a simplicidade de João Donato nas releituras do trompetista da Banda Mantiqueira

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                                       Walmir Gil lança álbum dedicado ao compositor João Donato 

Trompetista, arranjador e educador musical, Walmir Gil já teria garantido um lugar especial na história da música popular brasileira por ser um dos fundadores da cultuada Banda Mantiqueira, com a qual se apresenta há mais de três décadas. Essa original big band de São Paulo, criada em 1991, é motivo de orgulho para os paulistas e fãs de outros estados do país que apreciam música instrumental de alto quilate e jazz com sotaque brasileiro.

A Mantiqueira é a cereja do bolo, na longa folha de serviços prestados por Gil à música brasileira e ao jazz, em suas cinco décadas de carreira. Nos anos 1980, ao integrar o naipe de metais da afiada big band do 150 Night Club do Hotel Maksoud Plaza, em São Paulo, ele acompanhou astros do jazz, como Anita O’Day, Benny Carter, Bobby Short e Paquito D’Rivera, entre outros.

Na década de 1990, Gil fez parte da suingada banda que tocava com Djavan em suas turnês, assim como acompanhou nos palcos outros grandes intérpretes e compositores da música brasileira, como Caetano Veloso, Gal Costa, Rosa Passos, João Bosco, César Camargo Mariano, Fafá de Belém, Simone e Milton Nascimento. Já neste século, além de gravar dois discos como solista (“Passaporte” e “Novas Histórias”) e de defender seu mestrado em música pela Unicamp, ele ministrou dezenas de workshops e oficinas de trompete pelo país adentro.

A afinidade de Gil com a música de João Donato remonta à década de 1970, quando já tocava um arranjo de “Lugar Comum”, em bailes na cidade de Santos, no litoral paulista. “As músicas que você gosta de tocar sempre serão tocadas com o coração”, diz ele, explicando que teve a ideia de homenagear Donato, em um disco com arranjos instrumentais de suas composições, não só por admirá-lo como músico e compositor, mas também pelo prazer que sente ao tocar essas músicas.

“Fui convidado a tocar com ele algumas vezes, mas eu sempre estava viajando. Perdi a oportunidade de conhecê-lo pessoalmente”, lamenta Gil, que diz apreciar a música de Donato, especialmente, por sua simplicidade. “Ele era um cara muito simples, que não usava uma harmonia complexa, mas conseguia transmitir o que queria. Sempre gostei muito dele”.

Elogiando também o suingue de Donato, ao comentar as afinidades que tem com seu homenageado, Gil menciona o princípio minimalista “menos é mais”, que já foi adotado na arquitetura, no design e em diversos campos artísticos. “É como a música do Miles Davis”, compara o músico paulista, referindo-se ao genial trompetista e compositor norte-americano, outra de suas referências musicais.


O álbum: simplicidade com temperos afro-latinos

Para as gravações do álbum, Gil convocou seu Quinteto Afro Latin Jazz, que destaca outros três craques da cena instrumental e jazzística de São Paulo: o tecladista Bruno Cardozo, o baterista Cuca Teixeira e o baixista Carlinhos Noronha, que já tocam com Gil há mais de vinte anos. Mais recente no grupo, a percussionista argentina Caro Cohen traz muita energia e intimidade com o rico universo dos ritmos afro-cubanos e da música latina.

“A ideia é temperar a música do Donato com ritmos afros e latinos”, diz ele, sintetizando o conceito do álbum. Um saboroso exemplo dessa receita sonora é o arranjo de “Emoriô”. Essa faixa é introduzida pela sonoridade grave e etérea do clarone do convidado Nailor Proveta, outro antigo parceiro de Gil e fundador da Banda Mantiqueira. Na sequência, a clave cubana e a percussão de Caro Cohen criam uma atmosfera de polifonia tribal, em ritmo de rumba.

A doce “Lugar Comum” começa com sons de água corrente, como se o quinteto estivesse na beira de um rio. Caro, a percussionista, puxa um hipnótico ritmo de guaguancó e, ao fundo, Gil sopra a conhecida melodia de maneira suave, como se ela flutuasse. Na seção de solos, tanto o trompetista como Bruno Cardozo (piano elétrico) e Carlinhos Noronha (baixo) soam bem jazzísticos.

Outro clássico de Donato, a dançante Bananeira” é introduzida por um breve solo do baterista Cuca Teixeira. Nesta faixa, Gil recebe outro convidado especial: o trombonista François de Lima, também seu parceiro na Mantiqueira. “Nós tocamos juntos há 58 anos”, festeja o trompetista. E chama atenção para um detalhe bem-humorado de seu arranjo: a primeira parte da melodia surge com o ritmo alterado, “com um pé quebrado”, segundo ele, “como se escorregasse numa casca de banana”.

Composição de Donato que deu título a seu último disco, Bluchanga estimulou Gil a fazer um segundo convite a Proveta. “Essa música foi inspirada em ‘Night in Tunisia”, aquele clássico do bebop. Coloquei um ritmo de cha-cha-chá ali no meio e chamei o Proveta para tocar sax alto. Ele mandou muito bem no bebop. Proveta é um grande músico”, elogia o líder, dizendo que gosta de compartilhar seus melhores trabalhos com os amigos. “O François e o Proveta são brothers, meus irmãos. A gente morou junto durante 17 anos”, relembra. 

Um músico de jazz poderia até chamar a canção “Até Quem Sabe” de balada, mas no suave arranjo de Gil, que a interpreta com elegância e emoção contida, ela soa como um romântico bolero, especialmente pelo ritmo e pela sonoridade das congas de Caro. Já em “Minha Saudade”, o pianista Bruno Cardozo sugere na introdução o andamento lento de uma balada, mas o ritmo e o andamento logo mudam: o que se ouve é um suingado samba, sem exageros ou histrionismos.

Walmir Gil já tocava “Quem Diz Que Sabe”, no final dos anos 1970, quando integrava o naipe de metais da orquestra regida pelo maestro Branco, na casa noturna Ópera Cabaré, em São Paulo. Foi naquela época que ele se inspirou para criar o arranjo, em andamento mais rápido. “Optei por fazer assim, com uma influência latina, para o disco não ficar arrastado, com outra balada lenta”, justifica.

Uma das canções mais líricas de Donato, A Paz é a única faixa do álbum sem improvisos mais extensos. “A melodia fala por si só”, justifica Gil, que esboça já ao final da gravação uma breve citação de “A Child Is Born”, clássica balada do repertório jazzístico, assinada pelo trompetista Thad Jones. Em tempo de guerras e tantas mortes sem sentido, a mensagem pacifista de Gil também merece aplausos, nesta bela homenagem ao grande João Donato. Que sua música continue presente em nossos ouvidos e corações.

Texto escrito para o encarte do álbum "João Donato, presente!" a convite do trompetista Walmir Gil. Gravação já disponível nas plataformas musicais.



Sesc Jazz: trombonista Allan Abbadia cria encontro de John Coltrane e Moacir Santos

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                              O trombonista Allan Abbadia e seus parceiros, no festival Sesc Jazz 

O trombonista e arranjador paulistano Allan Abbadia teve uma ideia inusitada, quando ainda era estudante de música: criou uma espécie de diálogo musical entre dois cultuados discos lançados no mesmo ano de 1965. Um dos álbuns de jazz mais admirados mundialmente, “A Love Supreme” é uma emocionante suíte jazzística em quatro partes, composta e interpretada pelo saxofonista norte-americano John Coltrane (1926-1967), que soa como um testemunho de sua jornada espiritual, assim como uma declaração de sua gratidão a Deus.


“Coisas”, do compositor e saxofonista pernambucano Moacir Santos (1926-2006), que viveu a segunda metade de sua vida nos Estados Unidos, é considerado um marco na história da música instrumental brasileira. Primeiro disco assinado por Moacir, esse álbum reúne composições de sua autoria, recheadas de referências afro-brasileiras e elementos da música erudita. Chamadas de “Coisa” por ele, as dez peças são identificadas por números de 1 a 10.

O antigo projeto de Abbadia resultou agora em um excitante show ao ar livre, “Coisas Supremas”, apresentado na tarde do último domingo (26/10), no Sesc Pompeia, em meio à programação do festival Sesc Jazz, em São Paulo. Ao lado de talentosos músicos de nossa cena instrumental, como o pianista Fábio Leandro, o trompetista Allyson Bruno e o saxofonista Silas Prado, Abbadia exibiu seus arranjos de algumas “Coisas” de Moacir e de seções da suíte de Coltrane, que ganhou uma sonoridade mais brasileira. No naipe de sopros da banda também estava a flautista carioca Andrea Ernest Dias, especialista na obra de Moacir Santos.

Foi só ao final do show que Abbadia apresentou a obra que deflagrou esse corajoso projeto: uma suíte criada quase duas décadas atrás, que mistura trechos das composições de Coltrane e Moacir, extraídos dos dois citados álbuns. Tomara que algum selo fonográfico (quem sabe o próprio Selo Sesc) tome a iniciativa de transformar esse projeto tão inspirador em um disco. Já que esses grandes mestres da música do século 20 não chegaram a se conhecer pessoalmente, esse disco seria uma maneira de realizar esse incrível encontro musical, que alegraria muitos fãs e admiradores.


Sesc Jazz: improvisos de Kahil El’Zabar encantam a plateia do festival

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                                     O baterista norte-americano Kahil El'Zabar, no festival Sesc Jazz
 

Para muitos dos que foram ouvir o multi-instrumentista e compositor norte-americano Kahil El’Zabar (dia 26/10, no festival Sesc Jazz, realizado no Sesc Pompeia e em outras unidades dessa entidade paulista) é provável que essa apresentação tenha sido uma surpresa ou até mesmo uma sedutora revelação musical.

Com uma carreira ligada ao jazz de vanguarda, que se estende por mais de cinco décadas, esse baterista e percussionista de Chicago (EUA) já cultivou parcerias com renomados instrumentistas dessa vertente jazzística, como Archie Shepp, David Murray, Pharoah Sanders e Billy Bang, entre outros.

Quem ainda não o conhecia nos palcos, certamente se surpreendeu ao ouvir sua inusitada releitura da clássica canção “Summertime” (de George Gershwin). Dedilhando uma kalimba (instrumento de origem africana, também conhecido como “piano de polegar”), ele desenvolveu uma extensa e insólita improvisação.

Em vez de entoar os conhecidos versos de DuBose Heyward, como faria qualquer cantor, El’Zabar combina seu talento para os improvisos instrumentais com a expressividade típica de um ator: mistura vocalismos com murmúrios, gemidos e dramáticas expressões faciais. Aliás, seus encantadores solos de bateria também merecem ser vistos, não apenas ouvidos, justamente por causa de sua expressão corporal e senso de humor.  

Bem acompanhado por Alex Harding (sax barítono), Corey Wilkes (trompete) e Ishmael Ali (violoncelo), integrantes de seu Ethnic Heritage Ensemble, El’Zabar faz uma reveladora declaração, em um documentário de curta duração que comemora o cinquentenário desse conjunto musical (disponível em vídeo no YouTube):

“Nunca busquei a perfeição, eu busco a expressão. Não ter medo de errar abre muitas possibilidades de novas descobertas”, afirma o músico de Chicago, que a exemplo de vários de seus parceiros musicais também é ligado à lendária Associação pelo Avanço dos Músicos Criativos (AACM), fundada nessa cidade, em 1965. Se você ainda não o viu num palco, não perca a próxima oportunidade. É um espetáculo.

  

Sesc Jazz: encontro musical de Dom Salvador com Amaro Freitas foi criativo e inspirador

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                           Amaro Freitas abraça Dom Salvador, em show do festival Sesc Jazz  
 

Não é difícil explicar por que o show do cultuado pianista e compositor paulista Dom Salvador, com participação muito especial do pernambucano Amaro Freitas, também um brilhante pianista e compositor, logo despontou como a atração mais procurada da sexta edição do festival Sesc Jazz, em São Paulo. Os mais de 2 mil ingressos colocados à venda para as três noites desse show se esgotaram em pouco mais de 24 horas.     

Grande expoente da primeira geração do samba-jazz, hoje aos 87 anos de idade, Salvador só se apresenta de vez em quando no Brasil. Vive desde 1973 em Nova York, onde toca piano  regularmente no sofisticado River Café, lidera seu sexteto em festivais e tem desfrutado de prestígio crescente no meio jazzístico.

Aos 34 anos, Freitas é considerado a maior revelação do jazz brasileiro na última década. Em pouco tempo conseguiu ingressar no circuito dos clubes e festivais de jazz da Europa e dos Estados Unidos. Suas turnês pelo mundo têm crescido ano a ano. Quem não gostaria de presenciar um inédito show em parceria de músicos de tão alto quilate?  

Salvador abriu a noite de ontem (15/10), no teatro do Sesc Pompeia, tocando algumas de suas composições mais conhecidas, como “Tematrio”, “Gafieira” e “Meu Fraco É Café Forte”, que já se tornaram clássicos do samba-jazz. A seu lado estavam a saxofonista e flautista Laura Dryer, o baterista Graciliano Zambonin e o contrabaixista Gili Lopes, talentosos parceiros que costumam integrar seus projetos musicais. Depois de alguns números, o quarteto virou sexteto, com as participações de dois craques da cena musical carioca: o percussionista Armando Marçal e o guitarrista Zé Carlos, que tocava com Salvador na lendária banda Abolição, no início dos anos 1970.

Mais falante, Amaro Freitas homenageou Salvador ao declarar que nem teria existido como artista se a música do compositor e pianista paulista não o tivesse antecedido. Estendeu esse tributo a outros grandes intérpretes e compositores negros, que também são referências suas no campo da música popular e instrumental brasileira, citando os nomes de Naná Vasconcelos, Johnny Alf, Alaíde Costa, Elza Soares, Tania Maria, Laercio de Freitas e Milton Nascimento. A emoção de Salvador era evidente, ainda mais quando Freitas se levantou do piano para abraça-lo.

Os improvisos se tornaram mais intensos e abertos à experimentação, na parte do show que destacou composições de Freitas, como a percussiva “Viva Naná” e a vibrante “Encantados”, marcada por sons de diversas flautas. Não faltou também uma reverência à tradição do choro, com os pianistas interpretando em duo o delicado “Choro Lento”, composição de Salvador. 

Criativo e inspirador, o inédito encontro de Dom Salvador e Amaro Freitas encantou os ouvidos e sensibilidades daqueles que tiveram o privilégio de estar na plateia do Sesc Pompeia. Tomara que esse exemplo incentive outros grandes músicos brasileiros a experimentarem novos encontros e parcerias. O diálogo entre as gerações pode ser muito enriquecedor, especialmente quando envolve empatia e admiração mútua. 


                                Amaro Freitas (acima) e Dom Salvador (abaixo, de costas)

Sesc Jazz: festival retorna com atrações da África, dos EUA e da América Latina

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                  Dom Salvador e Amaro Freitas estarão no 6º Sesc Jazz/ Fotos: Carlos Calado   

Um dos festivais de música mais originais de nosso país, o Sesc Jazz anunciou as atrações de sua sexta edição. Agora produzido de dois em dois anos, o sucessor do Jazz na Fábrica (festival realizado na unidade do Sesc Pompeia até 2017) vai levar sua programação de shows de 27 artistas e grupos internacionais e brasileiros a nove unidades do Sesc na capital e no estado de São Paulo, de 14 de outubro a 2 de novembro. 

Entre os destaques de seu eclético cardápio musical, o Sesc Jazz promove um inédito encontro de dois grandes pianistas e compositores: o mestre paulista Dom Salvador, pioneiro do samba-jazz radicado em Nova York desde 1973, e o pernambucano Amaro Freitas, uma das maiores revelações do jazz brasileiro nas últimas décadas. O fato de esse encontro de gerações ocupar três noites na grade de programação (de 15 a 17/10) já sugere que esse show deve ser um dos mais disputados do evento.

Entre outras atrações brasileiras, o festival também oferece um histórico reencontro musical. Radicada há mais de 40 anos na França, a cantora Evinha (ex-vocalista do Trio Esperança) terá a seu lado o cantor e pianista Marcos Valle, expoente da segunda geração da bossa nova. Juntos vão revisitar canções que ele compôs especialmente para ela, na transição dos anos 1960 para os 1970.   

Outro show inédito vai homenagear Leny Andrade, grande estrela do samba-jazz, que perdemos dois anos atrás. Um merecido tributo a seu imenso talento vocal vai reunir três cantoras que transitam com facilidade pelo universo do jazz: a carioca Eliana Pittman, a mineira Rosa Maria Collin e a hondurenha Indiana Nomma. No palco, também estarão dois pianistas que costumavam tocar com a homenageada: João Carlos Coutinho, que assina a direção musical desse show, e Gilson Peranzzetta, em participação especial.      

                                     


Quem abre essa edição do festival (dias 14 e 15/10, no Sesc Pompeia) é o carismático cantor, compositor e guitarrista senegalês Baaba Maal (na foto acima). Conhecido na cena internacional da música desde o final da década de 1980, ele se tornou uma espécie de embaixador cultural de seu país e da própria África. Com o passar dos anos sua música tornou-se mais e mais eclética, revelando até influências do funk, do reggae e do blues. Entre suas gravações mais conhecidas, a canção “Wakanda” fez parte da trilha sonora do filme “Pantera Negra: Wakanda Para Sempre” (de 2022).  

Dos Estados Unidos virão dois conceituados jazzistas, que iniciaram suas carreiras sob a estética experimental da AACM (Associação para o Avanço dos Músicos Criativos), fundada em 1965, em Chicago, Illinois. Dois anos antes, saída do estado do Arkansas, a pianista, vocalista e compositora Amina Claudine Myers (na foto abaixo) se radicou nessa metrópole. Ali desenvolveu parcerias com expoentes do jazz de vanguarda, como Lester Bowie e Henry Threadgill, mas com o passar do tempo suas referências tornaram-se mais amplas, incluindo influências de vertentes tradicionais da música negra, como o blues e o gospel.  



Nascido em Chicago, o percussionista e compositor Kahil El’Zabar lidera há cinco décadas o Ethnic Heritage Ensemble (Conjunto Herança Étnica). Em suas composições e releituras musicais, El’Zabar adapta aos ouvidos de hoje elementos da tradição musical africana. Artista sem preconceitos, ele já dividiu gravações com jazzistas de vanguarda, como os saxofonistas Archie Shepp e Pharoah Sanders, assim como já tocou com artistas da música negra norte-americana, como Stevie Wonder e Nina Simone.

Como já se viu durante as edições anteriores do Sesc Jazz, nesse panorama da música improvisada contemporânea traçado pela equipe de curadores do festival, o conceito de Sul Global confere protagonismo aos músicos que se valem da linguagem jazzística na América Latina, assim como valoriza a tradição da música africana e sua cena mais moderna.

Além do embaixador cultural Baaba Maal (do Senegal), o continente africano está representado nessa edição por Alogte Oho, uma das vozes mais representativas da cena gospel de Ghana, que vem acompanhado pelo grupo His Sounds of Joy. Já a cantora e compositora Gabi Motuba, da África do Sul, dialoga com o jazz e a vanguarda, em sua obra musical, revelando também preocupações sociais e políticas em sua canções.

                               



Entre os destaques da América Latina está a cantora, pianista e atriz Aymée Nuviola (na foto acima), herdeira de estrelas da canção cubana como Celia Cruz e Omara Portuondo, que viu sua carreira internacional decolar na década passada. Conhecido aqui por suas parcerias com Hermeto Pascoal e Airto Moreira, o multi-instrumentista e compositor uruguaio Hugo Fattoruso será acompanhado por seu grupo Barrio Sur. Da Colômbia vem o De Mar y Rio, grupo que resgata a música tradicional de marimba (instrumento de percussão semelhante ao xilofone), com vocais femininos.

O palco externo do Sesc Pompeia, que já funcionava em edições anteriores do festival, oferece uma programação ao ar livre especialmente caprichada neste ano, com entrada franca aos domingos. Essa compacta mostra de projetos inéditos começa no dia 19/10, com a banda paulistana Aláfia revivendo clássicos do funk do norte-americano George Clinton e sua psicodélica banda Parliament.

                                               

O projeto “Coisas Supremas: conexão entre ‘Coisas’ e ‘A Love Supreme’”, do trombonista e arranjador Allan Abbadia, vai revisitar pérolas musicais dos mestres Moacir Santos e John Coltrane, em 26/10. Finalmente, em 2/11, o lendário Trio Mocotó (na foto acima) revisita o suingue do clássico álbum “Força Bruta”, que gravaram ao lado de Jorge Ben, em 1970. A cantora Ellen Oléria fará uma participação especial.

Os curadores do 6.º Sesc Jazz também prepararam, especialmente para estudantes e profissionais de música, uma série de oficinas, cursos, masterclasses e workshops. Confira a relação dessas atividades formativas, assim como a programação completa dos shows e o esquema de venda dos ingressos, no site do festival: 

sescsp.org.br/sescjazz





 

Dom Salvador: pioneiro do samba-jazz e do samba-soul relembra sua banda Abolição

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                                     Dom Salvador (no piano, ao centro) e os músicos do Abolição   

O pianista e compositor Dom Salvador agradeceu os aplausos da plateia paulistana, ao final do show de ontem (7/09), com uma elegante reverência. Não foi por cansaço, muito menos por esnobismo, que ele e os músicos do quarteto Abolição deixaram o palco – na área externa da 36.ª Bienal de Artes de São Paulo, no Parque Ibirapuera – sem atender aos pedidos de bis.

Já fora de cena, agitando as mãos, Salvador explicou a alguns fãs o motivo da indesejada interrupção do show: dores provocadas por câimbras, que o impediram de tocar por mais alguns minutos. Um probleminha físico que esse resiliente pioneiro do samba-jazz (prestes a completar 87 anos na próxima sexta, 12/09) enfrenta de vez em quando, mas não o impede de seguir tocando regularmente.

Os felizardos ali presentes assistiram a um show histórico, que reuniu o líder e dois remanescentes da cultuada banda Abolição, desativada em 1972, após uma breve carreira de dois anos. Seu único disco, “Som, Sangue e Raça” (lançado em 1971), seguiu influenciando as gerações posteriores, com suas misturas de samba, jazz, soul, R&B, funk e outras vertentes da música negra brasileira.

Do quarteto liderado por Salvador fazem parte o baixista Rubão Sabino e o guitarrista Zé Carlos, seus antigos parceiros da banda Abolição, além do saxofonista Tino Jr. No repertório do show não faltaram clássicos da banda, como “Moeda, Reza e Cor”, “Samba do Malandrinho” e “Tema pro Gaguinho”, além de “Uma Vida” e “Hei! Você”, que os fãs cantaram junto com Sabino.   

Na plateia, além de vários músicos, estava o camaronês Bonaventure Soh Bejeng Ndikung, curador desta edição da Bienal (inaugurada anteontem, com entrada franca), que tomou como inspiração o poema “Da Calma e do Silêncio”, da escritora mineira Conceição Evaristo.

Sentada ao lado do curador estava a senegalesa Veronika Châtelain, diretora do programa Jazz Legacies Fellowship, da Jazz Foundation of America, que vai apoiar 50 veteranos músicos de jazz, fornecendo apoio financeiro para seus projetos de gravação e turnês, entre outras atividades, durante os próximos quatro anos.

Salvador foi incluído entre os 20 primeiros contemplados por esse projeto, ao lado de conceituados jazzistas norte-americanos, como o saxofonista George Coleman, a vocalista Carmen Lundy, a pianista Amina Claudine-Myers e o baterista Herlin Riley, entre outros. Um importante reconhecimento aos legados desses artistas.

Para quem perdeu essa rara apresentação de Dom Salvador, que vive em Nova York desde 1973, ele deixa uma mensagem de consolo: vai retornar a São Paulo em outubro, para mais alguns shows, com uma formação instrumental diferente. O local e as datas dessas apresentações serão divulgados em breve.


 

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