Ninety Miles: trio de feras aproxima o jazz da musica cubana

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No universo do jazz, é comum ver músicos se encontrarem para tocar juntos, sem jamais terem se visto antes. Dois anos atrás, o vibrafonista Stefon Harris, 39, o saxofonista David Sánchez, 43, e o trompetista Christian Scott, 29, conceituados jazzistas e compositores, decidiram experimentar algo semelhante. “Ninety Miles” (selo Concord), o CD/DVD que gravaram juntos, praticamente sem se conhecerem, resultou em um dos projetos musicais mais criativos de 2011.
 

“A gravadora veio com a ideia de fazer o disco em Cuba, mas, em vez de tocar com músicos famosos de lá, iríamos trocar experiências com músicos jovens e ainda pouco conhecidos. Esse era o conceito”, conta o porto-riquenho Sánches, em entrevista exclusiva à Folha, por telefone.
 
Assim nasceu o coletivo projeto Ninety Miles (referência à distância de 90 milhas que separa Cuba dos EUA), cuja música poderá ser apreciada ao vivo, por paulistas e cariocas, durante o 2º BMW Jazz Festival, que começa nesta sexta (8/6, no Via Funchal, em São Paulo. Sánchez, Harris e Scott tocam juntos no domingo (em São Paulo) e na segunda (no teatro Oi Casa Grande, no Rio).

 
“Apesar de todas as dificuldades, as condições precárias em que vivem aquelas pessoas, para mim foi muito valioso ter contato com uma cultura que dá tanto valor à arte, como a dos cubanos”, afirma o norte-americano Stefon Harris. “A arte faz parte da vida cotidiana daquelas pessoas. Todos demonstram amar a música”.


Os três jazzistas também enfrentaram dificuldades durante a semana que passaram na ilha caribenha. “Tocamos em um belo teatro, mas sem ar condicionado. Foi um grande desafio tocar naquelas condições, como se estivéssemos em uma sauna. Achei que iria desmaiar tal era o calor lá dentro”, relembra Sánchez, calculando que a temperatura no teatro era de pelo menos 40 graus.


Mesmo assim, a sala se manteve lotada. “O mais fascinante foi ver as pessoas ficarem até o final do concerto, sedentas por ouvir mais música”, observa Sánchez. “A música de Cuba parece uma representação sonora de quem eles são como pessoas. É uma das mensagens mais belas que já conheci na arte”, reflete Harris.


Vale lembrar que um projeto como esse jamais aconteceria até poucos anos atrás. O embargo econômico que os EUA impõem a Cuba desde 1962 ainda está em vigor, mas a administração do presidente Barack Obama relaxou as restrições para que os norte-americanos viajem à ilha, especialmente no caso de projetos de caráter cultural.

 
“Nos Estados Unidos, você é lembrado a toda hora que as pessoas têm níveis sociais diferentes. Em Cuba, as pessoas se vestem de modo parecido e todos os carros se parecem. Lá você não vê a divisão social e econômica que existe nos EUA”, comenta o vibrafonista.


CD conserva a alta temperatura do concerto em Cuba

Ainda inédito em edição brasileira, “Ninety Miles”, o CD/DVD que registra o concerto de Stefon Harris, David Sánchez e Christian Scott, em Havana, transmite por meio da música o intenso calor que tomou conta do palco e da plateia do teatro Amadeo Roldán, um dos mais antigos da capital cubana, naquela noite de maio de 2010.
 
Nove faixas compõem o repertório do álbum, entre composições próprias do trio de jazzistas norte-americanos e de dois jovens e talentosos pianistas cubanos, Harold López-Nussa e Rember Duhar, que participam do álbum com seus próprios grupos, coloridos pela típica percussão afro-cubana.

 
Do ritmo envolvente de “E’cha” (de López-Nussa), à sensível “The Forgotten Ones” – balada que o saxofonista David Sánchez dedica aos “esquecidos” da cidade de Nova Orleans (EUA), após ser quase destruída, em 2005, pelos efeitos do furacão Katrina –, chama atenção a unidade e a intensidade das performances do grupo, que ensaiou apenas dois dias com os colegas cubanos para esse concerto.

 
Tanto Sanchés como Harris não escondem certo incômodo, quando se pergunta a eles se classificariam como “latin jazz” (jazz latino) a música que resultou desse projeto.
“Eu diria que esse rótulo é útil para que as gravadoras vendam os discos, é a linguagem do marketing”, argumenta o saxofonista. “Agora, dois anos após aquela gravação, já estamos procurando outras perspectivas. Não pensamos em música do Caribe, em jazz ou algo assim. Tentamos trazer para o palco nossa própria experiência”.

 
O DVD que acompanha o álbum exibe duas performances extraídas do concerto, a catártica “City Sunrise” (de Sanchéz) e a jazzística “La Fiesta Vá” (López-Nussa). Traz ainda um “making of”, com breves depoimentos dos músicos e imagens da cidade de Havana, sua gente e construções devastadas pela falta de preservação. Esse vídeo até poderia ser mais extenso, mas o que conta mesmo é a beleza intensa da música criada e improvisada pelo Ninety Miles. (CC) 


(textos publicados na "Folha de S. Paulo", em 6.06.2012)

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