Ron Carter: a elegância de um contrabaixista presente em discos de vários gêneros

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Não é apenas nas capas de discos que ele, sempre muito bem vestido, costuma exibir sua classe e sobriedade. Basta ouvir Ron Carter dedilhar seu baixo acústico, em palcos pelo mundo afora ou em milhares de gravações que já fez ao longo de cinco décadas de carreira profissional, para se perceber porque o nome desse conceituado jazzista americano, hoje com 74 anos, tornou-se praticamente uma marca de elegância e competência musical.

Isso explica o fato de tantos produtores, cantores e grupos de outros gêneros musicais - do soul de Roberta Flack ao rock do Jefferson Airplane, da bossa nova de Tom Jobim ao hip hop da banda A Tribe Called Quest - terem convocado Carter para gravar seus discos. Desde suas primeiras sessões de estúdio, no fim da década de 1950, o músico já participou de mais de duas mil gravações - números que o inserem entre os contrabaixistas mais onipresentes na história da indústria musical.

"Às vezes eu me surpreendo com o fato de artistas e bandas famosas saberem que eu ainda estou vivo", diz ele, com um bem humorado toque de humildade. "Toda vez que músicos como Paul Simon ou Aretha Franklin me chamam para participar de seus projetos, eu me sinto muito agradecido. É ótimo saber que James Brown ou a banda Kiss, para a qual gravei com um naipe de cordas, pensaram que eu poderia contribuir para que seus projetos musicais fossem bem sucedidos."

Nem é preciso perguntar a ele de quais gravações ou projetos mais se orgulha. Em qualquer lista confiável de obras-primas do jazz não podem faltar álbuns como "My Funny Valentine" (1964), "E.S.P." (1965), "Miles Smiles" (1966) ou "Nefertiti" (1967), que Carter gravou durante os cinco anos em que tocou com o trompetista Miles Davis (1926-1991). É justamente para homenagear seu ex-parceiro, morto 20 anos atrás, que ele fará uma breve temporada de shows em São Paulo, de 21 a 23 deste mês, no teatro do Sesc Pinheiros.

"Sabíamos que estávamos criando algo diferente do que todos os outros músicos faziam naquele momento, mas ainda não tínhamos ideia do nível (de qualidade) daquela música", diz Carter, referindo-se ao cultuado quinteto de Davis, que entre 1963 e 1968 incluiu também o saxofonista Wayne Shorter, o pianista Herbie Hancock e o baterista Tony Williams. Esse grupo é considerado até hoje um dos mais inventivos na história desse gênero musical. (veja o video abaixo)

Como se sabe, o inquieto Davis não era uma pessoa muito fácil de lidar, mas o temperamento sensato e tranquilo de Carter contribuiu para que fosse escolhido pelo trompetista como seu interlocutor favorito no grupo. "Jamais tive algum tipo de problema com Miles, que sempre foi um bom amigo. Eu adorava tocar com ele e, com certeza, todos sentiam um enorme prazer em tocar naquele quinteto", elogia o contrabaixista, referindo-se ao ex-parceiro como um mestre.

"Tivemos muita sorte ao sermos escolhidos para tocar com um músico tão especial. Miles foi capaz de perceber que poderíamos levar sua música na direção que ele desejasse", comenta Carter, destacando o sentido de aventura que o líder imprimia às improvisações do quinteto. "Simplesmente nos encontrávamos para tocar, todas as noites, sem saber ao certo que caminho aquela música tomaria. Tocar com Miles foi um dos grandes prazeres de minha carreira."

No entanto, quase ao fim da década de 1960, num cenário em que o jazz passou a perder espaço para o rock e a música pop, Miles pressentiu que chegara o momento de mudar mais uma vez, de assumir novos riscos. Quando decidiu enfrentar os concorrentes com suas próprias armas, aderindo à eletrificação das guitarras e dos teclados, tornou-se um dos pioneiros na criação de uma híbrida vertente do jazz, que veio a ser conhecida como jazz-rock ou, simplesmente, "fusion".

Os parceiros do trompetista não pensaram duas vezes antes de segui-lo, exceto Carter, que preferiu deixar o grupo. "Aquele tipo de música não me interessava. Não havia nela algo que eu sentisse que poderia contribuir para eu me tornar um músico melhor", diz. "Em segundo lugar, a banda de Miles estava viajando muito e, depois de passar cinco anos na estrada, achei que já estava na hora de ficar mais em casa, para ver meus filhos crescerem. Além disso, já havia muitas sessões de gravação em Nova York, onde eu teria a chance de ganhar a vida, ficando ao lado de minha família."

Elogiados álbuns como "Uptown Conversation" (1969) e "All Blues" (1973) marcaram os primeiros anos da carreira individual de Carter, que desde então tocou e gravou com quase todos os grandes músicos da cena do jazz. Também pôde se dedicar mais à música clássica, que orientou sua formação na Eastman School of Music - conceituado conservatório de Rochester, no Estado de Nova York. Vale lembrar, aliás, que seu primeiro instrumento foi o cello, o qual ainda toca às vezes. Diferentemente da maioria dos baixistas, que se limitam a marcar o ritmo com notas básicas, ele é um solista criativo, que usa esse instrumento para improvisar.

Carter, que tem se apresentado no Brasil com relativa frequência durante as últimas décadas, vai tocar desta vez com o Foursight, quarteto que destaca a talentosa pianista Renée Rosnes, além do baterista Payton Crossley, que o acompanha desde a década de 90, e do percussionista Rolando Morales-Matos. O repertório será centrado em seu álbum "Dear Miles" (2007), que inclui standards da canção americana, como "My Funny Valentine" e "Bye Bye Blackbird", cujas interpretações de Miles Davis, nas décadas de 1950 e 1960, tornaram-se clássicas.

Apreciador da música brasileira, à qual dedicou o álbum "Orfeu" (1999), além das gravações que já fez com Tom Jobim, Astrud Gilberto, Hermeto Pascoal, Flora Purim, Guilherme Vergueiro e Rosa Passos, entre outros, Carter diz que está sempre aberto a ideias que o envolvam novamente com os ritmos brasileiros. "Se alguém do Brasil ligar para mim agora, querendo que eu contribua com seu projeto, ficarei muito feliz se puder participar."

Cada músico tem uma definição pessoal para o jazz e Carter não foge à norma. "Essa é a música que eu sempre quis tocar. O jazz permitiu que eu pudesse participar de muitos trabalhos, nesses anos todos, tocando com pessoas das quais acabei me tornando amigo. É um privilégio poder tocar boa música todas as noites", conclui o elegante mestre do contrabaixo. 


(texto publicado no caderno Eu & Fim de Semana, do "Valor Econômico, em 14/10/2011)



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