Jazz, samba, soul, choro, blues, bossa nova, salsa, MPB, instrumental, R&B, funk, hip hop e outras vertentes musicais, em dicas, resenhas, entrevistas e coberturas de festivais
por Carlos Calado
Quem sou
Jornalista, editor e crítico musical, escrevo sobre festivais, shows e discos. Desde meados dos anos 1980 tenho acompanhado profissionalmente a produção fonográfica brasileira e eventos musicais em diversos países. Faço palestras sobre música, curadorias e já dirigi projetos para o Sesc SP. Sou autor dos livros "Tropicália: a História de Uma Revolução Musical", "A Divina Comédia dos Mutantes", "O Jazz como Espetáculo" e "Jazz ao Vivo", entre outros. Colaboro eventualmente para os jornais "Folha de S. Paulo" e "Valor". Nos shows e festivais que acompanho, gosto de fotografar músicos que admiro.
Afastados há quase seis meses por causa da pandemia, os violonistas Fernando Melo e Luiz Bueno anunciaram o final do Duofel – uma das parcerias mais longevas e inventivas da música instrumental brasileira. A despedida oficial será nesta sexta (31/7), às 20h, em uma “live” transmitida pelo YouTube.
Confesso que fiquei surpreso e triste ao saber dessa notícia. Acompanho o Duofel desde o início dos anos 1980, quando ainda era estudante de música. Além do alto quilate das composições e da criatividade dos arranjos da dupla, a empatia que Fernando e Luiz revelam dentro e fora dos palcos sempre chamou minha atenção, nos vários shows que assisti e nas entrevistas que já fiz com eles.
Por isso, fico pensando que, apesar de essa “live” ter sido anunciada com o aparentemente definitivo título “The End”, o suposto adeus tem grandes chances de ser apenas um “até breve”. Uma separação como essa seria um imenso desperdício musical. Não vou perder a “live” de amanhã, naturalmente, mas já estou esperando ver o Duofel de volta aos palcos, em 2021, para comemorar seus 43 anos.
Carlos Malta (da esq. para dir.), Fernando Melo, Luiz Bueno e Robertinho Silva Quando músicos consagrados decidem se lançar em uma nova parceria, é natural que as expectativas de seus admiradores aumentem. Em agosto de 2016, ao saber que os violonistas Fernando Melo e Luiz Bueno, do Duofel, iriam estrear um quarteto com o o saxofonista e flautista Carlos Malta e o percussionista Robertinho Silva, logo pensei no grande potencial criativo desse projeto. Como não esperar algo especial desses quatro instrumentistas de alto quilate, que há décadas transitam por diversas vertentes musicais?
Mesmo tendo a oportunidade de assistir a uma das primeiras apresentações desse quarteto (ainda em 2016), confesso que, passados dois anos, me surpreendi ao escutar este álbum. Eu não esperava encontrar no repertório tantos clássicos da música popular brasileira, em releituras que chamam atenção pelos inusitados tratamentos harmônicos e rítmicos, sem falar nos criativos improvisos do grupo.
Também fiquei impressionado pelo grau de coesão e empatia sonora que o quarteto revela nessas gravações. Mesmo que Malta e Silva tenham iniciado esse projeto como convidados do Duofel, basta ouvir qualquer faixa deste álbum para se perceber que hoje eles são parceiros ativos. Os quatro tocam como se já estivessem juntos há muitos anos.
Entre vários achados musicais fica difícil destacar uma ou outra gravação. É bem possível que, como eu, você se encante pela onírica releitura do “Canto de Yemanjá” (de Baden Powell e Vinícius de Moraes), não resista à suingada condução rítmica de “Água de Beber” (Tom Jobim e Vinícius), se emocione com a evanescente versão de “Cais” (Milton Nascimento e Ronaldo Bastos) ou sorria ao ouvir a contagiante introdução e os improvisos do grupo em “Maracangalha” (Dorival Caymmi).
“Este projeto é marcante, em nossa história, porque trouxe algo que nunca tínhamos experimentado em quase 40 anos de carreira do Duofel: a liberdade do jazz, no sentido de se criar a música na hora ou de se transformar algo mais ou menos combinado. Essa foi umas das parcerias mais felizes que eu e Fernando já experimentamos”, comenta o violonista Luiz Bueno.
Depois de escutar este disco outras vezes, tenho certeza de que a alegria, a liberdade criativa e a fina musicalidade que o quarteto Duo + Dois transmite nestas gravações também vai contagiar muitos outros ouvintes.
Texto escrito a convite do Selo Sesc para o encarte do CD "Duo + Dois". O show de lançamento acontece na próxima segunda-feira (25/3), às 19h, no teatro do Sesc Consolação, pelo projeto Instrumental Sesc Brasil. Mais informações em: www.sescsp.org.br/programacao/181792_DUO+DOIS#/content=saiba-mais
Fernando Melo e Luiz Bueno, do Duofel - Foto: Gal Oppido São poucos os grupos musicais que conseguem se manter ativos durante 40 anos. Mais raros ainda são aqueles, como o Duofel, que construíram sólidas obras musicais, calcadas em gravações relevantes e projetos criativos. Desde 1978, quando decidiram formar esse duo de violões, os autodidatas Fernando Melo e Luiz Bueno jamais abriram mão de fazer música instrumental com personalidade própria. “Não temos preconceitos musicais. A gente gosta de experimentar todos os tipos de música”, observa o paulista Bueno, que conheceu o alagoano Melo em 1976, quando tocavam guitarra e baixo, respectivamente, na banda de rock progressivo Boissucanga. A seriedade da dupla já se mostrava em seu projeto inicial: para se aprofundarem nos meandros da rítmica brasileira, os dois viajaram meses pelo interior de Pernambuco, Paraíba e Alagoas, pesquisando manifestações folclóricas e ritmos musicais, como o maracatu, o baião e a embolada.
Na década de 1980, a produtiva parceria de sete anos com a cantora Tetê Espíndola deflagrou uma extensa série de encontros que o Duofel tem realizado com instrumentistas e cantores de diversos gêneros musicais: do vanguardista compositor e pianista paranaense Arrigo Barnabé ao percussionista paulista João Parahyba (presente em “As Cores do Brasil”, o primeiro álbum da dupla, gravado em 1990, na Alemanha); do percussionista indiano Badal Roy ao genial multi-instrumentista alagoano Hermeto Pascoal, que praticamente adotou o duo, em 1993.
“Hermeto é nosso padrinho. A convivência com ele abriu nossos horizontes musicais”, comenta Melo. Graças aos inventivos arranjos que o “bruxo” de Lagoa da Canoa idealizou para “Kids of Brazil” (álbum que o Duofel gravou nos EUA, em 1996), o interesse da dupla em pesquisar novas sonoridades e diferentes afinações para seus violões cresceu mais ainda.
A maior conquista do Duofel durante essa trajetória de quatro décadas, na opinião de Bueno, foi se dar o direito de abordar qualquer gênero musical, sempre adotando uma linguagem própria. Não foi à toa que, para gravar “Duofel Plays The Beatles” (2009), o disco mais popular lançado até hoje pelo duo, ele e Melo esperaram mais de uma década até imprimir a assinatura musical da dupla nesse projeto de releituras de sucessos do quarteto britânico.
“Só quando sentimos que a gente já poderia se divertir tocando Beatles, nós gravamos o disco”, diz Bueno. Essa “diversão” se apoiou em um método intuitivo de harmonização e arranjo, que ele e o parceiro desenvolveram com o tempo. “Geralmente, os caras que fazem arranjos usam toda a estrutura harmônica da música e traçam um caminho. A gente faz o contrário: lembramos da música e já saímos criando. Gostamos de partir da criatividade, harmonizando a música sem ficarmos presos ao original”, observa Melo.
Hoje, somando mais 150 composições editadas, sete trilhas sonoras, treze álbuns e três DVDs, o Duofel comemora 40 anos de carreira musical, num ambiente em que sempre se sentiu muito à vontade: tocando ao vivo. E como costuma fazer há décadas em seus projetos, não dispensa a companhia inspiradora e criativa de antigos e novos parceiros.
Finalmente, aquela pergunta inevitável: como o próprio Duofel explicaria essa longevidade tão incomum no cenário musical, em meio a tantos artistas e bandas descartáveis? “Nosso envolvimento com a música é muito intenso, até um pouco insano, em relação à vontade de que ela esteja sempre ‘up to date’, seja com instrumentos, sonoridades, experimentações ou repertórios. Nosso grande barato é fazer esse som que só o Fernando e eu sabemos fazer juntos”, conclui Bueno. Sorte dos fãs de diversas gerações do Duofel, que desfrutam essa brilhante parceria musical há quatro décadas.
DUOFEL 40 ANOS
Show no Sesc 24 de Maio (r. 24 de Maio, 109, região central de São Paulo/SP).
Dia 10/3 (sábado), às 21h; dia 11/3 (domingo), às 20h.
Convidados: Hermeto Pascoal, Carlos Malta, Robertinho Silva, Benjamim Taubkin e Dani Black (no dia 10/3); Hermeto Pascoal, Arismar do Espírito Santo, Simone Soul e Raul Misturada (no dia 11/3).
Nesta entrevista, Luiz Bueno e Fernando Melo, violonistas do Duofel, contam por que resistiram tanto à tentação de gravar um álbum só com releituras instrumentais de canções dos Beatles.
Vocês já tocam releituras de músicas dos Beatles há duas décadas. Por que só decidiram gravar agora esse álbum?
Luiz Bueno – Desde 1988, quando gravamos Beatles pela primeira vez, vários produtores, inclusive fora do Brasil, sugeriram que fizéssemos um disco como esse, mas ainda não nos sentíamos fortes o suficiente para não nos tornarmos escravos dos Beatles. No ano passado, quando o Duofel comemorou 30 anos, organizamos uma pequena enquete com nossos fãs e mais de 80% deles opinaram que deveríamos fazer esse disco. Antes da gravação, fizemos vários shows, onde percebemos que, na platéia, havia muitas pessoas que não conheciam o Duofel. Elas estavam ali para ouvir Beatles com a gente.
Como os Beatles entraram na vida de vocês?
Bueno – Na verdade, nós nos interessamos por música, ainda garotos, justamente por conta dos Beatles. Fernando e eu nos conhecemos num grupo de rock progressivo. Fizemos um caminho diferente da maioria dos instrumentistas, que já começam curtindo jazz. Quando acompanhamos Tetê Espíndola numa turnê pela Europa, em 1988, fomos conhecer a terra dos Beatles. Já naquela época colocamos “Norwegian Wood” em nosso repertório e ela se tornou um dos grandes momentos dos nossos shows.
Que faixas deste CD, em sua opinião, melhor representam a identidade musical do Duofel?
Fernando Melo – Nós sempre utilizamos afinações diferentes nos nossos violões, mas neste disco fizemos uma nova experiência. Eu era baixista, mas deixei de tocar contrabaixo porque quebrava as unhas e, na hora de tocar violão no Duofel, ficava difícil. Então resolvi descobrir uma afinação que misturasse a sonoridade do contrabaixo com a do violão. Eu já vinha tentando isso há algum tempo, mas só nesse disco achei o espaço certo para usar essa afinação. Isso aconteceu em “Eleanor Rigby”, que abre o CD, e em “A Day in the Life”, a última. Outra faixa que ficou com a nossa cara é “The Fool on the Hill”, porque nela utilizamos instrumentos que não estariam presentes na música dos Beatles, como a viola caipira e o violão tenor. Também usamos o arco de rabeca, que aparece em outras faixas do disco.
Hoje, quando o futuro da distribuição da música parece estar associado aos downloads na internet, lançar um álbum focado nos Beatles não é ficar na contramão do mercado?
Bueno – Já nos sentimos na contramão outras vezes, mas temos certeza de que o amante da música que fazemos ainda compra discos. Demos um grande passo em nossa vida profissional, cinco anos atrás, quando criamos a Fine Music. Nossa idéia inicial já era bastante contemporânea: não ser apenas uma gravadora, mas também um ponto de distribuição de nossa música. Em nosso site (www.duofel.com), já vendemos nossos discos por download. E assim que a editora das canções dos Beatles nos der permissão, este CD também será vendido por download. Um álbum reúne não só uma colocação musical e artística, mas um pensamento, toda a filosofia que amarra a vida de um músico ou de um compositor. Eu vejo o álbum como uma galeria de quadros que expressa o momento daquela criação do artista.
(entrevista publicada no "Guia da Folha - Livros, Discos e Filmes", em 30/10/2009)
Acostumados a ouvir as saborosas versões de canções dos Beatles que o Duofel exibia com freqüência em seus shows, muitos fãs não entendiam por que os violonistas Luiz Bueno e Fernando Melo resistiam à idéia de gravar um disco com esse repertório. Ao ouvir “Duofel Plays The Beatles” (lançamento Fine Music), dificilmente algum desses fãs ficará decepcionado.
Como se tivesse esperado o tempo certo para que suas idéias amadurecessem, a dupla se superou nas releituras de clássicos do quarteto britânico. Algumas, como as de “Across the Universe” e “Here, There and Everywhere”, são mais reverentes. Outras escancaram a personalidade musical da dupla, caso de “Mr. Moonlight”, que soa como uma caipira moda de viola, sem perder sua essência melódica. Um álbum para beatlemaníaco algum colocar defeito.
(Resenha publicada no “Guia da Folha – Livros, Discos e Filmes”, em 30/10/2009)