Monica Salmaso: cantora resgata pérolas esquecidas de Guinga e Paulo César Pinheiro

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                                                                                           Foto: Dani Gurgel/Divulgação

Em recente entrevista ao jornal “O Globo”, ao se referir ao baixo nível da produção atual das gravadoras que ainda tentam superar a crise que as destroçou na virada do século, a cantora Monica Salmaso afirmou que a música popular brasileira está “pobre de assunto, de letra, de melodia, de harmonia, de arranjo”.

Intérprete que sempre conduziu sua carreira na contramão dos modismos e truques do mercado musical, Monica está coberta de razão e não se limita a criticar. “Corpo de Baile” (lançamento Biscoito Fino), seu décimo álbum, prova que não é a música popular brasileira, propriamente, que está em crise, mas sim aqueles que insistem em fabricar artistas e produtos descartáveis.

Monica esperou uma década para realizar esse projeto. Já havia gravado “Senhorinha” e “Saci”, canções de Guinga e Paulo César Pinheiro, mas ao saber que a dupla tinha dezenas de parcerias inéditas quis conhece-las. O fato de o músico e o letrista terem rompido relações ainda na década de 1980 não chegou a ser um empecilho. Monica ficou impressionada pela qualidade das canções que ouviu, mas, na época, não se sentiu pronta para encarar a densidade desse repertório.

A própria cantora assina a produção do álbum, em parceria com o músico Teco Cardoso, seu marido. A decisão de encomendar arranjos, em formato camerístico, a diferentes autores não poderia ser mais feliz. As partituras escritas por Tiago Costa, Luca Raele, Nelson Ayres, Paulo Aragão, Nailor Proveta, Dori Caymmi e Teco Cardoso garantem a desejável dose de diversidade sonora, em um disco com repertório tão homogêneo.

Se desde seu primeiro álbum – “Afro Sambas” (1995), gravado em duo com o violonista Paulo Bellinati – Monica tem demonstrado o quanto valoriza o trabalho dos instrumentistas, em “Corpo de Baile” ela realiza seu projeto mais ambicioso. Para isso conta com dezenas dos melhores músicos de São Paulo e Rio de Janeiro.

Entre as 14 canções de Guinga e Pinheiro gravadas pela cantora, seis são inéditas, mas mesmo as já lançadas no passado por outros intérpretes não chegaram ao grande público. A exceção é “Bolero de Satã”, que se tornou conhecida pela gravação de Elis Regina com Cauby Peixoto, em 1979. Mônica a interpreta com emoção contida, em elegante arranjo de Nelson Ayres, realçado pelo sax barítono de Teco Cardoso e pelo clarinete de Nailor Proveta.

Dedicada por Monica ao escritor argentino Julio Cortázar, “Fim dos Tempos”, a canção inédita que abre o álbum, soa perturbadoramente atual, mesmo tendo sido composta décadas atrás (“nós somos todos / todos aflitos / de um lado os doidos / do outro os malditos / com o fim dos tempos / no coração”). O sensível arranjo de Tiago Costa conta com as cordas do Quarteto Carlos Gomes.

Bela também é a gravação de “Navegante”, um fado quase minimalista, em arranjo coletivo de um sexteto que destaca o bandolim de Milton Mori. Mais despojada, a versão da romântica “Noturna” traz Monica acompanhada apenas pelos violões dos irmãos Pedro e Paulo Aragão. Outra faixa encantadora é “Violada”, moda de viola que destaca o violeiro Neymar Dias.

Em meio a tantas cantoras da cena atual da música popular brasileira, que são incapazes de manter a afinação no palco ou nem mesmo conseguem escolher um repertório que faça sentido, Monica Salmaso dá uma lição de técnica vocal, elegância e domínio artístico. Como só as grandes cantoras sabem fazer, ela transformou algumas pérolas esquecidas de Guinga e Paulo César Pinheiro em joias eternas.


(Resenha publicada no "Guia Folha - Livros, Discos, Filmes", em 30/8/2014)  


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