Buenos Aires Jazz: o balanço de um festival de música com muita personalidade

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                                                   Tommy Smith e Arild Andersen / Photo by Carlos Calado

Acompanhar um festival de música como o Buenos Aires Jazz, que terminou ontem, na Capital Federal argentina, não é uma tarefa fácil. Quem decidiu ir à noite de encerramento, por exemplo, foi obrigado a optar entre os concertos do grupo da baterista norte-americana Marilyn Mazur e do trio do guitarrista francês Nguyên Lê, no Teatro Coliseo, ou as apresentações gratuitas do sexteto Los Argentos e da cantora Roxana Amed, no Centro Cultural da Recoleta.

Situações como essa se repetiram em outras noites desse festival porteño, que pelo quarto ano consecutivo contou com a direção artística do pianista Adrián Iaies. Ter que escolher entre diversas atrações, exibidas simultaneamente em palcos distantes, pode ser um pouco frustrante para alguns apreciadores, mas essa consequência está longe de caracterizar um defeito do evento, que investe em um perfil artístico diferente do que se encontra na maioria dos festivais desse gênero pelo mundo.



                                              Baptiste Trotignon e Minino Garay / Photo by Carlos Calado

Se me pedissem para indicar, entre os concertos que acompanhei, qual sintetizaria melhor o espírito do Buenos Aires Jazz, provavelmente, eu sugeriria o do pianista francês Baptiste Trotignon com o percussionista argentino Minino Garay. Faria essa escolha não só porque a formação desse duo, idealizada por Iaies, concretizou com perfeição o projeto de promover encontros dos jazzistas estrangeiros com os músicos locais, mas também porque essa informal associação proporcionou alguns dos momentos mais saborosos do festival.

Radicado há duas décadas na Europa, Garay esbanja aquela ginga malandra típica de muitos percussionistas. Bem-humorado, divertiu a plateia entre um número e outro, contando como ele e Trotignon se encontraram pela primeira vez. Ou como definiram o eclético repertório do show, que inclui tangos clássicos do repertório de Carlos Gardel, uma inventiva releitura de “A Night in Tunisia”, impulsionada por Garay com um cajón, além de improvisos bastante livres e criativos.


                                 O trompetista Charles Tolliver / Photo by Carlos Calado  

Liberdade e imaginação também não faltaram aos concertos do pianista norte-americano Kenny Werner (já comentado aqui), que abriu o festival, ou do telepático trio do contrabaixista norueguês Arild Andersen, que também destaca o sax tenor do escocês Tommy Smith e a bateria do italiano Paolo Vinaccia. Misturando encantadoras melodias da tradição nórdica com temas de origem árabe, Andersen e seus parceiros hipnotizaram a plateia com improvisos inventivos, que em alguns momentos simularam sons da natureza. 

Depois de uma apresentação tão impressionante como de a Andersen, ficou dificil não achar convencional o trio do pianista espanhol Albert Bover, que abriu seu concerto com uma comportada versão de “Monk’s Dream” (de Thelonious Monk), seguida por baladas e temas em andamento médio de sua autoria. Bover demonstrou que até sabe construir melodias atraentes, mas, no pouco inspirado concerto no Teatro 25 de Maio, suas composições e improvisos não chegaram a emocionar a plateia.



                               Paolo Fresu (no centro), com Bebo Ferra e Stefano Bagnoli / Photo by Carlos Calado

Algo semelhante se passou na apresentação do quarteto liderado pelo trompetista Charles Tolliver, que incluiu os argentinos Ernesto Jodos (piano), Pepi Taveira (bateria) e Jerónimo Carmona (contrabaixo). O veterano jazzista norte-americano entrou em cena como se tivesse saído de uma nave capaz de viajar no tempo, diretamente da década de 1950. Sua música segue rigidamente a estética do bebop, com temas em andamentos velozes, que em algumas passagens pareciam deixá-lo quase sem fôlego.

Alguns fãs do trompetista italiano Paolo Fresu podem preferir sua faceta mais lírica e acústica, mas a vibrante apresentação de seu Devil Quartet não deve tê-los desapontado. Com esse grupo eletrificado, que destaca a guitarra de Bebo Ferra e a bateria de Stefano Bagnoli, Fresu explora altas intensidades sonoras. Chega até a distorcer o som de seu flugelhorn, em alguns números, como numa versão funkeada de “Satisfaction” (dos Rolling Stones). Mostrando ser um artista conectado com seu tempo, o italiano dedicou “Hino a la Vida” ao incerto futuro de seu filho. E, já no bis, referindo-se à difícil situação econômica vivida hoje pela Europa, relembrou um antigo sucesso da cantora Mina, “E Se Domani”, exibindo seu romantismo.


                                                           A cantora Roxana Amed / Photo by Carlos Calado

O programa de encerramento, realizado ao ar livre, no terraço do Centro Cultural da Recoleta, no domingo, também expressou de modo particular a forte personalidade desse festival. Ainda sob a luz do dia, o sexteto Los Argentos, comandado pelo trompetista Ricardo Nant, interpretou arranjos para prelúdios e danças do erudito compositor argentino Alberto Ginastera (1916-1983), como “Triste” e “Danza Criolla”, com uma formação tipicamente jazzística, que inclui sopros e guitarra elétrica. Um projeto muito válido e enriquecedor para qualquer plateia, mas que certamente funcionaria melhor em uma sala de concerto. 

Já a cantora e compositora Roxana Amed conseguiu aquecer com sua voz expressiva a plateia que enfrentou o vento frio da noite de domingo para ouvi-la ao ar livre, na Recoleta. Em vez de suas conhecidas incursões jazzísticas pelas obras de Billie Holiday e Bill Evans, ela preferiu um repertório centrado em canções de diversos momentos de sua carreira, como a melancólica “La Sombra” ou a sensível “Piedra Y Camino” (de Atahualpa Yupanqui), em belo arranjo do compositor Guillermo Klein, que assumiu o piano para acompanhá-la, ao lado de outros dois convidados – o saxofonista Ricardo Cavalli e o trompetista Mariano Loiácomo.

Entre cada canção, Roxana fez vários comentários, ressaltando o valor que dispensa à música capaz de revelar a identidade de um povo. Seu concerto pode não ter sido o que um desavisado esperaria para o encerramento um festival de jazz, mas não poderia ter sido mais fiel ao espírito original do Buenos Aires Jazz.



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