Num momento em que o preconceito racial volta a chamar atenção no noticiário, os concertos do pianista e compositor sul-africano Abdullah Ibrahim – hoje e amanhã, no festival Jazz na Fábrica, em São Paulo – ganham um sentido maior.
Aos 82 anos, Ibrahim é um remanescente da luta contra o infame regime político do apartheid, que durante quase cinco décadas (1948-1994) segregou a população majoritariamente negra e extinguiu seus direitos civis, na África do Sul. Em outras palavras, o racismo chegou a ser transformado em lei nesse país.
Maior símbolo da resistência contra essa segregação racial, o ativista Nelson Mandela (1918-2013) passou 27 anos na prisão, até se tornar o primeiro presidente negro sul-africano após a instauração do regime democrático.
“Entendemos desde cedo que a luta era por nossa própria humanidade”, disse Ibrahim, no ano passado, em entrevista ao jornal irlandês “Irish Times”. Quando decidiu se exilar na Europa, em 1962, seu grupo Jazz Epistles (do qual também fazia parte o trompetista Hugh Masekela) já enfrentava duras restrições do governo separatista, mesmo sem exercer atividades políticas explícitas.
Nessa época, Ibrahim ainda era conhecido como Dollar Brand (seu nome original era Adolph Johannes Brand). Em 1963, um encontro quase casual elevou sua carreira musical a outro nível. Ao tocar no Africana Club, em Zurique, na Suíça, foi ouvido pelo pianista e compositor norte-americano Duke Ellington (influência marcante em sua música), que fazia uma turnê pela Europa.
Impressionado, Ellington o ajudou a gravar um disco, intitulado “Duke Ellington Presents the Dollar Brand Trio”, que o introduziu na cena internacional do jazz. Dois anos depois já estava tocando nos Estados Unidos. Ao se converter ao islamismo, em 1968, adotou o nome Abdullah Ibrahim.
“The Song Is My Story” (2015), sua gravação mais recente, mostra como sua original concepção musical evoluiu ao longo de seis décadas. Nas composições de Ibrahim, líricas melodias de ascendência africana são tratadas com a sofisticação das harmonias do jazz. Sem dispensar, naturalmente, o recurso da improvisação.
“Improvisação é meditação em movimento”, ele reflete na capa desse álbum, fornecendo uma chave para se penetrar em seu universo sonoro. Na música meditativa de Ibrahim, o silêncio desempenha um papel quase tão importante quanto o das notas musicais ou o dos ritmos.
Hoje, o veterano pianista e compositor alterna períodos na Alemanha, onde mora, e na bela Cidade do Cabo, onde nasceu. Pode-se dizer que é mais que um vencedor: superou o preconceito e a segregação racial do apartheid com a beleza de sua música.
(Texto publicado na "Folha de S. Paulo", em 19/08/2017)
1 Comentário:
Boa matéria. Excelente blog. Parabéns!
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