Heloísa Fernandes: a música à flor da pele da pianista e compositora no álbum "Faces"

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                                                                               Heloísa Fernandes - Foto de William Struhs

Heloisa Fernandes viveu uma situação-limite. No final de 2014, poucos meses antes de gravar “Faces”, seu terceiro álbum, a pianista e compositora foi hospitalizada às pressas. Com uma infecção generalizada, por pouco não perdeu a vida. “Depois de passar pelo que passei, hoje valorizo cada novo dia. Este disco é uma luz para mim, porque representa meu renascimento”, ela comemora.

Uma das mais talentosas pianistas reveladas durante este século na cena da música instrumental brasileira, Heloísa nasceu em Presidente Prudente (SP). Paulo Gori e Gilberto Tinetti foram seus principais mestres de piano. Formada em regência pelo Centro de Estudos Tom Jobim, despontou em 2001 como finalista do conceituado Prêmio Visa de Música Brasileira. Já realizou parcerias com músicos de renome, como Naná Vasconcelos, Zeca Assumpção e Gil Jardim. Desde 2004 sua música também vem sendo elogiada no exterior.  

A história do álbum “Faces” (lançamento com o selo de qualidade Borandá) teve início em abril de 2014, quando ela realizou uma turnê pelos Estados Unidos. “Ao tocar em Chicago, na sala de concertos da PianoForte Foundation, encontrei um piano fantástico, um Fazioli. O som daquele piano era tão lindo que fiquei arrepiada quando toquei os primeiros acordes”, conta. Logo após a apresentação, Thomas Zoells (promotor de concertos e dono da sala, que também dispõe de um estúdio de gravação) a convidou a retornar no dia seguinte para gravar um disco. 

“Ninguém jamais havia conduzido nosso Fazioli a sons tão incríveis, nem havíamos tido em nosso programa uma sonoridade tão poética e afetiva”, elogiou o suíço, justificando o convite imediato que fez à pianista, em depoimento incluído no encarte do disco. [

Mais interessada em registrar material inédito, Heloísa sugeriu a Zoells adiar a gravação para março de 2015, quando poderia voltar a Chicago com novas composições. No entanto, a inesperada doença arrefeceu seu ânimo. Sentindo-se sem condições físicas para realizar a gravação, chegou a pensar em desistir do projeto.

“Mas as estrelas já tinham se alinhado e eu não sabia. O querido André Magalhães, produtor dos meus discos ‘Fruto’ e ‘Candeias’, me contou que estaria em Chicago, coincidentemente, no mesmo período da gravação. Ele me convenceu a manter as datas. Disse que iria produzir o disco, que estava tudo certo”, relembra. “Isso me fez acreditar que o universo estava conspirando para que essa gravação acontecesse, desde o meu encantamento com o piano Fazioli e o convite de Thomas Zoells até a presença iluminada do André na produção”. 

Nos quatro meses que precederam as gravações do álbum, Heloisa mergulhou fundo no processo de composição. “Fui construindo vários temas, com total liberdade para improvisar. Eu sabia mais ou menos para onde iria durante as improvisações, mas me dei liberdade absoluta para encontrar novas coisas. Queria fazer uma música viva e para isso tinha que correr riscos”, reflete a pianista, que combina em suas composições influências da música clássica e da música popular brasileira com muita improvisação – o recurso criativo mais característico do jazz. 

As inéditas composições que Heloísa exibe em “Faces” nasceram, segundo ela, a partir de sentimentos que brotaram durante o período em que adoeceu. “Batizei cada peça, no início de sua criação, com o nome de uma emoção, um sentimento”, relembra. Posteriormente, formatou e rebatizou seis dessas composições em duas suítes. A lírica “As Três Graças” refere-se a deusas da mitologia grega que simbolizam o feminino – Aglaia, Thalia e Euphrosyne representam, respectivamente, a claridade, a fertilidade e a alegria. “Rios”, a emotiva suíte que encerra o álbum, retoma alguns elementos das peças anteriores. 

Outra composição inédita é a impactante “Mergulho”, que começa com a pianista extraindo sons inusitados, ao percutir diretamente as cordas do instrumento. É também a única faixa do álbum em que Heloísa utiliza a voz para improvisar, criando belas melodias. A inspiração dessa composição, segundo ela, veio de obras do acervo do Museu de Imagens do Inconsciente, produto do revolucionário trabalho da psiquiatra Nise da Silveira (1905-1999). “Como é que pessoas esquizofrênicas, consideradas loucas, podem fazer coisas tão incríveis?”, comenta a compositora. 

Já a faixa de abertura do álbum combina “Colheita” (releitura de uma composição de Heloísa que fez parte de “Fruto”, seu álbum de estreia, lançado em 2005) com uma delicada releitura instrumental de “Caicó” (canção folclórica já gravada por Milton Nascimento e Dominguinhos, entre outros). 

“Eu estava com a sensibilidade à flor da pele”, comenta a pianista, que durante o processo de criação dessas composições chegou a pensar que seu álbum resultaria em uma espécie de autorretrato musical. “Depois percebi que vivi um processo de transformação: minha vida estava sendo transformada em música”, conclui. 

Versos de um poema do “Livro do Desassossego”, de Fernando Pessoa, que Heloísa utilizou como epígrafe para seu álbum, sintetizam como ela interpreta hoje essas composições, nascidas em um período difícil, mas sublimadas com muita sensibilidade e arte. “Dar uma emoção a cada personagem, a cada estado de alma uma alma”.

Texto escrito a convite da gravadora Borandá




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