Como no território do futebol, onde de tempos em tempos as atenções se concentram em um artilheiro jovem e surpreendente, capaz de aterrorizar os defensores de qualquer equipe, algo semelhante acontece hoje nos círculos do jazz. Foi assim também no final dos anos 1940, quando o trompetista Miles Davis desafiou a hegemonia do moderno bebop com a contensão elegante de seu cool jazz. Na virada para a década de 1960, nenhum jazzista causou tanta polêmica quanto o saxofonista Ornette Coleman, pioneiro do transgressivo free jazz. Já nos anos 1980 coube ao também jovem e articulado trompetista Wynton Marsalis a missão de atrair novos fãs para esse gênero, resgatando o jazz clássico de Louis Armstrong e Duke Ellington.
Ainda é um pouco cedo para se afirmar que o trompetista Christian Scott, destaque da próxima edição do festival Bridgestone Music (de 19 a 22 de maio, no Citibank Music Hall, em São Paulo), vai desempenhar um papel tão importante quanto os dos artistas citados. Mas algo é certo: desde que lançou “Rewind That”, seu álbum de estréia, que lhe rendeu uma indicação ao prêmio Grammy de 2005, esse músico e compositor de 27 anos vem provocando discussões nos meios jazzísticos, além de despertar o interesse dos conhecedores desse gênero. Tanto é que, no ano passado, foi eleito “melhor trompetista em ascensão” pelos críticos da influente revista “Down Beat”.
“Acho que o papel de Wynton e de outros músicos daquela época foi importante naquele momento. De certa maneira eu concordo que aquilo era necessário, mas aquele tempo já se foi”, afirma Scott, em entrevista ao Valor, referindo-se à atitude conservadora de Marsalis e seus colegas de geração, os chamados “young lions”. O fato de ter uma relação de amizade com Marsalis – ambos nasceram na mítica cidade de New Orleans, considerada o “berço do jazz” – não impede Scott de replicar as críticas que já ouviu do colega. “Ele disse que minha música não era jazz porque não tinha swing. Respondi que Louis Armstrong, Kid Ory, Jelly Roll Morton e outros músicos pioneiros de New Orleans também não eram jazzistas, já que o swing foi inventado mais tarde, em Kansas City, na década de 20. Wynton ficou passado ao ouvir isso. Pela primeira vez vi um cara negro ficar vermelho”, diverte-se Scott.
Essa irreverência, semelhante à que Robinho e Neymar têm exibido nos campos de futebol, é um traço constante na personalidade desse músico, que prefere não ser chamado de jazzista. “Não gosto de ser rotulado de forma alguma. Dizer que eu sou um músico de jazz diz tanto sobre mim quanto falar que eu sou americano ou negro”, justifica. Mesmo assim, o ex-aluno das conceituadas Nocca (escola de artes de New Orleans) e Berklee College (faculdade de música de Boston) não chega a ser tão radical quanto Miles Davis, que considerava racista o termo jazz. Pergunte a Scott o que o jazz representa em sua concepção musical e a resposta virá em uma palavra: “liberdade”.
Por essas e outras, o recém-lançado CD “Yesterday You Said Tomorrow” (selo Concord Jazz), quarto álbum de Scott, ainda inédito no Brasil, promete provocar mais controvérsia, não só pela atitude nada convencional desse músico em relação à linguagem sonora e à tradição do jazz, mas também pelo fato de abordar temas polêmicos.
Esse é o caso da faixa de abertura, a tensa “K.K.P.D.”, inspirada em um caso de preconceito racial vivido pelo trompetista, em 2008. Scott dirigia de madrugada, em New Orleans, voltando de um show com a banda Soulive, quando foi parado pela polícia local. Nove policiais o arrancaram do carro, apontando armas, e o empurraram no capô. Ao reclamar por ser chamado de “negrinho”, ainda ouviu uma ameaça: se não se calasse, sua mãe teria que “ir buscá-lo no necrotério”.
“Não há maneira melhor de transmitir uma mensagem do que por meio de uma canção”, diz ele, explicando que o título de sua composição “K.K.P.D.” significa “Departamento de Polícia da Ku Klux Klan” – referência à organização racista americana que defende a supremacia dos brancos protestantes. Adepto da arte como veículo para a abordagem de questões sociais, mesmo tendo saído de sua cidade natal para estudar na costa leste, Scott não deixou de abordar a tragédia desencadeada pelo furacão Katrina, que quase destruiu New Orleans, em 2005.
No ano seguinte, entre outras menções ao episódio, incluiu a composição própria “Katrina’s Eyes” em seu álbum “Anthemn” (Concord Jazz). “É trágico constatar que só depois de algo tão horrível a cidade começa a conquistar o interesse que merece”, observa o músico, que ainda conserva sua casa em New Orleans, mas passa a maior parte do tempo em Nova York ou viajando, como numa recente série de apresentações que fez pela Europa.
Dono de uma bela sonoridade ao trompete, que chega a lembrar a de Miles Davis (referência mais ou menos evidente em algumas de suas composições), Scott assume ter recebido também influências da música dos anos 1960 -- não só do jazz de John Coltrane e Charles Mingus, mas também de dois ícones do rock e do pop: o compositor Bob Dylan e o guitarrista Jimi Hendrix.
“Sinto falta da convicção que os artistas daquela época tinham. Eles pareciam não se importar com as conseqüências do que faziam. Eu curto isso”, explica. Assim, não é por acaso que, no álbum “Yesterday You Said Tomorrow”, a guitarra de Matthew Stevens ganha destaque nos improvisos e na ambientação sonora. Chama atenção também a hipnótica versão de Scott para “The Eraser”, canção de Thom Yorke, vocalista da banda de rock Radiohead.
(texto publicado originalmente no caderno "Eu & Fim de Semana", do jornal "Valor Econômico", em 16/4/2010)
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