Bossa Nova: o movimento musical é reavaliado por Tárik de Souza em um livro essencial

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                                            João Gilberto - Foto de Tuca Vieira/Creative Commons  


O título pode sugerir algo um pouco diferente aos desavisados. “João Gilberto e a insurreição bossa nova: outros lados da história”, novo livro de Tárik de Souza, não é uma biografia do lendário cantor e compositor baiano, que surpreendeu os fãs da música popular brasileira, no final dos anos 1950, com uma inovadora batida ao violão e seu canto minimalista, quase falado. Ao mesclar a influência do jazz com o samba, a bossa nova inaugurou a era moderna da canção brasileira. 

Com esse livro que reavalia a história e os personagens da bossa nova, o conceituado crítico musical e jornalista carioca completa uma trilogia sobre o universo do samba, ao destacar aspectos desse espontâneo movimento musical que ainda não haviam sido devidamente abordados. Em 2003, Tárik lançou “Tem mais samba: das raízes à eletrônica” (Editora 34), um panorama do mais popular gênero musical brasileiro. Já em 2016, no livro “Sambalanço, a bossa que dança” (Kuarup), ele dissecou a vertente suingada da bossa nova, que contagiou os salões de dança durante as décadas de 1960 e 1970.

“Este livro é praticamente autobiográfico”, diz o autor, explicando que essa obra resultou de sua intensa relação pessoal e profissional com a bossa nova, desde as primeiras manifestações desse movimento no cenário musical brasileiro. “Eu vivi a bossa nova. Sempre acompanhei tudo, li tudo, fui a todos os shows. E quando me tornei jornalista, entrevistei o pessoal da bossa diversas vezes”, relembra o jornalista.

Lançada pela editora porto-alegrense L&PM, essa extensa e meticulosa obra de 444 páginas é, na definição de Tárik de Souza, “um livro bossa nova sobre a Bossa Nova”. No prefácio, intitulado “João e a Bossa instalaram o Brasil na vanguarda musical do planeta”, o autor avisa que “para abarcar esse movimento disruptivo de forma coerente com seu objeto de estudo, a abordagem do livro também teria que ser ‘bossa nova’ – fora da linearidade das historinhas com princípio, meio e fim”.

Eixo central da narrativa, o protagonista João Gilberto (1931-2019) está presente desde as primeiras páginas do livro. A começar por uma compilação de versos de canções que o homenageiam, assinadas por discípulos e colegas da música popular brasileira, como Caetano Veloso, Gilberto Gil, Chico Buarque, Carlos Lyra, João Bosco, Joyce Moreno, Jards Macalé e Tom Zé, entre outros.  

Já no capítulo final, intitulado “Um cantinho, um banquinho, um violão e a voz acoplada – o legado de um divisor de águas”, Tárik reúne reveladores depoimentos de diversos compositores e intérpretes de nossa música: do vanguardista paranaense Arrigo Barnabé à cantora bossa novista paraense Leila Pinheiro; do mestre baiano Dorival Caymmi à intérprete holandesa Josee Koning, um exemplo da internacionalização da bossa, entre muitos outros. De modo geral, esses artistas relatam como receberam a influência avassaladora de João e as inovações dessa tendência musical.

Para realizar sua análise da obra musical de João Gilberto, Tárik utilizou como bússola o material extraído de uma entrevista exclusiva que fez “com a lenda em pessoa”. Trata-se de uma conversa de quatro horas com João, em maio de 1971, quando o autor trabalhava na revista “Veja”, em São Paulo, na qual o compositor comentou a maneira como selecionava seu repertório e o tratamento que dava às canções. O experiente crítico musical também encara nesse livro a missão de analisar todos os discos gravados por João, faixa a faixa, ao longo de suas seis décadas de sua carreira.   

O capítulo “Inclusão, Diversidade e Pluralismo” rebate um preconceito que persegue a bossa nova há décadas. “Um dos mais rombudos clichês pespegados no invólucro mágico da bossa nova é o de um movimento elitista, privilégio restrito a uma rapaziada branca da zona sul carioca. Mentira deslavada, que este capítulo contesta”, afirma o autor. “O fator determinante tem a ver com a geopolítica da cidade, então mandatária capital federal do país e sua sede cultural, aí incluídas as principais emissoras de rádio e TV, casas de shows, imprensa e gravadoras”.

Dirigindo esse capítulo àqueles que chegaram a atribuir uma conotação racista à bossa nova, Tárik destaca com detalhes as importantes contribuições de diversos artistas negros, como a cantora carioca Alaíde Costa (que só recentemente tem recebido a consagração que já merecia nos anos 1960), o pianista e compositor carioca Johnny Alf (considerado um avançado precursor da bossa), o maestro e compositor pernambucano Moacir Santos, o cantor e compositor carioca Jorge Ben e ainda três instrumentistas e compositores paulistas: o saxofonista e clarinetista Paulo Moura, o pianista e maestro Laércio de Freitas e o pianista e arranjador Dom Salvador, que vive em Nova York desde 1973, mas nos últimos anos vem sendo descoberto pelas gerações mais jovens.    

Só por denunciar preconceitos e rejeitar clichês estabelecidos há décadas na bibliografia que aborda a bossa nova, assim como pela iniciativa de reavaliar importantes contribuições a esse movimento de músicos que foram subestimadas no passado, o livro de Tárik de Souza já seria obrigatório para os fãs dessa vertente musical. É muito mais, é uma leitura essencial para qualquer apreciador da música popular brasileira. Como já definiu e cantou Caetano Veloso, "a bossa nova é foda".

Sesc Jazz: blues e rebeldia nos improvisos da pianista Amina Claudine Myers

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                            A pianista norte-americana Amina Claudine Myers, no Sesc Jazz 2025
 

Os aplausos calorosos da plateia do Sesc Pompeia – no show de encerramento do festival Sesc Jazz, no último domingo (2/10), em São Paulo – demonstraram mais uma vez que, quando se domina um idioma universal como o jazz, os músicos nem precisam utilizar palavras para se comunicarem com pessoas que mal os conheciam até aquele dia.

Entre aqueles que ainda não tinham alguma familiaridade com a música da norte-americana Amina Claudine Myers é possível que alguns tenham se decepcionado um pouco por causa de seu repertório. Com uma carreira musical de seis décadas, na qual se destacam parcerias com vários expoentes do jazz de vanguarda, essa pianista e compositora revelou que hoje está bem mais próxima da tradição do blues e do gospel do que das experimentações jazzísticas dos anos 1960 e 1970.

Mesmo que o início de sua vida profissional tenha se dado na metropolitana cidade de Chicago, onde se filiou à lendária AACM (Associação pelo Avanço dos Músicos Criativos), Amina, nascida no interior do Arkansas, é uma musicista assumidamente religiosa. O fato de que, em suas apresentações, ela costuma se alternar entre um piano acústico e um órgão já é revelador.

A religiosidade de Amina jamais a impediu de expressar suas convicções pessoais ou políticas. Como em “African Blues”, sua composição mais conhecida, revisitada por ela logo na parte inicial do show no Sesc Jazz, quando tocou piano, acompanhada pelos parceiros Reggie Nicholson (bateria) e Jerome Harris (baixo e vocais).

Essa composição nasceu de um improviso, em 1980, durante as gravações do álbum que a pianista dedicou à cantora Bessie Smith. Como relatou mais tarde em entrevistas, nessa mencionada gravação Amina improvisou por cerca de 15 minutos com vocais sem palavras, como se estivesse possuída por um espírito, pensando no sofrimento dos negros da África do Sul em sua luta contra o injusto regime do apartheid. Pena que a norte-americana não tenha tomado a iniciativa de explicar esse contexto à plateia brasileira, que assim poderia captar totalmente o sentido de sua composição.  

Mesmo quando se sentou ao órgão, para interpretar a seção mais espiritual do repertório de seu show, ela não perdeu a chance de se manifestar como uma rebelde cidadã norte-americana. Ao improvisar os versos do gospel “Have Mercy Upon Us”, sem citar nomes, ela se referiu aos anunciados planos do atual governo dos Estados Unidos de reduzir programas e benefícios sociais, que têm gerado muitos protestos naquele país.

Mostrando que costuma definir o repertório de suas apresentações de acordo com o local e o momento presente, Amina também lembrou outro item costumeiro em seu repertório. Cantou um blues muito adequado para um dia nublado e chuvoso, em São Paulo, como o último domingo: “Standin’ in the Rain”, de Bessie Smith, a famosa Imperatriz do Blues.

Tomara que o Sesc repense a frequência do Sesc Jazz e volte a realizar esse festival anualmente, como fazem os eventos similares no Brasil e pelo mundo. Para os fãs desse gênero musical, como eu, não é fácil esperar dois anos por um festival – talvez o melhor do país nesta década – ao qual já nos acostumamos. 


 

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