Festivais de jazz: circuito nacional cresce e leva atrações a várias regiões do país

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                                                                       O trombonista Delfeayo Marsalis - Foto: Carlos Calado

Quem já passou férias na Europa ou na América do Norte, especialmente durante os meses de verão, sabe que os festivais de jazz se destacam entre as atrações culturais oferecidas nesse período do ano. Realizados não apenas em metrópoles e grandes capitais, como Nova York, Montreal, Roma ou Viena, eventos desse gênero também levam a centenas de pequenas cidades europeias e americanas multidões de fãs atraídos por concertos ao ar livre, em praças e pontos turísticos, ou mesmo em auditórios e clubes de jazz.

O Brasil já esteve mais distante de um cenário musical como esse. Ainda no início da década de 1990, quem quisesse apreciar ao vivo as últimas novidades jazzísticas tinha apenas duas opções: viajar para o exterior ou esperar pelo único evento anual do gênero naquela época, o Free Jazz Festival, que era realizado em São Paulo e no Rio. Hoje, o cenário é outro. Já é possível desfrutar shows de astros internacionais do jazz, do blues e de outros gêneros afins, durante quase todo o ano, em eventos programados em diversos locais do país. Só neste mês, cinco festivais de jazz serão realizados em capitais e localidades turísticas da região Sudeste.

"O Brasil se firmou como um mercado sólido e sério, nas últimas décadas", diz a produtora e cineasta Monique Gardenberg, que assina a direção artística da primeira edição do BMW Jazz Festival, em São Paulo (de 10 a 12, no Auditório Ibirapuera) e Rio (13 e 14, no Teatro Oi Casa Grande). Nomes de prestígio do jazz americano, como os saxofonistas Wayne Shorter, Joshua Redman e Billy Harper, ou o baixista Marcus Miller, chamam atenção no elenco desse evento, que também destaca dois originais jazzistas europeus: o pianista norueguês Tord Gustavsen e o contrabaixista francês Renaud Garcia-Fons.

Como a maioria dos festivais que têm usado a grife do jazz durante as últimas décadas, tanto no exterior quanto aqui, o BMW Festival também abre espaço para atrações de outros gêneros musicais. Inédita em palcos brasileiros, a cantora de soul e rhythm & blues Sharon Jones promete um dos shows mais excitantes do evento. O elenco se completa com o gospel do grupo vocal americano Zion Harmonizers, os arranjos dançantes da banda de metais italiana Funk Off e a percussão afro-baiana da big band Orkestra Rumpilezz.

Outro evento do gênero que estreia neste mês, com um formato diverso dos seus concorrentes, é o Ilha de Toque Toque Jazz Festival, que oferece como atrativo extra o visual dessa praia da cidade de São Sebastião, no Litoral Norte paulista. Com shows aos sábados, em um pequeno hotel com palco para apenas 50 espectadores, a programação desse evento destaca o jazz e os ritmos caribenhos do pianista cubano Yaniel Matos, as canções românticas de Elizabeth Woolley e as releituras jazzísticas do lendário guitarrista Lanny Gordin.

Uma característica comum a festivais de jazz e blues realizados nos últimos anos, em várias regiões do país, como os de Guaramiranga (CE), Garanhuns (PE), Ouro Preto (MG) ou Teresópolis (RJ), também norteia dois eventos programados para este mês: tanto o Rio das Ostras Jazz & Blues Festival (RJ), como o Bourbon Festival Paraty (RJ) nasceram com o objetivo de contribuir para o incremento do turismo em suas localidades.

                                                              Rio das Ostras Jazz & Blues Festival -  Foto: Cezar Fernandes


"A ideia é que o turista venha, fique e conheça as belezas naturais da cidade", diz o produtor Stenio Mattos, citando resultados significativos depois de realizar oito edições do evento em Rio das Ostras. "A taxa de ocupação da cidade durante o período do festival é de 100%, assim como nas cidades vizinhas de São João da Barra e Casimiro de Abreu. Em Macaé, chega a 70% de ocupação. O faturamento do comércio local durante o festival passado foi de cerca de R$ 5 milhões. A projeção que o festival dá à cidade é enorme", comenta o produtor fluminense.

Neste ano (de 22 a 26 de junho), o evento exibe em cinco palcos diversos estilos de jazz, blues e música instrumental brasileira. De alto nível, o elenco destaca o cultuado trio Medeski, Martin & Wood, o cantor José James, a banda Yellowjackets, o trompetista Nicholas Payton, o saxofonista Bill Evans e os bluesmen Tommy Castro e Bryan Lee, além do saxofonista carioca Léo Gandelman e a banda Azymuth. Já pensando na décima edição do evento, em 2012, Mattos pretende publicar um livro com uma retrospectiva do festival. E planeja programar de novo as atrações que mais agradaram ao público de Rio das Ostras desde a primeira edição.

Edgard Radesca, produtor do Bourbon Festival Paraty, também ressalta a eficácia de seu evento, no sentido de aumentar a atividade turística na região. "Conseguimos atrair um público qualificado, que gasta em restaurantes, compras e hospedagem, inclusive no domingo, dia em que usualmente a cidade se esvaziaria após o almoço. O Bourbon Festival é hoje o evento mais importante da cidade depois da Flip (Festa Literária Internacional de Paraty). Consegue lotá-la até em um fim de semana que antes era considerado um 'mico', por preceder o feriadão de Corpus Christi".

Em sua terceira edição (de 17 a 19 de junho), o Bourbon Festival Paraty vai contar com mais um palco, para a programação vespertina; os shows da noite continuam ocupando o palco da igreja matriz. Eclético, o elenco desse evento mistura jazz, blues, soul, R&B e ritmos brasileiros, destacando o baixista camaronês Richard Bona, o pianista cubano Roberto Fonseca e as cantoras Jane Monheit e Erica Falls. Qualquer semelhança com a linha musical do Bourbon Street Music Club - casa noturna paulistana inspirada na diversidade musical de New Orleans, que Radesca abriu com um grupo de amigos em 1993 - não é mera coincidência.

A influência dessa cidade americana tão musical, conhecida mundialmente como "berço do jazz", também orienta o Bourbon Street Fest, cuja nona edição está agendada para agosto, em São Paulo, Rio e Brasília. Segundo Radesca, esse evento foi criado para festejar o décimo aniversário de seu clube. "O festival deveria ter acontecido apenas uma vez, mas o sucesso foi tanto que recebemos mais de uma centena de e-mails, pedindo que fosse repetido a cada ano. Por isso tomamos a decisão de fazê-lo", diz o produtor, que já anunciou os nomes do trombonista Delfeayo Marsalis, da violinista e cantora Amanda Shaw e da banda Dirty Dozen Brass Band, todos trazidos de New Orleans para a edição deste ano.

                                                                                  Bourbon Festival Paraty - Foto: Roger H. Sassaki


Outra característica que aproxima festivais de jazz de diversas regiões do país, como os de Manaus (AM), Joinville (SC) ou Rio das Ostras (RJ), é a programação de atividades didáticas: geralmente, workshops e oficinas para estudantes de música, ministrados por artistas do elenco, além de palestras e debates. O Festival Choro Jazz Jericoacoara (CE), que vai realizar sua terceira edição de 29 de novembro a 4 de dezembro, já está se preparando para receber 40 estudantes de música da cidade americana de Cazadero (Califórnia), interessados em participar de seus workshops.

"Os inconformados com a música de péssima qualidade executada nas rádios encontraram uma bela válvula de escape nos festivais de jazz que surgiram na última década, muitos com ingressos a preços acessíveis ou mesmo gratuitos", observa Maria Alice Martins, que produz desde 2001 o festival Tudo É Jazz, na cidade histórica de Ouro Preto (MG). "Esses festivais motivaram a formação de um público realmente jovem, que procura na internet dados sobre os músicos de jazz, baixa vídeos no YouTube e os compartilha no Facebook. Alguns se inspiram e vão estudar mais seriamente, para se tornarem músicos de jazz. Atualmente, em Minas Gerais, o jazz tem um público bem mais jovem que o do rock, cinquentão."

Apesar da repercussão do Tudo É Jazz, que atrai anualmente turistas de melhor nível cultural e econômico a Ouro Preto, aumentando a arrecadação da cidade, o evento tem enfrentado dificuldades para sua realização desde 2008, quando perdeu seu patrocinador principal. "O cenário para a captação de patrocínio está dificílimo, devido à instabilidade econômica mundial, a catástrofes que se sucedem e à falta de definição de uma política econômica, tanto do governo federal quanto do governo estadual", lamenta a produtora mineira.

Para enfrentar esse e outros entraves do setor, os produtores de oito festivais criaram, no ano passado, a Abrafest (Associação Brasileira dos Produtores de Festivais de Música Instrumental, Jazz e Blues). Entre os primeiros projetos musicais da entidade destaca-se o "Palco Abrafest" - elenco formado por revelações da música instrumental brasileira, indicado pelos membros da associação, que terá um palco específico, ou um horário especial, para se apresentar em todos os festivais organizados pelos associados.

O pianista e compositor André Mehmari, que já participou de festivais de jazz no Brasil e no exterior, reconhece que esses eventos conferem prestígio aos músicos, além de permitir que exibam suas obras a um público mais selecionado, mas faz uma objeção aos critérios na escolha dos elencos de alguns festivais. "Poderia haver mais espaço para os projetos de músicos brasileiros, que não devem nada aos gringos. Imagino que os organizadores dos festivais enfrentem problemas para colocar essa ideia em prática, já que a demanda é por artistas estrangeiros, de preferência com amplo reconhecimento e, invariavelmente, famosos".

                                                                Festival Tudo é Jazz, em Ouro Preto - Foto: Adriana Gallupo


"Fazer um festival de jazz custa muito menos do que um festival de rock", diz Toy Lima, criador e produtor de importantes eventos nessa área, como o Heineken Concerts (1992-2000), o Chivas Jazz Festival (2000-2004) e o Bridgestone Music (2008-2010), observando que também na Europa já é perceptível uma tendência entre os festivais do gênero, no sentido de se programar mais jazz nos próximos anos.

"Alguns festivais da França, como o de Juan-Le-Pins, estão voltando a ser mais puristas, mas isso está acontecendo porque o jazz custa menos para o produtor do que a música pop. Hoje, esses festivais não podem mais pagar um James Taylor, que faz sucesso na Europa até hoje, mas podem pagar um Dave Douglas. Aliás, pode-se dizer que, na música, a qualidade costuma ser inversamente proporcional ao custo do show de um artista. Um festival de rock pode custar 18 vezes mais que um festival de jazz", comenta o produtor paulista.

Com a experiência de ter produzido o Free Jazz, festival que contribuiu ativamente, entre 1985 e 2001, para o crescimento do interesse por essa vertente musical no país, Monique Gardenberg reconhece que hoje é mais fácil se fazer um evento desse gênero. "Claro que ainda existe uma minoria de empresários de artistas que ainda não se deram conta da fertilidade do nosso mercado, da nossa modernidade, e acreditam que estão lidando com algo menor. Eu me divirto bastante quando isto acontece."

Vale lembrar que o Free Jazz não foi o primeiro evento do gênero no país. Realizado em 1978 e 1980, o Festival Internacional de Jazz de São Paulo pavimentou o caminho trilhado pelo Free Jazz e os diversos festivais que o sucederam, não só por ter reunido, em suas duas edições, astros de primeira grandeza do jazz e da música instrumental brasileira, mas também porque os concertos foram transmitidos para o resto do país por meio da TV Cultura e outras emissoras estatais. Graças a esse festival e seus sucedâneos, o jazz passou a ser apreciado por um publico mais amplo e mais jovem, no Brasil.

Algo semelhante está acontecendo hoje, em virtude dessa nova geração de festivais. Um exemplo revelador foi o Jazz na Fábrica, festival realizado durante o mês de maio pelo Sesc Pompeia, em São Paulo. Com um formato inovador, esse evento exibiu 23 atrações musicais - de conceituados jazzistas estrangeiros, como o saxofonista Archie Shepp, o trompetista Christian Scott e a cantora Dee Dee Bridgewater, até instrumentistas nacionais do primeiro time, como Toninho Horta, Arismar do Espírito Santo e a Orquestra Ouro Negro. Quem teve a sorte de acompanhar esses concertos, encontrou um público bem jovem, que aplaudia os improvisos dos músicos com uma euforia típica de torcedores de futebol. Um sinal de que outros festivais de jazz podem vir por aí.

(Reportagem publicada no caderno Eu & Fim de Semana, do jornal “Valor Econômico”, em 3/06/2011)


2 comentários:

jazz34 disse...

Calado, sem dúvida um grande escritor e pesquisador de música séria.
Não é por menos que tenho comigo todas as suas publicações. Fonte constante de informação, pesquisa e cultura para o meu constante crescimento.

Mauro Brandão Wermelinger, pesquisador e educador musical

lisdecarvalho disse...

Muito bom! Organizou e Iluminou o crescimento do interesse e organização dos festivais de jazz no país. Uma esperança que sempre tive: a de ver um país tão musical como o Brasil tendo a oportunidade de ouvir música de qualidade. Espero também que essas iniciativas ofereçam mais espaço aos excelentes músicos brasileiros que lutam muito pra manter e divulgar seus trabalhos.

 

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