Foto de Gal Oppido
Quem o conheceu durante a disputa do Prêmio Visa de MPB Instrumental, da qual saiu vencedor em 1998, dificilmente se esqueceu. Com 21 anos na época, mesmo tocando música brasileira, o pianista André Mehmari já deixava transparecer sua bagagem erudita, além de improvisar com fluência e inventividade típicas dos grandes jazzistas. Hoje, com oito álbuns individuais lançados e diversas composições escritas para algumas das orquestras e formações de câmera mais respeitadas do país, esse niteroiense radicado em São Paulo vê enfim sua carreira internacional deslanchar.
“Outros músicos de minha geração tiveram antes essa chance, mas estou contente por isso acontecer neste momento em que me sinto muito afinado com minha mensagem musical”, diz Mehmari, que assinou há pouco contrato para gravar cinco discos pelo conceituado selo italiano Egea. Nesta semana, ele viaja para a Europa, onde terminará de gravar um álbum de piano solo. Também vai tocar em dois dos mais tradicionais festivais de música desse continente: o Umbria Jazz (em Perugia, Itália, no dia 10) e o Jazz à Juan (em Juan-les-Pins, França, no dia 21).
A participação no festival de jazz francês, que realiza neste ano sua 50ª edição, tem um significado especial para Mehmari. Logo após o concerto de seu trio se dará a apresentação do cultuado pianista de jazz Keith Jarrett. “Será uma honra enorme para mim. Jarrett é um dos meus maiores ídolos”, reconhece o brasileiro, cujo álbum mais recente, “Miramari” (Estúdio Monteverdi/Tratore), gravado em duo com o clarinetista Gabriele Mirabassi, também já foi lançado com uma pequena turnê pela Itália, em fevereiro último.
E não é apenas vinculado ao universo do jazz que o nome de Mehmari começa a circular pelos palcos do velho continente. Em outubro, uma inédita composição de sua autoria, comissionada pela emissora alemã de TV Deutsche Welle, vai ser interpretada pela Sinfônica Heliópolis, nas cidades de Berlim e Bonn. Esses concertos farão parte da programação do Festival Beethoven e também serão transmitidos para outros países do continente europeu.
“Confesso que nunca tive o sonho de virar compositor clássico, mas a vida tem me apresentado oportunidades maravilhosas que recebo de coração aberto”, diz Mehmari, que ainda enfrenta com freqüência o preconceito daqueles que não aceitam ver um artista como ele transitar com naturalidade tanto pela música popular, como pela música clássica. “Algumas pessoas ainda se incomodam com isso, preferem que esses mundos sejam estanques. Talvez pensem dessa forma por preguiça. Espero que a facilidade que existe hoje para se adquirir informação musical por meio da internet possa iluminar mais as pessoas no futuro”, comenta.
Na verdade, é justamente o constante diálogo entre universos e referências musicais que torna a obra desse instrumentista e compositor tão rica e contemporânea. Além de suas incursões eruditas, Mehmari já recriou diversos clássicos da canção brasileira, de Dorival Caymmi a Tom Jobim, de Pixinguinha aos mineiros do Clube da Esquina. Apresentou em um mesmo álbum diferentes formas de valsa, todas de sua autoria. Gravou releituras de sucessos dos Beatles. Em duo com a cantora Ná Ozzetti, interpretou um repertório eclético que vai do clássico Ernesto Nazareth ao popular Nino Rota. Ainda neste ano, planeja gravar um álbum de canções inéditas: já compôs cerca de 30, em parceria com diversos letristas. Para gravá-las, vai convidar Mônica Salmaso, Jussara Silveira, Ná Ozzetti, Claudio Nucci e Flávio Venturini, entre outros intérpretes.
“Já me disseram que sou o caso típico do pianista que estudou música clássica num conservatório, depois sentiu uma fagulha e começou a improvisar. Na verdade, comigo foi mais ou menos o contrário disso. Tive uma formação nada convencional, quase esdrúxula”, diverte-se Mehmari, que começou a tocar piano aos cinco anos de idade, quando vivia em Ribeirão Preto, no interior paulista. Praticamente um autodidata, não chegou a freqüentar o tradicional conservatório de música. Aos 11 anos já tocava boleros, bossa nova, até lambada, em bailes.
Foi ouvindo a mãe tocar piano, em casa, que se acostumou ainda na infância a apreciar diferentes gêneros musicais. “Ela era maníaca por Elis Regina e tocava tanto Chopin como (Tom) Jobim. Já o meu pai tinha uma coleção de música clássica comprada em banca de jornal, que eu adorava. Escutei de Vivaldi a Ravel, inclusive obras complexas como a “Sagração da Primavera’, do Stravinsky. Também ouvia música ruim no rádio, algo comum na década de 80, mas nunca tive uma fase pop”, relembra.
Autor de uma obra bastante vasta e diversificada para seus 33 anos, Mehmari diz que essa aparente facilidade que possui para compor e improvisar é um tanto relativa. “A composição é um ofício como qualquer outro, como o do sapateiro, o do mecânico ou o do médico. É como um músculo que precisa ser exercitado, por isso eu toco muito, escrevo muito. Quanto mais você compõe, mais esse processo fica fluido”, diz, concordando com Igor Stravinsky, um de seus compositores favoritos, que costumava afirmar que “a inspiração vem do trabalho”.
“A inspiração é fundamental no processo criativo, mas é você que precisa chegar até ela. Não é ela que vem até você. Ao mesmo tempo o ofício da composição tem esse aspecto sublime, de contato com alguma coisa mais profunda, à qual só se chega nas asas da tal da inspiração, que é um estado alterado de consciência, de alta concentração”, reflete Mehmari, observando que é mais difícil se atingir esse estado criativo, nos dias de hoje. “Vivemos num mundo em que tudo conspira a favor da baixa concentração, com tanta informação simultânea chegando o tempo todo”.
Mesmo que as oportunidades para um compositor desenvolver um trabalho regular na área sinfônica ainda sejam escassas no Brasil, Mehmari se considera um privilegiado. Em 2008, por exemplo, exerceu durante um ano a inédita função de compositor residente da Banda Sinfônica do Estado de São Paulo, resultando desse trabalho um concerto para clarinete, piano e orquestra, que ele mesmo interpretou ao lado do italiano Gabriele MIrabassi.
“Como todo bom brasileiro, eu me decepciono loucamente com este país, em muitos momentos, mas nunca pensei em sair daqui. Quanto mais eu viajo, mais entendo porque não optei por viver no exterior. Sou bastante enraizado e adoro os contrastes deste país. Talvez não seja fácil identificar um certo nacionalismo, em minha música, mas sou profundamente apaixonado por meu país. Tenho uma relação crítica e ao mesmo tempo muito amorosa com o Brasil”, conclui.
(Texto originalmente publicado no caderno “Eu & Fim de Semana” do jornal “Valor Econômico”, em 2/07/2010)
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