Naná Vasconcelos: o maestro dos trovões rege maracatus no Carnaval de Recife

|

                                                              Capa do álbum "Amazonas", de Naná Vasconcelos

No início dos anos 1970, o percussionista Naná Vasconcelos encarou uma missão difícil: para se tornar solista, numa época em que o berimbau e outros instrumentos de percussão ainda eram considerados meros coadjuvantes, ele enfrentou preconceitos e narizes torcidos. Já nesta década, consagrado como um dos melhores instrumentistas do mundo, esse músico pernambucano tem assumido outro desafio na abertura oficial do Carnaval de Recife: reger centenas de ritmistas, em eventos que a cada ano têm atraído um número maior de foliões.

É isso que ele voltará a fazer no próximo dia 20, no Marco Zero, a maior praça da capital pernambucana. Ao comandar o encontro de 14 nações de maracatu, com mais de 600 ritmistas, Naná terá a seu lado, como convidados especiais, Caetano Veloso e o jovem pianista Vitor Araújo. Outra novidade do evento, neste ano, é uma homenagem ao povo nagô por meio de duas lendárias figuras da cultura afro-brasileira: a pernambucana Dona Santa, conhecida como a rainha dos maracatus, e a ialorixá baiana Mãe Menininha do Gantois.

“Os maracatus, que estavam quase desaparecendo, viraram centro das atenções de novo”, comemora Naná, que admite ter ficado receoso ao receber o convite da prefeitura local, para reger o primeiro encontro de maracatus, em 2002. A rivalidade entre as nações de maracatu é semelhante à que existe entre as escolas de samba cariocas ou paulistas, mas o prestígio do veterano percussionista contribuiu para que os maracatus aceitassem participar.

Enfrentando resistências
Mesmo assim, sete anos depois, o maestro ainda enfrenta algumas resistências. “Botar 14 maracatus para tocar juntos, cada um com seu sotaque, é um desafio danado, uma briga de foice. Para que todos possam tocar juntos, eu trago algumas convenções musicais que não fazem parte da tradição do maracatu. Peço licença aos mestres para trabalhar com seus discípulos, mas até hoje alguns deles ainda se recusam a usar o que passei para seus batuqueiros. Dizem que é ‘coisa do Naná’”.

Estimulado pelo conceito de “carnaval multicultural”, que tem regido a folia recifense nos últimos anos, Naná já experimentou diversos formatos sonoros, nesses encontros de maracatus. Já contou com uma orquestra, com uma banda sinfônica, até com uma banda de rock formada para a ocasião. E a exemplo do que fazia na década passada, quando era diretor musical do festival PercPan, passou a convidar estrelas da MPB, como Maria Bethânia, Marisa Monte e Elza Soares, para cantar com os batuqueiros.

Naná convive com os ritmos e tambores do maracatu desde a infância, em Recife. Dona Petronilha, sua mãe, esperava que ele adormecesse para sair com uma amiga atrás do maracatu. “Como não havia poluição sonora, naquela época, uma noite ouvi um ruído que parecia um trovão. Então pensei: ‘É trovão? Mas não está chovendo’. Essa cena marcou minha vida. Maracatu é trovão”, diz o percussionista, que obrigou a mãe a levá-lo para ouvir um maracatu pela primeira vez aos sete anos de idade.

Prestígio nos círculos do jazz
Ironicamente, o grande prestígio que Naná desfruta nos círculos do jazz e da música instrumental, tanto na Europa como nos Estados Unidos, onde viveu e atuou durante grande parte dos anos 1970 e 1980, nem sempre repercutiu à altura entre os executivos do mercado fonográfico brasileiro. É difícil de acreditar que um de seus discos mais cultuados, o inventivo “Amazonas” (lançado pela Philips, em 1973), não tenha sido relançado até hoje. Essa injustiça será reparada pelo selo paulista Museu do Disco (museudisco@ig.com.br), que promete lançar a primeira edição em CD do álbum no próximo mês.

“Acho que o ‘Amazonas’ assustou um pouco as pessoas, na época, porque não parecia com nada conhecido. Teve gente que até perguntou o que eu queria com aquilo”, relembra Naná, esboçando uma explicação para que esse álbum, o segundo de sua discografia solo, ficasse fora de catálogo por mais de três décadas. “Fizeram uma prensagem de umas 5 mil cópias, que foram vendidas, mas, como não tocava no rádio, ele foi engavetado”.

Naná já tinha uma carreira na Europa, quando veio ao Brasil, em 1973. Pensou em lançar aqui “Africadeus”, álbum gravado na França, um ano antes, que o introduziu como solista de berimbau. Mesmo com o entusiasmado aval do escritor Jorge Amado, não conseguiu convencer André Midani, diretor da Philips, a prensar seu disco, mas acabou assinando contrato para uma nova gravação.

Trabalhando sozinho
“Fiz quase tudo sozinho”, conta o músico, que compôs cinco das oito faixas do álbum, além de criar arranjos para dois temas do folclore africano (“Dhina Ô” e “Amazio”). A exceção é “Aranda”, composição do violonista Nelson Ângelo com o letrista Ronaldo Bastos, que Naná transforma em uma peça meio dramática, contando com um expressivo arranjo de cordas do próprio Ângelo.

Em outras faixas, o percussionista e compositor mistura seus vocais onomatopaicos com palmas, imitações de pássaros, assobios, berimbau, tambores e diversos instrumentos de percussão. Inspirada em canções de Luiz Gonzaga, “Coisas do Norte” combina fragmentos melódicos de aboios e lamentos nordestinos. “Cara com Cara” se apóia em ritmos emprestados do samba de roda e do coco.

Mas nenhuma das oito faixas se compara em irreverência a “Um Minuto”, que fecha o álbum. Aproveitando os recursos do estúdio, Naná gravou diferentes risadas que foram distribuídas pelos oito canais de som, como numa obra de música de vanguarda. “No meio da gravação, vi o técnico telefonar para alguém da gravadora, dizendo que eu estava doido”, relembra o compositor, rindo.

Não foi à toa que, após o lançamento desse disco, Naná viu os convites para tocar no Brasil rarearem. “Quase ninguém me chamava mais porque fiquei com a imagem de vanguardista, mas eu curtia isso”, diz, admitindo que, se ainda não tivesse iniciado a carreira no exterior, encontraria dificuldades para sobreviver. Quando voltou a tocar aqui, já em 1986, Naná não pensou duas vezes para desembolsar 200 dólares por um simples LP: uma cópia em bom estado de seu “Amazonas”, que já tinha virado raridade

(entrevista publicada no caderno cultural do “Valor Econômico”, em 13/02/2009)



0 comentários:

 

©2009 Música de Alma Negra | Template Blue by TNB