Andrés Beeuwsaert & Tatiana Parra: um duo que anuncia um continente mais unido pela música

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                                                                                            Photo by Maria Birba
            
Confesso que me surpreendi ao ouvir as primeiras faixas do álbum de estréia do duo Andrés Beeuwsaert & Tatiana Parra. Ele tem 32 anos e é mais conhecido como pianista e vocalista do Aca Seca Trio, um dos grupos mais cultuados da nova música popular argentina; aos 30 anos, ela é uma das cantoras mais talentosas que despontaram durante a última década, na cena da música popular brasileira. Imaginando que ouviria um repertório baseado em canções, fui surpreendido pela beleza das composições instrumentais que abrem esse disco, como um onírico prelúdio.

“Tanto em minha vivência como na de Tatiana, a música instrumental e a canção convivem no mesmo lugar, são partes da mesma coisa”, afirma Andrés Beeuwsaert (pronuncia-se “andrês beussár”), evidenciando que, pelo menos para alguns músicos de sua geração, essa desgastada dicotomia não tem sentido. “Quem faz música instrumental muitas vezes também faz canção, pois uma composição instrumental pode ter a mesma forma de uma canção. A única diferença entre elas é que a música instrumental não precisa de um texto”, argumenta.

Andrés está certíssimo. Ele e Tatiana demonstram em seis das treze faixas do CD “Aqui” (lançamento Borandá) que não necessitam de palavras para conquistar qualquer ouvinte sensível e desprovido de preconceitos musicais – bastam a voz e o piano. Como em “Brincando Com Téo” (da flautista Léa Freire), cuja melodia saltitante parece inspirada nas travessuras de uma criança; ou na vertiginosa “Milonga Gris” (de Carlos Aguirre), que mistura ritmos de baião e maracatu ao popular gênero musical nascido nos Pampas argentinos; ou ainda na lírica “Sonora”, composta pelo próprio Andrés, cuja melodia alça vôos com a leveza dos vocais de Tatiana.

Em outras faixas, para evitar o risco da monotonia, Andrés tomou o cuidado de ampliar os timbres que utiliza nos arranjos, colorindo a voz de Tatiana e seu piano com intervenções de outros instrumentos. Para gravar “Salida”, delicada composição de sua autoria, convocou o violoncelo expressivo de Heloísa Meirelles. “Ventania”, outra milonga tingida com ritmos de baião, conta com a flauta de Léa Freire, à qual Andrés dedica essa composição. Em “Jardim”, o próprio compositor e violonista Conrado Goys interage com o piano e a voz da cantora.

Não estranhe se, ao ouvir as composições de Andrés, em algum instante você tiver a impressão de reconhecer um fragmento de uma melodia de Egberto Gismonti ou Hermeto Pascoal. Andrés cultiva uma relação bastante íntima com a música brasileira desde muito cedo. “Na mesma época em que comecei a ouvir o jazz de Pat Metheny e Keith Jarrett, eu também já ouvia muito a música instrumental de Gismonti e Hermeto, além de outros grandes compositores brasileiros, como Tom Jobim, Chico Buarque e Milton Nascimento. Eles são como a coluna vertebral de minha música”, reconhece.

Tatiana e Andrés se conheceram no início de 2008, por meio do site MySpace. Interessada em se aprofundar mais na música latino-americana contemporânea, ela viajara pouco antes para Buenos Aires, onde foi apresentada por uma amiga à música do Aca Seca Trio. “As harmonias do Andrés e do Juan Quintero seguem por caminhos extremamente inusitados, mas o que me mais me encantou no Aca Seca foi a singeleza da música que eles fazem. Para chegar a esse grau de concisão é preciso amadurecer muito”, observa a cantora.

Seduzida pela música do trio argentino, Tatiana teve uma idéia incomum para conhecê-lo pessoalmente: assumiu a produção de dois shows do grupo, em março daquele mesmo ano, no Sesc Pompéia, em São Paulo. “Quando nos encontramos, já me veio a sensação de que ainda iria fazer algo com eles. Logo nos demos conta de que tínhamos muito em comum”, relembra. Sua previsão não demorou muito a se concretizar. No ano seguinte, ela e Andrés começaram a se apresentar em duo, ocasionalmente. E ao gravar “Inteira”, seu álbum de estréia lançado pela Borandá, em 2010, pôde enfim contar com os vocais do Aca Seca, na faixa “Choro das Águas” (de Ivan Lins e Vitor Martins).

Se, em seu primeiro disco, Tatiana atuou mais como intérprete, enfatizando a relação com a palavra, com as letras das canções, no duo com o piano de Andrés seu enfoque é essencialmente musical – ela utiliza sua voz como um instrumento. “Esta formação é desafiadora. É uma delícia cantar livre, sem baixo ou bateria, mas também muito arriscado. É como andar num trapézio sem rede de proteção”, compara a cantora.

O talento e o potencial do duo foram rapidamente reconhecidos. Ao receber da Funarte o Prêmio de Apoio à Gravação de Música Popular, Tatiana e Andrés conseguiram viabilizar a produção de seu disco – gravado em apenas três dias, em outubro de 2010, no Espaço Cachuera!, em São Paulo. “Fiz meu primeiro disco com muita calma, aos poucos, já este foi o oposto. Gravar em tão pouco tempo foi uma experiência muito rica, um grande desafio”, avalia a cantora.

Andrés ressalta o fato de o repertório do álbum incluir vários compositores com os quais ele e Tatiana cultivam uma relação de amizade. É o caso do argentino Carlos Aguirre e dos brasileiros Léa Freire e Conrado Goys, já mencionados aqui, assim como o chileno Javier Cornejo, autor da singela “Cueca de Agua” – única faixa do disco cantada por Andrés, em espanhol. “Gostamos de reunir músicas de outros países da América Latina, não só de Brasil e Argentina”, comenta o pianista.

Entre os compositores brasileiros com os quais o duo tem afinidade musical e pessoal também estão André Mehmari e Sérgio Santos, cuja bela canção “Vento Bom” antecede, no disco, “Estrela da Terra”, uma das jóias da parceria que Dori Caymmi cultiva há décadas com o letrista Paulo César Pinheiro. Já o argentino Pedro Aznar (com o qual Andrés tocou durante quatro anos) musicou, com muita sensibilidade, “Tankas”, poema de seu conterrâneo Jorge Luis Borges, cantado em espanhol por Tatiana.

Dois clássicos da canção do século XX, letrados pelo carioca Braguinha, entraram no repertório de Tatiana e Andrés a partir do convite para se apresentarem no “Som Brasil”, o programa musical da TV Globo. A romântica “Luzes da Ribalta” (de Charles Chaplin) ressalta a capacidade interpretativa e a afinação perfeita de Tatiana. Já a versão do choro “Carinhoso” (Pixinguinha) revela a inventividade de Andrés como arranjador. “Um brasileiro dificilmente conseguiria fazer algo tão ousado”, elogia Tatiana. “Sei que ‘Carinhoso’ é uma espécie de hino para os brasileiros, mas para um argentino essa canção tem um peso diferente. Foi mais fácil para mim”, justifica Andrés.

Escolha perfeita para fechar o álbum, “Corrida de Jangada” (de Edu Lobo e Capinan) é outro clássico da MPB que já fazia parte das apresentações do duo antes da gravação do disco. No contagiante arranjo de Andrés, cantado com graça e elegância por Tatiana, chama atenção o inusitado contraponto desenhado pelo piano.

Depois de saborear as 13 faixas de “Aqui”, fiquei pensando que um álbum como esse seria quase impensável décadas atrás. Além de tratar a canção e a música instrumental com o mesmo grau de admiração e entusiasmo, deixando os preconceitos de lado, Andrés e Tatiana parecem vislumbrar o futuro de um continente mais unido por meio da música. Tomara que eles estejam certos. Nossos ouvidos e sensibilidades só vão ganhar com isso.


(Texto escrito a pedido da gravadora Borandá)

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