Como outros artistas que ousaram desafiar os cânones de um gênero musical estabelecido, o guitarrista e cantor Robert Cray enfrentou alguns narizes torcidos durante os primeiros anos da década de 1980. Seu blues urbano e elegante, com marcantes influências da soul music e do rhythm and blues, foi criticado por puristas que não o perdoaram por se afastar dos moldes tradicionais do gênero. “Isso é música pop”, acusavam os detratores.
“Eles tinham uma concepção muito limitada do que o blues ou o rhythm and blues poderiam ser”, comenta hoje o músico e compositor americano. “Ao ouvir aquelas críticas, eu respondia que eles deveriam escutar meu primeiro álbum, ‘Who’s Been Talking’, de 1980, que teve uma distribuição muito limitada. Aquele disco trazia canções de Willie Dixon, Eddie Floyd e O.V. Wright, bem típicas do blues e do rhythm & blues”, argumenta.
Mais efetivo que essa resposta de Cray foi o sucesso de seu álbum “Strong Persuader”, lançado em 1986, que chegou ao 13.º lugar da parada pop americana – façanha inédita para um jovem bluesman, numa época em que o blues enfrentava um relativo ostracismo na cena musical. Logo vieram os convites de consagrados astros da soul music e do rock, como a cantora Tina Turner ou os guitarristas Eric Clapton e Keith Richards, para que Cray abrisse seus shows ou participasse de gravações de discos.
Colaborações eventuais como essas serviram para alimentar o ego do tímido e humilde renovador do blues, nascido na Geórgia. Mas nada que possa ser comparado ao privilégio de ter tocado com alguns de seus ídolos, como o guitarrista Albert Collins (1932-1993), que Cray considera ser sua maior influência, ou outros bluesmen do primeiro time, como B.B. King (1925-2015), John Lee Hooker (1917-2001) e Albert King (1923-1992).
“Eu me considero um sortudo por ter tido a oportunidade de conhecer e trabalhar com esses grandes músicos. Além de ter lembranças muito divertidas daqueles encontros, eu me senti aceito por todos”, diz Cray, que volta aos palcos brasileiros após um hiato de dez anos. A turnê de shows inclui quatro capitais: São Paulo (neste sábado, 27/7, como atração do Festival BB Seguros de Blues e Jazz, no Parque Villa-Lobos); Belo Horizonte (dia 31/7, no Palácio das Artes); Rio de Janeiro (dia 2/8, no Vivo Rio) e Brasília (dia 3/8, também no Festival BB Seguros de Blues e Jazz).
Acompanhado pelo tecladista Dover Weinberg e pelo baterista Terence Clark, Cray também terá a seu lado o talento do baixista Richard Cousins, parceiro mais constante em sua trajetória. “Richard é uma figura. Eu o conheci em 1969, quando ainda éramos adolescentes. Nos primeiros anos da banda, era ele que anunciava as músicas durante nossos shows, porque eu era muito nervoso e tímido”, relembra.
“Tínhamos uma relação de irmãos, tanto que Richard deixou a banda por alguns anos após uma briga tipicamente familiar. Depois que ele retornou à banda, em 2008, nossa relação ficou mais forte ainda”, comenta o líder. A camaradagem entre os dois é visível nos palcos. Quando tocam nos shows “Right Next Door”, um dos maiores sucessos de Cray (cujos versos descrevem a dramática briga de um casal, observada pelo pivô da separação), o compositor costuma provocar seu parceiro, dizendo à plateia que a canção foi inspirada em um caso de Cousins.
Canções como essa, segundo Cray, podem nascer a qualquer momento, nos mais inusitados locais. “Pode ser no chuveiro, até na cozinha ao cortar vegetais. Em geral, a ideia surge a partir de alguma situação que aconteceu comigo ou com alguém que conheço. Também pode ser algo que veio de um livro ou da TV. Quando a ideia surge, você precisa correr e pegar um papel ou um gravador antes que a esqueça”.
Sobre o repertório dos quatro shows no Brasil, como de hábito, Cray vai decidir na hora o que tocar. “Gostamos de misturar canções de várias épocas, desde os meus primeiros discos, como ‘Bad Influence’, até os últimos”, avisa. Seu disco mais recente, “Robert Cray & Hi Rhythm”, lançado em 2017, remete à era clássica da soul music. Até porque foi gravado no lendário Royal Studios, em Memphis, onde expoentes desse gênero musical, como Al Green, Ann Peebles, Otis Clay e O.V. Wright, gravaram alguns de seus melhores discos, cinco décadas atrás.
“Nós nos divertimos bastante ao fazer esse álbum”, comenta Cray, referindo-se ao conceituado produtor Steve Jordan, com o qual já trabalhou em outros projetos. “O Royal é um estúdio que funciona em um antigo teatro, onde nada foi mexido desde a década de 1970. A bateria e o órgão continuam exatamente nos mesmos lugares. É um lugar mágico, onde você pode sentir uma ‘vibe’ incrível”, descreve.
Perto de completar 66 anos, com 23 álbuns lançados e a experiência acumulada ao longo de uma premiada carreira musical, que o levou a palcos dos mais diversos cantos do mundo, o cantor e guitarrista diz que sua assumida timidez já não o incomoda mais. “Aprendi a entrar no palco como se estivesse em meu quarto, tocando discos para os amigos. Graças à aceitação das pessoas durante todos estes anos, hoje eu já me sinto bem mais à vontade”.
(Texto publicado no caderno cultural do jornal "Valor", em 26.7.2019)
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