Não é qualquer festival de jazz que tem a audácia de incluir em sua programação uma banda de hip-hop. Ainda mais um grupo como o Rafuagi, principal nome do gênero no Rio Grande do Sul, que não dispensa críticas à desigualdade social e ao racismo, entre outros temas muito pertinentes, nas letras de suas músicas.
A ideia do curador Carlos Badia, ao convidar o Rafuagi para a 5ª edição do POA Jazz Festival (que terminou já na madrugada de domingo, no Centro de Eventos Barra Shopping Sul, em Porto Alegre), faz todo o sentido. A inusitada parceria com o Quarto Sensorial, trio instrumental que mistura jazz experimental e rock progressivo, trouxe novas sonoridades e mais musicalidade ao hip hop do grupo (na foto abaixo, o rapper Ricky Rafuagi).
Mesmo assim, na plateia, alguns não gostaram de ouvir o rap “Manifesto dos Porongos”, contundente releitura do “Hino Rio-Grandense”, que o Rafuagi lançou em 2016. Com o refrão “povo que não tem virtude acaba por escravizar”, essa música se refere a um revoltante episódio da Guerra dos Farrapos (1835-1845). Uma tropa formada por centenas de escravos, que receberam a promessa de serem libertados ao final da guerra, foi dizimada graças à traição dos líderes dessa rebelião contra o governo imperial. Um sangrento caso de racismo e violência que poucos conhecem no resto do país.
Alguns espectadores chegaram a deixar a plateia, incomodados pela crítica desconstrução do hino gaúcho, mas voltaram mais tarde para ouvir uma das atrações mais esperadas do festival. A cantora francesa Cyrille Aimée e o violonista paulista Diego Figueiredo (na foto abaixo) formam um duo encantador, ao recriarem um repertório que inclui clássicos do jazz (“Night in Tunisia”), bossa nova (“Chega de Saudade”) e canções francesas (“La Vie em Rose”). Cyrille também domina a arte do “scat singing” e, em alguns momentos, transforma sua voz doce em um instrumento musical, dialogando nos improvisos com o brilhante violão de Diego.
Última atração entre os shows do festival, a banda norte-americana Davina & The Vagabonds divertiu a plateia com seu jazz tradicional de brechó e dançantes rhythm & blues. Tatuada, cheia de caras e bocas, a vocalista, pianista e compositora Davina Lozier (na foto abaixo) lembra uma cantora de cabaré, mas possui repertório próprio. Composições como “Sugar Drops” ou “Deep End” remetem a clássicos blues dos anos 1920, recheados de humor e auto-ironias.
A noite de sábado começou com a apresentação do Sexteto Gaúcho, grupo da nova geração do choro, que lançou seu álbum de estreia, “Bicho Solto”, em 2018. Mesmo quando esse sexteto de chorões toca clássicos do gênero, como “Bem Brasil” (de Altamiro Carrilho) ou o delicado “Ternura” (de K-Ximbinho), dá para se sentir, tanto na sonoridade do acordeom de Matheus Kleber, como nos andamentos mais rápidos, o característico sotaque do choro cultivado no Rio Grande do Sul.
Confesso que, ao saber que o formato desta edição do POA Jazz Festival consistia em quatro shows por noite, cheguei a pensar que os espectadores dificilmente resistiriam até o final dos extensos programas. Mas a alta qualidade das atrações musicais manteve o interesse da plateia, em duas noites que se estenderam pelas madrugadas.
Do reencontro dos músicos do cultuado grupo instrumental gaúcho Raiz de Pedra, que formou uma legião de fãs nos anos 1980 e 1990 (imagine algo como um retorno do Quarteto Novo, tamanha era a excitação que se sentia na plateia) às contagiantes fusões de ritmos do Nordeste brasileiro com o jazz exibidas pela banda paulista Silibrina, passando pelo sofisticado jazz do quarteto do saxofonista holandês Jasper Blom e pelo tributo do jovem pianista Cristian Sperandir ao saudoso compositor gaúcho Geraldo Flach (1945-2011), a noite de abertura, em 8/11, foi também repleta de boas surpresas.
Vale observar ainda que o POA Jazz leva muito a sério seu slogan “Somos múltiplas conexões”. Além dos oito shows da programação principal, o festival gaúcho também realizou várias atividades paralelas, como uma homenagem ao crítico musical e pesquisador gaúcho Juarez Fonseca por seus 50 anos de carreira ou a exibição do documentário “Zuza Homem de Jazz”, que foi debatido com seu protagonista, o jornalista, produtor e curador musical Zuza Homem de Mello.
Outros debates e palestras abordaram temas como as perspectivas do jornalismo cultural, políticas culturais e a sustentabilidade nos projetos culturais. Houve também uma série de masterclasses, com os integrantes do grupo Raiz de Pedra, com Mathias Pinto, violonista do Sexteto Gaúcho, e Jesse Van Huller, guitarrista do Jasper Blom Quartet. Aliás, esse grupo holandês se apresenta hoje, às 23h, no clube JazzB, em São Paulo.
Num ano tão difícil para a realização de projetos culturais que dependem de patrocínios, em meio a um contexto reacionário de censura e de ataques à cultura de nosso país, o 5.º POA Jazz Festival deu um show de profissionalismo e perseverança, mesmo sendo obrigado a fazer cortes em seus planos iniciais. Um exemplo inspirador a ser seguido nessa área.
(Cobertura realizada a convite da produção do evento)
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