Chico Buarque: uma grande canção e novas pérolas, no esperado álbum "Caravanas"

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                                                                                          O compositor, em foto de Leo Aversa                                                                                                                                     
Paixões incontroláveis, conflitos sociais, preconceitos, sonhos. Quem conhece a obra musical de Chico Buarque vai logo se lembrar de que esses temas estão presentes em algumas de suas melhores canções. O compositor carioca volta a abordá-los em “Caravanas” (seu primeiro álbum desde 2011, lançado nesta sexta-feira), mas isso não tem nada a ver com redundância –- até porque esses temas são atemporais. Perfeccionista, quando Chico decide, depois de alguns anos, que está na hora de gravar e apresentar ao público uma nova coleção de composições próprias, a canção brasileira só tem a ganhar com isso.

“Tua Cantiga”, a faixa que abre esse álbum, já circula em rádios e na internet há quase um mês. É uma típica canção de amor, feita em parceria com o pianista Cristóvão Bastos, que já havia composto com Chico a bela “Todo Sentimento”, três décadas atrás. Em ritmo de toada, o piano quase hipnótico e as inversões harmônicas de Bastos, autor também do arranjo, evocam uma atmosfera de encantamento que realça a impetuosa paixão descrita nos versos.

Por mais risível que pareça, essa canção (“Quando teu coração suplicar /ou quando teu capricho exigir /largo mulher e filhos /e de joelhos /vou te seguir”) rendeu a Chico um julgamento sumário nas redes sociais. Apressadas feministas identificaram nesses versos uma prova de machismo do autor – reação típica do “politicamente correto” e do moralismo que têm orientado esses veredictos virtuais. Será que essas pessoas não desconfiam de que um personagem (lembre-se que Chico já criou personagens memoráveis em suas canções e romances) não reflete necessariamente as convicções pessoais de um autor?

“As Caravanas” –- canção que inspirou o título do álbum e o conclui -– talvez não vá provocar tanta polêmica quanto “Tua Cantiga”, mas certamente será lembrada no futuro entre outras grandes canções de Chico, como “Construção” (1971) ou “Vai passar” (1984). Nela, o compositor aborda de maneira impactante um fenômeno social que tem se repetido durante os verões no Rio de Janeiro: os bandos de garotos pobres das favelas e dos subúrbios, que decidem exercer seu direito de visitar as praias da zona sul carioca, desencadeando a rejeição e o medo dos frequentadores de classe média.

“Com negros torsos nus deixam em polvorosa /a gente ordeira e virtuosa que apela /pra polícia despachar de volta /o populacho pra favela /ou pra Benguela, ou pra Guiné”, ironizam os versos de Chico, apontando que o racismo secular se mistura ao preconceito social nas reações dos cariocas “de bem” que rejeitam essas visitas indesejadas. “Tem que bater, tem que matar /engrossa a gritaria / Filha do medo, a raiva é mãe da covardia”, desmascara a letra.

Em uma canção de alto quilate como essa, o tratamento musical precisa estar à altura dos versos. É o que se ouve no arranjo perfeito de Luiz Claudio Ramos, parceiro costumeiro do compositor. À voz de Chico, que de início é acompanhada apenas por um básico trio (violão, baixo e bateria), logo se somam outros instrumentos (teclados, percussões), simulando a tensão crescente provocada pela chegada da “caravana do Arará”. Esta é representada por um batuque tribal típico do funk carioca (vocalizado pelo "beatbox" de Mike), que se junta, num crescendo vertiginoso, ao som de uma orquestra, levando o cantor ao clímax: um grito de medo. Acertadamente escolhida para encerrar o álbum, “As Caravanas” deixa no ar uma sensação perturbadora – efeito que poderia ser diluído se fosse ouvida antes das canções mais líricas, que predominam no disco.

Uma das mais felizes, literalmente, é “Massarandupió”, valsa contagiante que Chico compôs em parceria com o músico Chico Brown (seu neto, filho do percussionista e compositor Carlinhos Brown e de sua filha Helena). O título se refere a uma praia da Bahia, onde o jovem Brown passava férias na infância. “Lembrar a meninice é como ir /cavucando de sol a sol / atrás do anel de pedra cor de areia /em Massarandupió”, imagina Chico, em seus versos nostálgicos.

Também carregando uma boa dose de nostalgia, o bolero “Casualmente” (parceria com o baixista Jorge Helder), com letra em espanhol, remete à beleza das ruas de Havana, a capital da ilha de Cuba. Pode soar como uma resposta elegante de Chico aos “haters” direitistas que já o provocaram (inclusive gritando “vai pra Cuba”), mas o fato é que essa canção nasceu como uma encomenda da cantora Omara Portuondo, do grupo cubano Buena Vista Social Club, ainda não gravada.

O samba-canção “Desaforos” também sugere uma certa ambiguidade. “Sou apenas um mulato que toca boleros /Custo a crer que meros lero-leros de um cantor /possam te dar tal dissabor”, ironizam os versos, que aparentam ter sido escritos para uma mulher. Como não pensar que se trata de um recado sutil, que o autor do gozador refrão “você não gosta de mim /mas sua filha gosta” (do samba “Jorge Maravilha”, assinado com o pseudônimo Julinho da Adelaide, em 1973, durante a ditadura militar) estaria mandando a seus detratores virtuais?

Numa época em que as questões de gênero e sexualidade estão em foco diário na mídia e nas redes sociais, o relaxado “Blues pra Bia” também pode render polêmica, mesmo que isso não estivesse nos planos do autor. Ao suspeitar que o alvo de sua paixão não se interessaria por homens, o personagem conclui seu relato com uma solução gaiata: “Porém nada me amofina /até posso virar menina /pra ela me namorar”.

Paixão arrebatadora também é o tema de “Dueto”, canção composta originalmente por Chico para o musical “O Rei de Ramos”, em 1979, e gravada no ano seguinte em duo com Nara Leão. Agora, em uma versão mais leve, ele divide os vocais com a neta Clara Buarque, irmã de Chico Brown. O ritmo ternário e o acordeom de Marcos Nimrichter emprestam um tempero especial ao arranjo de Luiz Cláudio Ramos, que remete a valsas francesas. Ao final, em descontraído tom de improviso, a dupla atualiza referências clássicas contidas nos versos (o amor que “consta nos autos, nas bulas, nos dogmas”), introduzindo nomes de redes sociais e aplicativos.

Outra canção não inédita do álbum é a lírica “A moça do sonho”, parceria de Chico com Edu Lobo para o musical “Cambaio” (2001). O arranjo despojado de Ramos, só com seu violão e o violoncelo de Hugo Pilger, deixa mais espaço para que o ouvinte se concentre na beleza das imagens oníricas (“Entre escadas que fogem dos pés /e relógios que rodam para trás /se eu pudesse encontrar meu amor /não voltava jamais”).

Finalmente, no samba sincopado “Jogo de Bola”, Chico retorna a outra de suas paixões, que já gerou o hoje clássico samba “O Futebol” (1989). Na letra recheada por firulas poéticas (“outrora, quando em priscas eras /um Puskás eras /a fera das feras da esfera, /mas agora há que aplaudir o toque /o tique-taque, o pique, o breque /o lance de craque do centroavante”), o compositor relembra o passado para lançar um olhar igualmente apaixonado pelo futebol de hoje. 


Só pelo gol de placa que é a canção “As Caravanas” já teria valido a pena esperar seis anos, mas há muito mais a aplaudir no novo disco desse grande craque da canção. 

(Resenha originalmente publicada no jornal "Valor", em 25/8/2017)



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