Trompetista, arranjador e educador musical, Walmir Gil já teria garantido um lugar especial na história da música popular brasileira por ser um dos fundadores da cultuada Banda Mantiqueira, com a qual se apresenta há mais de três décadas. Essa original big band de São Paulo, criada em 1991, é motivo de orgulho para os paulistas e fãs de outros estados do país que apreciam música instrumental de alto quilate e jazz com sotaque brasileiro.
A Mantiqueira é a cereja do
bolo, na longa folha de serviços prestados por Gil à música brasileira e ao
jazz, em suas cinco décadas de carreira. Nos anos 1980, ao integrar o naipe de
metais da afiada big band do 150 Night Club do Hotel Maksoud Plaza, em São
Paulo, ele acompanhou astros do jazz, como Anita O’Day, Benny Carter, Bobby
Short e Paquito D’Rivera, entre outros.
Na década de 1990, Gil fez
parte da suingada banda que tocava com Djavan em suas turnês, assim como
acompanhou nos palcos outros grandes intérpretes e compositores da música
brasileira, como Caetano Veloso, Gal Costa, Rosa Passos, João Bosco, César
Camargo Mariano, Fafá de Belém, Simone e Milton Nascimento. Já neste século,
além de gravar dois discos como solista (“Passaporte” e “Novas Histórias”) e de
defender seu mestrado em música pela Unicamp, ele ministrou dezenas de
workshops e oficinas de trompete pelo país adentro.
A afinidade de Gil com a
música de João Donato remonta à década de 1970, quando já tocava um arranjo de
“Lugar Comum”, em bailes na cidade de Santos, no litoral paulista. “As músicas
que você gosta de tocar sempre serão tocadas com o coração”, diz ele,
explicando que teve a ideia de homenagear Donato, em um disco com arranjos
instrumentais de suas composições, não só por admirá-lo como músico e
compositor, mas também pelo prazer que sente ao tocar essas músicas.
“Fui convidado a tocar com ele
algumas vezes, mas eu sempre estava viajando. Perdi a oportunidade de
conhecê-lo pessoalmente”, lamenta Gil, que diz apreciar a música de Donato,
especialmente, por sua simplicidade. “Ele era um cara muito simples, que não
usava uma harmonia complexa, mas conseguia transmitir o que queria. Sempre
gostei muito dele”.
Elogiando também o suingue de
Donato, ao comentar as afinidades que tem com seu homenageado, Gil menciona o
princípio minimalista “menos é mais”, que já foi adotado na arquitetura, no
design e em diversos campos artísticos. “É como a música do Miles Davis”,
compara o músico paulista, referindo-se ao genial trompetista e compositor
norte-americano, outra de suas referências musicais.
O álbum: simplicidade com temperos afro-latinos
Para as gravações do álbum,
Gil convocou seu Quinteto Afro Latin Jazz, que destaca outros três craques da
cena instrumental e jazzística de São Paulo: o tecladista Bruno Cardozo, o
baterista Cuca Teixeira e o baixista Carlinhos Noronha, que já tocam com Gil há
mais de vinte anos. Mais recente no grupo, a percussionista argentina Caro
Cohen traz muita energia e intimidade com o rico universo dos ritmos
afro-cubanos e da música latina.
“A ideia é temperar a música
do Donato com ritmos afros e latinos”, diz ele, sintetizando o conceito do
álbum. Um saboroso exemplo dessa receita sonora é o arranjo de “Emoriô”. Essa
faixa é introduzida pela sonoridade grave e etérea do clarone do convidado
Nailor Proveta, outro antigo parceiro de Gil e fundador da Banda Mantiqueira.
Na sequência, a clave cubana e a percussão de Caro Cohen criam uma atmosfera de
polifonia tribal, em ritmo de rumba.
A doce “Lugar Comum”
começa com sons de água corrente, como se o quinteto estivesse na beira de um
rio. Caro, a percussionista, puxa um hipnótico ritmo de guaguancó e, ao fundo,
Gil sopra a conhecida melodia de maneira suave, como se ela flutuasse. Na seção
de solos, tanto o trompetista como Bruno Cardozo (piano elétrico) e Carlinhos
Noronha (baixo) soam bem jazzísticos.
Outro clássico de Donato, a
dançante “Bananeira” é introduzida por um breve solo do baterista Cuca
Teixeira. Nesta faixa, Gil recebe outro convidado especial: o trombonista
François de Lima, também seu parceiro na Mantiqueira. “Nós tocamos juntos há 58
anos”, festeja o trompetista. E chama atenção para um detalhe bem-humorado de
seu arranjo: a primeira parte da melodia surge com o ritmo alterado, “com um pé
quebrado”, segundo ele, “como se escorregasse numa casca de banana”.
Composição de Donato que deu
título a seu último disco, “Bluchanga” estimulou Gil a fazer um segundo
convite a Proveta. “Essa música foi inspirada em ‘Night in Tunisia”, aquele
clássico do bebop. Coloquei um ritmo de cha-cha-chá ali no meio e chamei o
Proveta para tocar sax alto. Ele mandou muito bem no bebop. Proveta é um grande
músico”, elogia o líder, dizendo que gosta de compartilhar seus melhores
trabalhos com os amigos. “O François e o Proveta são brothers, meus irmãos. A
gente morou junto durante 17 anos”, relembra.
Um músico de jazz poderia até
chamar a canção “Até Quem Sabe” de balada, mas no suave arranjo
de Gil, que a interpreta com elegância e emoção contida, ela soa como um
romântico bolero, especialmente pelo ritmo e pela sonoridade das congas de
Caro. Já em “Minha Saudade”, o pianista Bruno Cardozo sugere na
introdução o andamento lento de uma balada, mas o ritmo e o andamento logo
mudam: o que se ouve é um suingado samba, sem exageros ou histrionismos.
Walmir Gil já tocava “Quem
Diz Que Sabe”, no final dos anos 1970, quando integrava o naipe de metais
da orquestra regida pelo maestro Branco, na casa noturna Ópera Cabaré, em São
Paulo. Foi naquela época que ele se inspirou para criar o arranjo, em andamento
mais rápido. “Optei por fazer assim, com uma influência latina, para o disco
não ficar arrastado, com outra balada lenta”, justifica.
Uma das canções mais líricas de Donato, “A Paz” é a única faixa do álbum sem improvisos mais extensos. “A melodia fala por si só”, justifica Gil, que esboça já ao final da gravação uma breve citação de “A Child Is Born”, clássica balada do repertório jazzístico, assinada pelo trompetista Thad Jones. Em tempo de guerras e tantas mortes sem sentido, a mensagem pacifista de Gil também merece aplausos, nesta bela homenagem ao grande João Donato. Que sua música continue presente em nossos ouvidos e corações.
Texto escrito para o encarte do álbum "João Donato, presente!" a convite do trompetista Walmir Gil. Disponível a partir de hoje nas plataformas musicais.

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