David Feldman: jazz, humor e referências clássicas no CD do pianista e compositor

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As primeiras notas da delicada releitura da canção “Primavera” (de Carlos Lyra e Vinicius de Moraes) já denotam a excelência do intérprete. Revelação da cena de música instrumental do Rio de Janeiro, o pianista e compositor David Feldman reafirma seu talento no álbum solo “piano” com minúsculas mesmo, ele ressalta, porque o título deste CD, gravado e distribuído de forma independente, também se refere à atmosfera suave e intimista das gravações.
 
Além de imprimir sua sensibilidade em versões de clássicos da música popular brasileira, como as líricas “Sabiá” (Tom Jobim e Chico Buarque) e “Tristeza de Nós Dois” (Mauricio Einhorn, Durval Ferreira e Bebeto), Feldman também inclui composições próprias no repertório do disco. Nelas, exibe referências clássicas (conexões entre Chopin e Tom Jobim, em “Chobim”) e senso de humor, em “O Latido do Cachorro” (tema jocoso na linha do jazzista Thelonious Monk) e “Esqueceram de Mim no Aeroporto”. Depois de ouvir este álbum de Feldman, dificilmente alguém o esquecerá de novo. Nem no aeroporto.

(resenha publicada no "Guia Folha - Livros, Discos, Filmes", em 29/12/2014)

Djavan: caixa com 20 CDs revisa a obra desse cantor e compositor de personalidade

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Se você não é um daqueles que encaram a MPB como um gênero musical ultrapassado, dificilmente vai se arrepender. Esqueça as inúmeras vezes em que ouviu clones de Djavan, cantando seus sucessos em bares ou imitando seu estilo nas rádios e TVs. Abstraia a leviandade dos que esnobam a obra desse original compositor, cantor, violonista, arranjador e produtor por considerarem que alguns versos de suas canções não fazem sentido – como se a poesia tivesse que ser regida pela lógica cartesiana.

Ao reunir 18 álbuns de carreira e duas compilações com gravações menos conhecidas, a caixa “Djavan - Obra Completa de 1976 a 2010” (lançamento Sony Music) oferece a oportunidade de se apreciar, com os ouvidos de hoje, a produção quase integral desse veterano autor e intérprete. Até porque a louvável iniciativa de remasterizar os fonogramas das 236 canções incluídas nesta edição resultou em uma definição sonora mais nítida, próxima dos padrões atuais de gravação.

No primeiro álbum, “A Voz, o Violão, a Música de Djavan” (lançado em 1976), sambas como “Flor de Lis” e “Fato Consumado”, com versos inusitados e divisões rítmicas inovadoras, já anunciam a personalidade autoral do jovem estreante, que também dedilha um violão de causar inveja.

Diferentemente de outros cancionistas, Djavan tem o que se costuma chamar de cabeça de músico – visão que se reflete no cuidado especial ao escolher os instrumentistas para suas gravações e shows. Assim como no disco de estreia, sucessos lançados no álbum “Djavan” (1978) – “Serrado”, “Samba Dobrado”, “Cara de Índio” – também destacam músicos de ponta, como o baixista Luizão Maia e o baterista Paulinho Braga (ambos do grupo de Elis Regina e César Camargo Mariano), além do pianista Gilson Peranzzetta.

Consciente da vantagem de contar com um grupo estável, Djavan já esboça, no álbum “Alumbramento” (1980), a base da banda Sururu de Capote, que esteve a seu lado durante uma década. Com o pianista Luiz Avelar, o baixista Sizão Machado e o baterista Téo Lima, alcançou um padrão musical superior, presente em outros clássicos de seu cancioneiro, como os irresistíveis sambas “Obi” e “Avião” ou as românticas “Faltando um Pedaço” e “Oceano”.

Se já no primeiro álbum demonstrava interesse pela diversidade rítmica, essa característica de sua obra foi sendo ampliada a cada novo projeto. “Luz” (1982) e “Lilás” (1984), álbuns gravados nos Estados Unidos com músicos locais e brasileiros, trazem incursões pelo rhythm & blues (o megahit “Samurai”, com participação de Stevie Wonder à gaita) e pelo jazz (a melancólica balada “Esquinas”, com solo do saxofonista Ernie Watts).

Desde então, além dos sambas e canções de amor frequentes em seus discos, Djavan experimentou e cultivou com talento diversos ritmos brasileiros ou mesmo gêneros estrangeiros: xote (“Romance”), choro (“Você Bem Sabe”), frevo (“Quero-Quero”), baião (“Canto da Lira”), bolero (“Cordilheira”), funk (“A Carta”), pop (“Bicho Solto”), salsa (“Irma de Neon”), até uma canção de protesto contra o apartheid na África do Sul (“Soweto”).  

A razão dessa busca constante por novas formas e sensações musicais, o próprio compositor revela, num livreto incluído na caixa com as letras das canções e fichas técnicas de todos os álbuns: “Como um ator, se pode ser outros como eu sempre sonhei”. Raros expoentes da MPB conseguiram ser tantos outros, musicalmente, e tão únicos como Djavan.

(resenha publicada no "Guia Folha - Livros, Discos, Filmes", em 21/12/2014)

 


Festival de Jazz de São Paulo, 1980: Cultura FM põe na web gravações do lendário evento

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                                        Betty Carter, no 2º Festival Internacional de Jazz de São Paulo, em 1980

A rádio Cultura FM (103.3) está prestando um precioso serviço de utilidade pública, em especial para os fãs do jazz e da música instrumental brasileira. A emissora paulista disponibilizou em seu site cinco compilações com áudios extraídos de shows do lendário Festival Internacional de Jazz de São Paulo, realizado em 1980. Esse material histórico inclui também álbuns de fotos dos artistas clicadas durante o evento.

Quem teve a sorte de estar na plateia do Palácio das Convenções do Anhembi, nas duas edições do evento realizadas em 1978 e 1980, sabia que jamais esqueceria daqueles festivais – até porque eventos desse gênero ainda eram novidade no Brasil. Também transmitido ao vivo para quase todo o país pela TV Cultura e afiliadas, esse festival permitiu que muitos brasileiros, especialmente jovens, abrissem os ouvidos para um gênero musical que ainda atingia apenas pequenos círculos de apreciadores. 

A parceria com o eclético Montreux Jazz Festival (realizado até hoje, anualmente, na Suíça) permitiu a vinda ao Brasil de um elenco de atrações de primeira linha, não só do jazz, mas também do blues, do R&B, do reggae, até do tango, como Dexter Gordon (na foto à esquerda), o grupo Mingus Dinasty, Betty Carter, Dizzy Gillespie, Chick Corea, Al Jarreau, George Duke, Larry Coryell & Philip Catherine, John McLaughlin, Ahmad Jamal, Stan Getz, Benny Carter, Taj Mahal, Etta James, Peter Tosh e Astor Piazzolla, entre outros. 

Marco na cena cultural paulistana, esse festival estimulou a formação de novas plateias, não só para o jazz e gêneros afins, mas também para a música instrumental brasileira, que vivia naquele momento uma fase de renovação e muita criatividade. Hermeto Pascoal, Egberto Gismonti, Mauro Senise, Hélio Delmiro, Gilson Peranzzetta, Nivaldo Ornelas, Toninho Horta, Paulo Moura, Maurício Einhorn, Márcio Montarroyos, Wagner Tiso, Nelson Ayres, Roberto Sion e os grupos Azimuth, D’Alma, Divina Increnca e Grupo Um estavam entre as atrações do evento. 

Parabéns a Vilmar Bittencourt, da equipe da Cultura FM, pela iniciativa de recuperar essas gravações. Aliás, tomara que a TV Cultura siga o exemplo e também disponibilize, em som e imagem, os registros daquelas noites inesquecíveis no Anhembi.

Este é o link para ouvir as gravações no site da Cultura FM:

http://culturafm.cmais.com.br/cultura-jazz/jazz-ao-vivo-na-rtc 






Eumir Deodato: dos elogios de Tom Jobim à vitoriosa carreira musical nos EUA

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Naquele ano de 1964, muitos músicos brasileiros devem ter sentido ao menos um pouco de inveja do jovem pianista e arranjador Eumir Deodato. Seu disco de estreia – “Inútil Paisagem”, gravado pelo selo Forma, com arranjos orquestrais que ele escrevera para 12 canções de Tom Jobim – trazia na contracapa um texto de apresentação cheio de elogios, assinado por ninguém menos que o próprio Jobim.

“É incrível que um rapaz de 22 anos possa escrever para orquestra como Eumir escreve. Não basta ser musical, talentoso, habilidoso, sabido ou sábio. Escrever para orquestra é coisa que envolve toda uma técnica, experiência, um passado de erros passados a limpo, e eu não creio que Eumir tenha tido, com 22 anos, tempo para isso”, escreveu Jobim, compositor e músico exigente, que não costumava sair distribuindo elogios fáceis. O texto também incluía mais um de seus achados poéticos: “Meu Deus, quanta coisa Deus deu a Deodato!”

Passados cinquenta anos, Deodato ainda demonstra um certo embaraço ao se lembrar desse episódio, mas o motivo não tem nada a ver com música. “Quando alguém me falou sobre aquele elogio do Tom, tomei um susto. Sou um cara tão distraído que, para falar a verdade, ainda não tinha lido a contracapa do meu disco”, confessa o carioca, nascido no bairro do Catete, que vive nos Estados Unidos desde o final dos anos 1960.

Deodato não se recorda exatamente de quando e como conheceu Jobim. Lembra-se de tê-lo visto de longe algumas vezes, no início da década de 1960, nas animadas reuniões musicais promovidas pela família do letrista Lula Freire, em seu apartamento, no bairro de Copacabana, no Rio. Nesses encontros, frequentados por músicos da bossa nova e apreciadores do cool jazz, era comum se encontrar o violonista Baden Powell, o pianista Luiz Eça ou o flautista Bebeto Castilho, entre outros.

“O Tom já era o mais cobiçado de todos, naquela época. Ele já tinha várias músicas gravadas com sucesso, como ‘Teresa da Praia’ ou as parcerias com Dolores Duran, que eram lindas. Sempre havia muita gente em volta dele, naquelas reuniões de bossa nova. E eu era um cara muito calado, tímido. Demorou para que eu tivesse a oportunidade de conversar com ele”, recorda.

Mesmo admirando as canções e a musicalidade de Jobim, Deodato não considera que tenha sido influenciado diretamente por ele, como pianista e compositor. “Trabalhando com o Tom, eu fui descobrindo o que ele considerava mais importante na música. Ele valorizava muito as melodias – era um ótimo arquiteto de linhas melódicas. Tom também era um grande fã do Villa-Lobos. Muitas das coisas mais clássicas que fez eram influenciadas pelas ideias do Villa-Lobos”, analisa.

A ligação dos dois se consolidou quando Deodato foi convidado por Jobim a fazer arranjos para os temas instrumentais e canções que compusera para o filme “Garota de Ipanema”, de Leon Hirszman, lançado em 1967. Clássicos da obra jobiniana nasceram nesse filme ainda pouco conhecido, como o instrumental “Surfboard”, a canção “Ela É Carioca” e, claro, o megassucesso “Garota de Ipanema”, com letras de Vinicius de Moraes.

“O Tom me deu muita força. Depois desse filme eu trabalhei muito com ele”, credita Deodato, ao relembrar outra parceria da dupla para o cinema: a trilha sonora do filme “Os Aventureiros” (“The Adventurers”), do britânico Lewis Gilbert, com a bela norte-americana Candice Bergen, no elenco. Canções populares de Jobim, como “Olha, Maria” (com letra de Vinicius de Moraes e Chico Buarque) e a valsa “Chovendo na Roseira”, nasceram como temas instrumentais para essa trilha, ainda intitulados “Amparo” e “Children’s Games”, respectivamente.

Deodato se lembra de que, quando ele e Jobim chegaram a Londres, em 1969, ainda não havia uma edição final do filme para que pudessem iniciar o trabalho. “O Tom ia escrever todos os temas e eu tinha que fazer as orquestrações. Enquanto a edição não ficou pronta, passamos dias sentados na King’s Road, olhando as garotas de minissaia, passando. Ficávamos discutindo o que faríamos com a músicas, tomando aquela cerveja morna que os ingleses servem nos bares”, recorda.

Para muitos críticos e fãs de Jobim, seus discos “Tide” e “Stone Flower” – ambos lançados em 1970, com produção do norte-americano Creed Taylor, por selos diferentes – estão entre os melhores produtos de sua parceria com Deodato. “Naquela época, Creed trabalhava para a gravadora A&M, mas tinha criado seu próprio selo, o CTI. Então pegou a verba da A&M para gravar o disco do Tom e fez dois. E ainda escolheu as melhores faixas para o ‘Stone Flower’, que saiu pelo selo dele”, comenta o arranjador.

Poucos anos depois, já como artista do elenco da gravadora de Taylor, Deodato teve uma surpresa tão grande quanto a provocada pelos elogios de Jobim aos arranjos de seu primeiro disco. O arranjo “crossover” que criou para o poema sinfônico “Also Sprach Zarathustra” (composição de Richard Strauss, que havia se tornado bastante popular, na época, ao integrar a trilha sonora do filme “2001, Uma Odisseia no Espaço”, de Stanley Kubrick) chegou ao topo das paradas de sucesso, em 1973.

“Foi um arranjo praticamente feito no estúdio, ao vivo, que me deixou quase morto”, diverte-se Deodato, contando que levou para a sessão de gravação apenas um esboço da introdução desse arranjo. ““Eu estava sem ideias, mas, na noite anterior, pouco antes de dormir, lembrei de um baiãozinho que tinha anotado em um caderno. Como a música do Strauss e esse tema eram compostas em dó, achei que valia a pena tentar. Deu certo”.

Desde os anos 1970, o requisitado Deodato atuou em centenas de outros projetos e gravações, com artistas de diversos estilos e gerações: do guitarrista de jazz Wes Montgomery e da banda funk Kool and the Gang às cantoras Gal Costa e Björk. Já no ano passado, reencontrou a obra de Jobim, ao escrever os arranjos para o álbum que a cantora Vanessa da Mata dedicou ao grande maestro da bossa.

“Só fizemos algumas mudanças de ritmo. Depois de trabalhar tantos anos com o Tom, sei que que ele tinha pavor de que trocassem a harmonia de suas composições”, comenta o arranjador, consciente de que tentar fazer a música de Jobim soar melhor ou mesmo mais atual, sem comprometer sua identidade, seria uma tarefa inglória.

(Entrevista publicada no caderno de cultura do “Valor Econômico”, em edição dedicada aos 20 anos da morte de Tom Jobim, em 5/12/2014)


Sou, Kastrup e Taubkin: belezas selvagens para ouvidos contemporâneos

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Ao criarem o duo Soukast, em 2005, os músicos Simone Sou e Guilherme Kastrup buscavam um projeto com o qual pudessem se expressar de maneira artística por meio da percussão, incluindo até recursos eletrônicos. Agora, graças à parceria com o pianista e compositor Benjamim Taubkin, a música instrumental desse duo ganhou novas dimensões, cores e texturas, no álbum “Sons de Sobrevivência” (lançado pelo selo Núcleo Contemporâneo).

Em faixas como “Pifaiada” (de Sou e Kastrup), de marcada ascendência nordestina, ou a coletiva “Choro Bororo”, que utiliza “samples” de vocalismos de índios Bororo, o trio desenvolve – por meio de improvisos – paisagens sonoras cheias de sensações e energia. Entre uma viagem musical e outra, há passagens recheadas de lirismo, como na coletiva “Improviso (E o Que Veio Depois)” ou na impressionista “Gota D´Água” (Simone Sou). Belezas selvagens para ouvidos contemporâneos. 

(Resenha publicada no "Guia Folha - Livros, Discos, Filmes", em 29/11/2014) 

 

Caixa Cubo Trio: grupo paulista relê clássicos do samba-jazz, no CD "Misturada"

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                                             Capa do CD "Misturada", do Caixa Cubo Trio

Parceiros há quase uma década, já com três discos gravados, o pianista Henrique Gomide e o baterista João Fideles expandiram o formato de seu criativo duo Caixa Cubo. Ao lado do contrabaixista Noa Stroeter, eles recuperam no álbum “Misturada” composições de expoentes do samba-jazz e da música instrumental das décadas de 1960 e 1970.

Da jazzística releitura de “Coalhada” (de Hermeto Pascoal), repleta de mudanças rítmicas, à inventiva versão de “Pirambêra” (Laércio de Freitas), passando pela bela interpretação do samba “Amphibious” (Moacir Santos), que destaca a participação especial de Teco Cardoso (sax barítono), o trio paulista trata esse clássico repertório com muita liberdade, sem jamais desvirtuá-lo. Composições próprias como o bem humorado xote “Shot #4” (Gomide e Fideles) e o lírico “Bolero pra Zulma” (Stroeter) sugerem que esse trio tem muito a mostrar, nos próximos anos. 

(resenha publicada no "Guia Folha - Livros, Discos, Filmes", em 21/11/2014) 


 

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