Luiz Gonzaga: tributo em CD triplo mostra atualidade da obra do rei do baião

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Só pelo que fez em favor da música popular do Nordeste, exibindo toda sua diversidade rítmica e melódica ao apresenta-la a ouvintes de outras regiões do Brasil durante as décadas de 1940 e 1950, o influente sanfoneiro, cantor e compositor pernambucano Luiz Gonzaga (1912-1989) mereceria ser homenageado diariamente. Porém, em tempo de vacas magras no mercado fonográfico, não fosse a comemoração pelo centenário de nascimento do popular “rei do baião” dificilmente veríamos gravações como estas chegarem agora às lojas.

Com produção de Thiago Marques Luiz, que já conduziu projetos semelhantes centrados nas obras de Adoniran Barbosa (1910-1982) e Ataulfo Alves (1909-1969), o álbum triplo “100 Anos de Gonzagão” (lançamento do selo Lua Music) reúne 50 itens do repertório do mestre da sanfona, entre clássicos sucessos e temas menos conhecidos pelo grande público, relidos por intérpretes de diversas gerações e vertentes da música popular brasileira.

O produtor paulista tem outra vez a seu lado o violonista Rovilson Pascoal e o baixista André Bedurê, responsáveis pela direção musical e arranjos do álbum. Os dois também tocam em várias faixas, contribuindo assim para uma relativa homogeneidade sonora, algo bem vindo em um projeto que envolve tantos artistas e gravações.

O repertório é organizado de maneira temática. Intitulado “Sertão”, o primeiro dos três CDs reúne 17 canções que remetem ao universo dos boiadeiros, da fauna e da flora sertaneja, dos emigrantes da seca. Os veteranos Dominguinhos (consagrado herdeiro de Gonzagão ao qual o projeto também é dedicado), Geraldo Azevedo, Ednardo e Anastácia abrem o álbum com uma animada versão da toada “Asa Branca”, a obra-prima de Gonzaga e Humberto Teixeira. 


 O tom de reverência predomina em diversas versões, como as de Zezé Motta (“A Vida do Viajante”), Amelinha (“Légua Tirana”), Anastácia e Osvaldinho do Acordeon (“A Feira de Caruaru”). Mas também há releituras bem pessoais, como a de Chico César (na foto ao lado), que dialoga com sua guitarra no baião “Pau de Arara”, ou a do grupo Vanguart, que injeta melancolia na toada “Assum Preto”.

“Xamêgo”, o segundo CD, exibe canções de temática amorosa, algumas abordadas com mais liberdade. A começar pela debochada Maria Alcina, que transforma a faixa homônima em um hilariante carimbó de duplo sentido. O grupo nova-iorquino Forró in the Dark também brinca com a sensualidade de “O Cheiro da Carolina”, num arranjo que combina sopros e ruídos eletrônicos. Agrupadas ao final desse volume, as cantoras Vânia Bastos, Célia e Maria Creuza aproximam a marcha “Olha Pro Céu”, o baião “Roendo Unha” e a valsa “Dúvida”, respectivamente, do universo mais sofisticado da MPB. 


É no CD “Baião” que estão as releituras mais livres, ou mesmo mais irreverentes, do álbum. O clássico “Respeita Januário” soa como um blues eletrificado, na descontraída versão de Zeca Baleiro (na foto ao lado). Recriado por Márcia Castro, o baião “Paraíba” ganha batida e sonoridades de rock. Já o coco “Siri Jogando Bola” remete ao som retrô da Jovem Guarda, na releitura de China. Mas a maior surpresa vem em “Baião de Dois”, com a bossa novista Claudette Soares revivendo a época em que foi chamada de “Princesinha do Baião”, em saboroso arranjo do B3 Organ Trio.

O álbum termina com o dançante “Madame Baião”, gravado em Nova York pela banda Nation Beat, num original arranjo que mistura clarinete, rabeca e guitarra. Mais uma prova de que, décadas depois de conquistar o Brasil, o baião de Gonzagão continua a ser cultuado até na terra de Tio Sam.


(resenha publicada no "Guia Folha - Livros, Discos, Filmes", em 28/09/2012)

Super Divas: série resgata vozeirões de cantoras brasileiras de outras épocas

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Antes que a Bossa Nova se estabelecesse com sua estética minimalista e contenção “cool”, no final dos anos 1950, cantores com vozeirões, interpretações melodramáticas e repertórios bem ecléticos davam o tom na cena da música popular brasileira. O sopro de modernidade trazido por João Gilberto e sua geração bossa novista praticamente varreu do cenário musical esses artistas, que passaram a soar extemporâneos aos ouvidos mais antenados daquela época. 
 
Até por serem menos lembradas hoje, originais cantoras brasileiras, como Leny Eversong (na foto acima), Eliana Pittman (abaixo), Ademilde Fonseca, Carmélia Alves, Rosana Toledo, Waleska e Cláudia, merecem atenção entre os 13 volumes da série Super Divas (lançamento EMI), que acaba de chegar às lojas. A coleção inclui também intérpretes mais consagradas e de estilos diversos, como Maysa, Elizeth Cardoso, Dalva de Oliveira, Angela Maria, Aracy de Almeida e Maria Alcina.

Mesmo quem conheceu durante os anos 1950 ou 1960 a espetacular paulista (nascida em Santos) Leny Eversong, ainda pode se surpreender ao ouvir hoje seu canto grandiloquente. Artista de extremos, ela extraía dramaticidade de tudo que cantava: de sambas canções (“Nunca”, de Lupicinio Rodrigues) a standards do jazz (“Tenderly”, de Lawrence e Gross); de baiões (“Do Pilá”, de Jararaca) a ritmos afro-cubanos.


Sua interpretação para o medley “El Cumbanchero/Tierra va Tembra” (de Hernandez/Merceron; veja o video abaixo) é uma aula quase teatral de kitsch. Num arranjo hiperdramático e repleto de nuances e mudanças inesperadas, Leny grita, dá gargalhadas, repete com seu vozeirão potente as divisões rítmicas da percussão, simula o som estridente dos metais da orquestra. Divertidíssima também é a versão orquestral da canção latina “Jezebel”, seu maior sucesso. Uma intérprete que cantava com o útero.

Também eclética e adepta de efeitos teatrais, a carioca Eliana Pittman mistura sambas (“Esse Mar é Meu”, de João Nogueira), música judaica (“Tzena, Tzena, Tzena”), folclore brasileiro (“Estrela é Lua Nova”, recolhido por Villa-Lobos), pop dos anos 1970 (“Maria Joana”, de Roberto e Erasmo Carlos, canção censurada na época por se referir à maconha) e marcha-rancho (“O Castelo”, de Mara). Enteada do saxofonista norte-americano Booker Pittman, ela também costumava enveredar pelo jazz, como em “Summertime” (dos irmãos Gershwin), num suingado arranjo orquestral de Erlon Chaves.

 
Uma das poucas remanescentes da chamada Era do Rádio, a fluminense Angela Maria estabeleceu-se na década de 1950, cantando sambas-canções e boleros, em geral com um viés melodramático. Já nesta antologia, que focaliza sua carreira durante os anos 1970, ela injeta malicia no cha-cha-chá “Usei Você” (Silvio Cesar), derrama bom humor na marchinha carnavalesca “Casamento da Zezé” (Augusto e Maria) e romantismo na versão de “I’ll Never Love This Way Again”, o hit de Dionne Warwick.

Idealizada e produzida pelo jornalista e pesquisador Rodrigo Faour, a série inclui cerca de 250 gravações remasterizadas e privilegia algumas faixas mais raras, em vez de se concentrar nos batidos sucessos de cada artista. Dois dos 13 CDs são duplos: o da “rainha do choro” Ademilde Fonseca, que morreu em março último, e o da “rainha da voz” Dalva de Oliveira. Aliás, no quesito excessos, seja de dramaticidade ou de arroubos vocais, a série Super Divas está repleta de gravações de rainhas. Para serem ouvidas sem preconceitos. 


(Texto publicado no "Guia Folha - Livros, Discos, Filmes", em 28/7/2012)

Egberto Gismonti: música inspirada do trio Mágico ressurge em gravação inédita de 1981

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                                                                              Photo by Ralph Quinke/ECM

Egberto Gismonti ainda se diverte ao lembrar como encontrou pela primeira vez o parceiro norte-americano. Estava no camarim, antes de um concerto na Califórnia, em 1979, quando o já então consagrado baixista se apresentou, com seu típico jeitão de músico de jazz: “Olá, eu sou Charlie Haden”.

Animado, depois de tocar alguns números com Gismonti, no dia seguinte Haden sugeriu que telefonassem para Manfred Eicher, produtor do selo alemão ECM, pelo qual ambos já haviam feito várias gravações. Haden queria gravar um disco com o brasileiro de qualquer maneira.

“Dias antes da gravação, em Oslo, o Manfred sugeriu que o Jan Garbarek também participasse”, conta Gismonti, lembrando que o saxofonista norueguês e Haden já tocavam juntos, no grupo do pianista Keith Jarrett. “Manfred sabia que iríamos tocar muita música brasileira e queria alguém para ‘cantar’ as melodias”.

Assim nasceu um dos trios mais originais do jazz contemporâneo. Naquele mesmo ano de 1979, o grupo gravou “Mágico” e “Folk Songs”, elogiados álbuns que contribuíram para que Gismonti se estabelecesse de vez, na cena internacional, como compositor e instrumentista.

Já em abril de 1981, Eicher aproveitou uma turnê do trio pela Europa, para registrar um de seus concertos, no Amerika Haus, em Munique, na Alemanha. As gravações ficaram excelentes, mas o produtor esperou três décadas para ver lançado o álbum duplo que chega ao mercado brasileiro nesta semana, em parceria com o selo paulista Borandá, antes de sair no resto do mundo.

“Houve algum mal entendido pessoal entre o Haden e o Garbarek, sobre o qual eu nunca quis entrar em detalhes”, explica Gismonti, que, apesar da desativação precoce do trio, manteve a amizade com os parceiros. “Meu negócio é tocar. Eu brigo e 'desbrigo' com namoradas e filhos, mas jamais com músicos que eu gosto”, comenta.

Gismonti já tinha se esquecido do concerto gravado em 1981, quando recebeu, meses atrás, a notícia de que a ECM ia lançar o disco, finalmente. “Por atitudes como essa eu acho o Manfred tão competente e tão reto. Ele tinha uma joia como essa na mão, mas não lançou o disco enquanto o Haden e o Garbarek não voltaram a se entender”.

O título do CD, emprestado de uma composição de Gismonti, surgiu num bate-papo entre ele e o produtor, pela internet. “Manfred me disse que considera esse disco um tesouro. Respondi que parecia um mapa de tesouro achado dentro de uma garrafa, na praia. Então ele disse que o título teria de ser ‘Carta de Amor’, em português”, conta o pianista. Revela também que Eicher e os ex-integrantes do Mágico estão planejando uma volta do trio aos palcos, para comemorar esse lançamento.
 

‘Química’ musical do grupo impressiona

Não fossem Egberto Gismonti, o norte-americano Charlie Haden e o norueguês Jan Garbarek os grandes músicos que são, um desavisado poderia até pensar que uma parceria entre artistas de origens e bagagens tão diversas correria o risco de resultar anódina ou estranha.

No entanto, as 11 faixas do CD duplo “Carta de Amor” provam que, no universo da música improvisada, as sensibilidades dos instrumentistas têm um peso bem maior do que suas nacionalidades ou idiomas.

O lirismo de composições de Gismonti, como “Palhaço”, “Don Quixote”, “Branquinho” e a faixa-título, é realçado pelas sonoridades agridoces do sax tenor e do soprano de Garbarek, que também contribui com belas adaptações de canções folclóricas da Escandinávia.

Já o eclético Haden, que se tornou conhecido tocando free jazz com Ornette Coleman, colabora com a singela “All That Is Beautiful” e a provocativa “La Pasionaria” – do repertório da Liberation Music Orchestra, projeto de viés político, nos anos 1970, que Haden resgatou em 2005.

Mas, ao final, o que mais impressiona é mesmo a “química” sonora, a espontaneidade que marca as performances desse trio, preservada por três décadas nestas gravações tão preciosas. Sorte nossa.

(textos publicados na "Folha de S. Paulo", em 19/09/2012) 



Jose James: cantor norte-americano mistura jazz, soul e hip hop, em São Paulo

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                             Jose James, no Rio das Ostras Jazz & Blues Festival, em 2011/Photo by Carlos Calado


No universo do jazz, assim como na música popular brasileira, as mulheres são maioria entre os vocalistas. Essa hegemonia explica em parte o “frisson” que o norte-americano Jose James, 33, tem provocado nos festivais e clubes de jazz por onde passa, mas o que conta mesmo é seu original timbre de barítono e o repertório diversificado, que combina jazz, soul e hip hop.

Depois de se destacar como revelação do Rio das Ostras Jazz & Blues Festival (RJ), em 2011, James retorna agora ao Brasil para uma turnê que inclui outros festivais desse gênero, em Minas Gerais e no Rio Grande do Norte. Também se apresenta hoje, no Bourbon Street, em São Paulo.

Contratado pela influente gravadora norte-americana Blue Note, James gravou há pouco seu quarto álbum, “No Beginning, No End”, que tem lançamento previsto para janeiro de 2013. Algumas faixas desse trabalho já têm aparecido em seus shows mais recentes.

“Mesmo que esse álbum misture jazz, soul e R&B, eu acho que ele é o trabalho mais coeso da minha carreira”, diz à "Folha" o cantor e compositor. “É um álbum que preparei durante dois anos e que eu sei que será definitivo para mim”.

Embora seu CD “For All We Know” (2010), calcado em “standards” do jazz, tenha conquistado elogios na imprensa especializada, James rejeita a possibilidade de ficar restrito a um único gênero musical.

“Não quero mais ser tratado como um cantor de jazz. Perceber que o jazz é apenas um rótulo foi algo libertador para mim. Quero que minha música não fique confinada a fronteira alguma”, afirma o intérprete e compositor.

Se, em “For All We Know”, James interpretou clássicos do jazz imortalizados por ídolos do gênero, como Billie Holiday, Dinah Washington e Johnny Hartman, em “No Beginning, No End”, ele revela sua afinidade com o R&B e o soul de astros das décadas de 1960 e 1970, como Marvin Gaye, Donny Hathaway e Roberta Flack.

No palco, James age e se veste quase como um rapper. Mistura, no repertório de seus shows, eletrônica e improvisos vocais na linha do hip hop, com releituras de pérolas do jazz moderno, como “Moanin” (do pianista Bobby Timmons) e uma versão letrada de “Equinox” (do saxofonista John Coltrane).

Por essas e outras, a tradicional revista californiana “Jazz Times” já se referiu a ele, enfaticamente, como “o salvador do jazz”. Na verdade, uma bobagem com aparência de elogio, pois James jamais pretendeu “salvar” o jazz, gênero musical que há mais de um século vem absorvendo elementos de diversos gêneros e estilos da música negra sem se descaracterizar.

Como outros músicos e fãs de sua geração, diretamente influenciada pelo hip hop, James veio a se envolver com o jazz depois de ouvir gravações do rapper Guru e das bandas Digable Planets e A Tribe Called Quest, que fundiram elementos do rap e do jazz, no final dos anos 1980.

“Se aqueles caras estavam dizendo que o jazz era uma música legal, pensei que devia conhece-la mais a fundo. Então fui atrás e percebi que o jazz tem uma história tão rica e imensa sobre a qual pouco se fala por aí. Não é à toa que alguns de seus apreciadores acabam se tornando fanáticos”, observa o cantor e compositor.

(texto publicado originalmente na "Folha de S. Paulo", em 5/09/2012)





Jazzhus Montmartre: lendário clube de Copenhagen mantém viva a chama do jazz

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                     Mette Juul, Morten Ramsboll (baixo) e Gerard Presencer (flugelhorn) / Photos by Carlos Calado


A imagem do saxofonista Dexter Gordon (1923-1990) chama atenção na fachada do Jazzhus Montmartre, lendário clube de jazz de Copenhagen, que tive o prazer de conhecer na noite deste sábado.  Assim como Chet Baker , Stan Getz, e outros jazzistas norte-americanos auto-exilados na Europa durante os anos 1950 e 1960, Gordon foi um dos grandes responsáveis por esse pequeno clube dinamarquês ter se tornado conhecido internacionalmente.

Reinaugurado em 2010, no mesmo local em que funcionou durante o áureo período de 1959 a 1976 (na Store Regnegade, no centro de Copenhagen), o Jazzhus Montmartre inclui hoje um ótimo restaurante, com cardápio assinado pelo chef Alessandro Jacoponi,  que só serve comes e bebes até o início dos shows, a partir de 20h.

Quem se apresentou neste sábado foi  Mette Juul, correta cantora e violonista dinamarquesa, que mistura em seu repertório standards do jazz, como “The Nearness of You” e “You and the Night and the Music”, além de canções do universo pop, como “Be Cool”, de Joni Mitchell,  assumida influência em sua concepção musical. A seu lado, ela tinha um quarteto, com destaque para os improvisos do talentoso trompetista britânico Gerard Presencer.

Nas próximas semanas, apresentam-se na casa o pianista italiano Enrico Pieranunzi (de 27 a 29/9), a cantora norte-americana Gretchen Parlato (4 e 5/10), o saxofonista norte-americano Lee Konitz (18 a 19/10) e o trompetista brasileiro Claudio Roditi (24 e 25/10).

A seleção musical, que se ouve antes dos shows, não poderia mais mais adequada para um clube com o passado do Jazzhus Montmartre: muitas gravações históricas de Dexter Gordon.

Mais informações no site do clubewww.jazzhusmontmartre.dk

 

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