Ilhabela in Jazz: festival destaca tributo a Victor Assis Brasil com Nelson Ayres e quinteto

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                                                                    O pianista Nelson Ayres, no Ilhabela in Jazz 2016 

Os fãs do jazz e da música instrumental brasileira que conhecem Victor Assis Brasil, mesmo que só o tenham ouvido em discos, sabem que é difícil evitar superlativos ao se referir a esse grande saxofonista e compositor carioca, morto prematuramente em 1981, aos 35 anos.

“O Victor foi, provavelmente, o maior jazzista brasileiro. Aliás, ele não tinha a menor vergonha de dizer que era um músico de jazz. Era isso que ele queria na vida”, comenta o pianista e regente paulistano Nelson Ayres, que vai comandar um concerto em homenagem ao seu saudoso parceiro, dia 5/10, no festival Ilhabela in Jazz, no litoral paulista.

Diz a lenda que Leonard Feather, influente crítico britânico de jazz, ficou surpreso com o talento de Victor (na foto abaixo) ao ouvi-lo no Festival Internacional de Jazz de São Paulo, em 1978. Um ano antes, Art Blakey, mestre da bateria e líder dos Jazz Messengers, já o convidara a fazer parte de seu grupo, mas o brasileiro declinou a proposta.

Irmão gêmeo do pianista João Carlos Assis Brasil, que desenvolveu carreira na área da música erudita, Victor era mais eclético. Despontou em meados dos anos 1960, tocando jazz e bossa nova, no Rio de Janeiro, mas também tinha um grande interesse pela música clássica.

Victor e Nelson se conheceram em Boston (EUA), em setembro de 1969, quando começaram a frequentar a conceituada Berklee School of Music. “Moramos no mesmo porão. Uns seis meses depois chegaram o Zeca Assumpção e o Claudio Roditi”, recorda o pianista, referindo-se ao baixista e ao trompetista com os quais logo formaram o quinteto Os Cinco, que se apresentou por cerca de dois anos.

Embora tivessem quase a mesma idade, Victor já possuía uma vivência musical maior que a de Nelson. Além de já ter gravado os álbuns “Desenhos” (1966) e “Trajeto” (1968), também ganhara o título de melhor solista do Festival de Jazz de Berlim. “Ele não chegou a me dar aulas, mas aprendi muito com ele. O Victor jamais escondia as coisas que aprendia. Logo as passava para a frente”, conta o pianista, ressaltando a generosidade do colega. 


Fã declarado do saxofonista John Coltrane (1926-1967), Victor dizia em entrevistas que o mais importante na música era a sinceridade, que era essencial tocar com “feeling” (sentimento). “Ele era um cara muito recolhido, ensimesmado, que usava a música para colocar suas emoções para fora. Sua música era visceral, não tinha nada de controlada”, comenta Nelson.

Uma das composições mais conhecidas de Victor é a emotiva “Balada para Nádia”. Nelson e o saxofonista Roberto Sion a tocavam com frequência em shows durante a década de 1980, para homenagear o amigo (vítima de uma doença rara, a periarterite nodosa, espécie de inflamação arterial).

Essa balada estará no programa do concerto no festival de Ilhabela, ao lado de outras composições de Victor, como “Requiem for Trane” (homenagem a Coltrane), os baiões “Arroio” e “Pro Zeca” (dedicado a Zeca Assumpção) e as valsas jazzísticas “Waltzing” e “Waving”. Já as composições “Le Semeur” e “One for Scriabin” revelam as afinidades do saxofonista com a música clássica.

Para tocar esse repertório, Nelson comanda um quinteto com a mesma instrumentação do Os Cinco, com Assumpção (contrabaixo), Cássio Ferreira (sax alto e soprano), Daniel D’Alcântara (trompete e fluegelhorn) e Ricardo Mosca (bateria). O  conceito desse tributo nasceu no ano passado, quando o pianista e esses mesmos músicos se apresentaram no projeto Sesc Partituras, no Sesc Ipiranga, em São Paulo (veja o vídeo abaixo).

A sexta edição do festival Ilhabela in Jazz, que neste ano dividiu sua programação em dois finais de semana, exibe hoje (28/9) o septeto do baterista Cleber Almeida, o duo do trompetista italiano Paulo Fresu com o pianista espanhol Chano Dominguez e a orquestra Vintena Brasileira. Amanhã (sábado, 29/9), tocam o quarteto do acordeonista Renato Borghetti, o quarteto do trompetista norte-americano Ambrose Akinmusire e a banda Bixiga 70.

No próximo final de semana, a programação destaca o grupo do baterista Airto Moreira, o quinteto do guitarrista Fábio Gouvea e o Tributo a Victor Assis Brasil (sexta, 5/10). Na noite de encerramento (sábado, 6/10) tocam o trio do bandolinista Fábio Peron, o quinteto do gaitista Gabriel Grossi e a Hermeto Pascoal Big Band. Todos esses concertos serão gratuitos.

Mais informações em www.ilhabelainjazz.com.br






3º Sampa Jazz Fest: evento exibe os talentos de Carol Panesi e do grupo Meretrio

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                                                A trompetista e compositora Carol Panesi, no 3º Sampa Jazz Fest 


Primeiro, o show do Meretrio, original grupo instrumental paulista que vem criando há 14 anos um repertório bem pessoal e diversificado. Depois, a apresentação da talentosa multi-instrumentista e compositora carioca Carol Panesi, que lançou há pouco seu disco de estreia, “Primeiras Impressões”. 

Dois shows bem diferentes, mas igualmente saborosos, compuseram a segunda noite do Sampa Jazz Fest, na sexta-feira (21/9), em São Paulo. Sentada confortavelmente nas poltronas de uma das salas de cinema do Espaço Itaú, a plateia que se arriscou a ouvir atrações musicais ainda pouco conhecidas foi premiada com boas surpresas.

Emiliano Sampaio -- o líder, guitarrista e trombonista do Meretrio, que vive desde 2012 na Áustria, onde prepara seu doutorado em Composição para Orquestra Sinfônica -- não escondia sua satisfação por poder exibir sua música, novamente, na capital paulista.  A seu lado estavam os mesmos Gustavo Boni (baixo) e Luís André Gigante (bateria), cuja parceria de quase uma década e meia faz muita diferença.  

Como um bem-humorado cicerone, Emiliano (na foto ao lado) logo conquistou a plateia ao apresentar algumas de suas composições. Provocou sorrisos ao revelar que a lírica “O Casamento” nasceu após um sonho, no qual se viu casando a contragosto. Já ao introduzir a experimental “The Answer”, contou que a criou depois de ouvir uma composição do guitarrista britânico Fred Frith. “Eu adoraria ter composto aquela música. Então decidi fazer uma resposta a ela”, explicou.
    
Em meio a influências bem diversas, que vão do rock e da música pop ao blues e ao funk, o trio paulista não deixou de incluir dois arranjos de clássicos da música brasileira, que fazem parte de seu repertório há muito tempo: uma descontraída releitura do choro “Lamentos” (de Pixinguinha) e um arranjo bem livre de “Tico-tico no Fubá” (Zequinha de Abreu), com mudanças de andamento e improvisos de Emiliano e Gustavo.

Já o repertório autoral de Carol Panesi é todo ele calcado na rica diversidade da música brasileira: do sacudido “Forró do Marajó” ao samba “No Balanço da Léa” (dedicado à compositora e flautista paulistana Léa Freire), passando pelo nervoso choro “Ansiosa”, entre outras composições. No trio que a acompanha, destaque para o baixo de Jackson Silva e a bateria de Guegué Medeiros, também presentes em seu disco.

Não foi à toa que, durante o show, Carol agradeceu ao mestre Hermeto Pascoal, assim como ao baixista Itiberê Zwarg, seu mentor e parceiro na Itiberê Orquestra Família por mais de uma década. Suas composições têm personalidade, mas é fácil perceber nelas a influência da inventiva “música universal” de Hermeto. 

Já quase ao final da noite, a violinista, trompetista e vocalista tentou explicar, sem ser explícita, o vínculo de sua composição “A Cara Dela” com temas que têm mobilizado as mulheres, ultimamente. Mais incisiva, uma garota resumiu o assunto, ao gritar da plateia: “ele não!” (a palavra de ordem que vem sendo repetida por milhões de mulheres contra um inominável candidato à presidência do país, que já as ofendeu várias vezes). 

Com um sorriso, Carol concordou com a garota. Há quem pense que a música, assim como outras artes, são mero entretenimento, mas mesmo o fato de a música instrumental dispensar o uso de palavras não a impede de refletir sobre a nossa realidade. 

AsuJazz: 3ª edição do festival paraguaio reúne elenco musical de alta qualidade

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                                   The Baylor Project, atração do 3.º festival AsuJazz, em Assunção (Paraguai)

Na cena internacional do jazz, o Paraguai ainda não goza de prestígio musical equivalente ao de alguns de seus vizinhos, como o Brasil ou a Argentina. Mas o promissor programa da terceira edição do AsuJazz indica que esse festival sediado na cidade de Assunção já tem potencial para se destacar no circuito de eventos desse gênero.

Com oito palcos instalados em diversos locais da capital paraguaia (incluindo o Teatro Municipal Ignacio A. Pane, o Centro Paraguaio Japonês, o Mercado 4 e duas praças), o AsuJazz pretende transformar a cidade em um cenário capaz de proporcionar mais visibilidade ao jazz cultivado no país.

Com uma programação de alta qualidade e totalmente gratuita, o festival -- que segundo seus produtores “nutre-se de uma música que nasce da mestiçagem e que se define como uma oportunidade de mostrar um som com identidade local” -- vai oferecer atrações musicais de 10 países, assim como dezenas de shows com grupos e artistas locais.

Além de nomes consagrados mundialmente, como o guitarrista norte-americano Mike Stern (em uma parceria com o baterista Dave Weckl), o cantor e compositor brasileiro Ivan Lins, o saxofonista italiano Enzo Favata ou o trio vocal argentino Aca Seca, o AsuJazz também anuncia algumas atrações que podem surpreender a plateia local.

É o caso do The Baylor Project, grupo norte-americano comandado pelo casal Jean (voz) e Marcus Baylor (bateria), que lançou em 2017 o excelente álbum “The Journey”. Indicado ao prêmio Grammy de “melhor álbum de jazz vocal” e “melhor performance de R&B tradicional”, esse projeto transita com elegância e inventividade pelo jazz, pela soul music e pelo gospel.

Promissoras também são as apresentações da baterista cubana Yissi Garcia e sua Bandancha, do quarteto de sopros alemão Talking Horns, do saxofonista espanhol José Luis Gutiérrez e do violonista chileno Antonio Monasterio. Sem falar em conceituados músicos locais, como o harpista Juanjo Corbalán ou os guitarristas Gustavo Viera e Rolando Chaparro, entre outros.

A programação do AsuJazz, que é organizado pelo Município de Assunção e pelo Centro Cultural Paraguaio Americano, destaca também uma grande homenagem ao pianista e compositor Jorge “Lobito” Martínez (1952-2003), expoente do jazz no país. Inclui ainda uma mesa redonda sobre jornalismo musical, com a participação de jornalistas locais e de outros países que estarão cobrindo o evento.









Sampa Jazz Fest: terceira edição do evento terá Richard Bona, Hermeto Pascoal e Bixiga 70

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                                                                          O baixista e cantor camaronês Richard Bona

Jazz, música instrumental brasileira e ritmos africanos. Essa diversidade musical valoriza a programação do Sampa Jazz Fest, cuja terceira edição será realizada na próxima semana, de 20 a 22/9 (quinta a sábado), em São Paulo.

O baixista, cantor e compositor camaronês Richard Bona, já conhecido pelo público brasileiro, está entre as atrações principais desse evento, que destaca também o carismático Hermeto Pascoal e seu grupo, a big band do pianista e compositor Nelson Ayres e a banda paulistana Bixiga 70.

O elenco inclui ainda o Meretrio (do guitarrista e compositor paulista Emiliano Sampaio, que vive na Áustria há seis anos), o quinteto da cantora e compositora paulista Dani Gurgel, a multi-instrumentista e compositora carioca Carol Panesi e o saxofonista brasiliense Esdras Nogueira.

Com curadoria de Daniel Nogueira (saxofonista das bandas Bixiga 70 e Projeto Coisa Fina), o Sampa Jazz também vai promover uma roda de negócios, com diretores de festivais, produtores de casas de espetáculos e outros profissionais do mercado musical.

A programação se divide em dois palcos da cidade de São Paulo. No Espaço Itaú de Cinema, apresentam-se: Nelson Ayres Big Band e Dani Gurgel Quinteto (no dia 20/9); Meretrio e Carol Panesi (dia 21/9). O festival termina na Casa das Caldeiras (dia 22/9), com Richard Bona, Hermeto Pascoal, Bixiga 70 e Esdras Nogueira.

Mais informações em www.sampajazzfest.com.br

Isca de Polícia: banda paulistana lança outro álbum com influências de Itamar Assumpção

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Quem foi ao teatro do Sesc Pompeia, no último fim-de-semana, pôde comprovar que a influência do grande Itamar Assumpção (1949-2003) segue viva e inspiradora. Nos shows de lançamento do álbum “Isca Vol. 2: Irreversível” (selo Elo Music), a banda Isca de Polícia exibiu mais uma inédita coleção de canções marcadas pela estética musical e poética desse compositor, expoente da geração que ficou conhecida como Vanguarda Paulista. 

Formada atualmente por Paulo Lepetit (baixo elétrico), Luiz Chagas e Jean Trad (guitarras), Suzana Salles e Vange Milliet (vozes e vocais), além dos bateristas Marco da Costa (só no disco) e Vitor Cabral, a Isca de Polícia acompanhou Itamar em diversas fases ao longo dos anos 1980 e 1990. Mesmo com total credibilidade, essa banda paulistana só decidiu lançar em 2017 seu primeiro disco autoral (“Isca Vol. 1”).

Lepetit, o compositor mais ativo da banda, também é o autor mais frequente nas 10 faixas do novo álbum, cuja produção ele assina com Vange. Como no disco anterior, o repertório inclui parcerias do baixista com outros parceiros e admiradores de Itamar, como Arrigo Barnabé (“Consciência Contemporânea”, que ironiza o fascínio por procedimentos estéticos), Chico César (“Bolino”, que alfineta o conservadorismo da igreja católica), Alzira E (a romântica “Meus Olhos”) e Zélia Duncan (a funkeada “Se Não Tô Bem”).

Duas das canções levam a assinatura do próprio Itamar. “Beleléu Via Embratel” (composta para concorrer em um festival, nos anos 1980, mas não gravada até agora) lembra as clássicas “Fico Louco” e “Nego Dito”. Já a contagiante “Tomara” (parceria com Vange) soa como um adequado mantra para os pesados dias em que vivemos. “De morno pra beijo ardente /Depressão pra alto astral /Fênix onde doente /É o que desejo for all /Tomara seja pra sempre /É o que desejo for all”, ambicionam os versos.

Faixa inicial do álbum, a dançante “Danou-se” (de Lepetit e Luiz Chagas) também foi escolhida para abrir o show de lançamento, que inclui no repertório alguns sucessos de Itamar. Aliás, um show profissionalíssimo, que tem tudo – saborosos arranjos musicais, figurinos criativos e (o mais importante) excelente performance das vocalistas e dos músicos da banda – para fazer sucesso no circuito dos festivais de música ou em outros palcos pelo país.





Sesc Jazz: banda mineira iconili traz sua música instrumental dançante a São Paulo

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                                                 A banda mineira Iconili, em show no Sesc Pompeia, em São Paulo

Acostumados a se apresentarem para plateias predominantemente jovens, em festivais, teatros ou casas noturnas pelo país, os músicos da banda Iconili encontraram um público inédito em sua trajetória, no show gratuito e ao ar livre que fizeram durante o último dia de programação do festival Sesc Jazz. Naquela ensolarada tarde de domingo (2/9), o ambiente era bastante familiar no deck do Sesc Pompeia. Sentados, vários pais e mães tentavam relaxar um pouco, de olho em suas crianças, que aproveitavam o espaço amplo para se divertirem, correndo.

Depois de uma bem-sucedida carreira de 10 anos, durante a qual lançou três discos, essa banda de Belo Horizonte (MG) vive um período de transição. Sua formação – hoje com 11 integrantes, incluindo um naipe de instrumentos de sopro – chega a lembrar uma big band, mas sua música tem muito pouco em comum com as tradicionais orquestras do jazz. Idealizada como um coletivo musical em que todos participam ativamente, sem líderes assumidos, a Iconili já se definiu como um “laboratório de experimentação sonora”.

Com novos integrantes, a banda mineira vem preparando desde o ano passado o seu quarto álbum, ainda em processo de gravação. Durante esse período, as apresentações têm servido para testar o efeito do material inédito, no contato direto com as plateias. Esse processo de criação revela o objetivo do grupo: fazer uma música de essência instrumental, calcada em “grooves” que levem a plateia a dançar, mas que também possa ser ouvida com prazer, sem longos improvisos ou demonstrações de virtuosismo instrumental.

No repertório apresentado agora, já se pode sentir que as influências iniciais do afrobeat e do rock progressivo, marcantes nos primeiros anos da banda, abrem espaço para uma fase de ascendência mais brasileira. Claro que a banda não deixou de incluir no repertório composições de seus discos anteriores, que parte da plateia logo reconheceu, como as contagiantes “Jorge Botafogo” (do álbum “Piacó”, de 2015) e “Mulatu” (do EP “Tupi Novo Mundo”, de 2013, recém-relançado em vinil), que ganharam outros timbres, nos atuais arranjos.

Entre as novas composições, chama atenção “Iris”, cuja letra aborda uma temática bastante atual: as diferenças entre a visões de mundo da mulher e do homem. No show, essa canção marca, simbolicamente, as recentes chegadas da percussionista Chaya Vazquez e da vocalista Josi Lopes, que agora divide o centro do palco com os sopros de Henrique Staino (sax tenor e soprano), Lucas Freitas (sax barítono) e João Machala (trombone).

“Tem mineiro aqui, gente?”, brincou Josi, quase ao final do show, mas àquela altura a plateia paulistana já tinha sido conquistada pelos arranjos instrumentais da banda. Vale notar, aliás, que as crianças foram as primeiras a cair na dança. Pelo show que mostrou no palco do Sesc Jazz, a Iconili parece estar no caminho certo para ampliar ainda mais seu fã-clube. E assim desmente da melhor maneira a velha falácia de que a música instrumental só pode ser apreciada por poucos.


(Resenha escrita a convite da produção do festival Sesc Jazz. Leia outras críticas de shows desse evento, no site do Sesc SP: https://www.sescsp.org.br/online/revistas/tag/12411_CRITICAS+SESC+JAZZ)

Sesc Jazz: a poesia engajada e a música negra do saxofonista Archie Shepp

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                                                       Archie Shepp, cantando no festival Sesc Jazz, em São Paulo 

Vanguardista, radical, revolucionário. Adjetivos como esses são utilizados com frequência ao se traçar o perfil de Archie Shepp – um dos músicos mais ativos e intelectualizados da geração que, na década de 1960, cultivou e difundiu a rebeldia sonora e política do free jazz, ao lado de Cecil Taylor, John Tchicai e Don Cherry, entre outros. Acrescente-se também o fato de Shepp ter sido discípulo e parceiro eventual do messiânico John Coltrane (1926-1967), o jazzista mais cultuado e imitado nas últimas décadas. Pronto, o mito está completo.

Graças a essa imagem divulgada há décadas, qualquer um se surpreende ao ver e ouvir pela primeira vez esse músico, poeta e dramaturgo norte-americano. Na noite de encerramento do festival Sesc Jazz (2/9), na plateia do teatro do Sesc Pompeia, alguns certamente não imaginavam que poderiam ouvir o radical saxofonista tocar uma canção tão romântica como “The Stars Are in Your Eyes” (de sua autoria), quase em ritmo de bossa nova, incluindo uma breve citação de “Nature Boy” (de Eden Ahbez), antigo sucesso do cantor Nat King Cole (1919-1965).

Os mais familiarizados com a obra e a trajetória musical de Shepp sabem que seu ativismo político – na luta pelos direitos civis dos negros ou contra a desigualdade social, entre outras causas – não o impediram de adotar, já na década de 1970, um repertório bem amplo, que inclui diversas vertentes da música negra norte-americana. Para isso contribuiu sua carreira paralela de professor de Estudos Afro-Americanos, em universidades de Massachusetts e Buffalo. Um exemplo: “Goin’ Home” (gravado em 1977) e “Trouble in Mind” (1980)”, álbuns que Shepp dedicou ao gospel, ao blues e ao rhythm & blues, em inspirados duos com o pianista Horace Parlan (1931-2017), são preciosidades musicais que merecem ser descobertas pelos ouvintes de hoje.

Muito bem acompanhado pela percussão de Kahil El’Zabar e seu Ritual Trio, que inclui o baixista Jamaladeen Tacuma e o pianista Henri Morisset, Shepp ofereceu à plateia, praticamente, uma aula sobre a diversidade da música afro-americana. Soprando seu roufenho sax tenor, abriu a noite com o bebop “Hope #2”, que compôs para homenagear o pianista Elmo Hope (1923-1967). Tocou “Don’t Get Around Much Anymore” (de Duke Ellington), com todo o swing que esse clássico da era das big bands pede. Mais inusitada foi a lenta versão de “Summertime” (de George Gershwin), ao sax soprano, com El’Zabar dedilhando uma kalimba (pequeno teclado de origem africana para ser tocado com os polegares).

Já o anunciado tributo a Coltrane não chegou a entusiasmar, talvez porque algumas das músicas escolhidas não são tão representativas de sua obra e ainda foram espalhadas ao longo do show, em vez de formarem um bloco. A serena balada “Naima” ganhou uma versão pouco feliz, com Shepp borrando a melodia, demasiadamente, ao sax tenor. A releitura da romântica “I Want to Talk About You” (de Billy Eckstine) seguiu pelo mesmo caminho, mas foi salva pelo lírico solo de Morisset, ao piano, assim como pelos vocais de Shepp, com seu vozeirão de barítono. Coltrane foi lembrado também por “Cousin Mary”, um animado blues de sua autoria, que Shepp chegou a gravar com El’Zabar e seu Ritual Trio, no álbum “Conversations” (1999).

Entre altos e baixos, o clímax do show veio com “Revolution”, dramática composição baseada em um poema que Shepp dedicou à sua avó, Mama Rose, que viveu na época da escravidão. Acompanhado pelo cajón (instrumento de percussão que consiste em uma caixa de madeira, usado originalmente pelos escravos africanos, no Peru) de El’Zabar, com um ritmo tribal, Shepp expôs o tema com o sax soprano. E emocionou a plateia, ao vocalizar os versos do poema de maneira bem teatral, algo entre um canto falado e um rap. Em nenhum outro momento dessa noite, o músico radical, o poeta engajado e o ativista político estiveram tão próximos.


(Resenha escrita a convite da produção do festival Sesc Jazz. Leia outras críticas de shows desse evento, no site do Sesc SP: https://www.sescsp.org.br/online/revistas/tag/12411_CRITICAS+SESC+JAZZ)

Sesc Jazz: o pianista Vijay Iyer e suas reflexões musicais sobre os dias de hoje

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                                                                     O pianista Vijay Iyer e o baixista Stephan Crump

Os paulistanos que tiveram a oportunidade de ouvir pela primeira vez o quarteto de Vijay Iyer, dez anos atrás, no extinto festival Bridgestone Music, dificilmente se esqueceram do impacto causado por aquela música tão inventiva e original. Se, na década passada, esse pianista e compositor norte-americano de ascendência indiana era ainda apontado como uma promissora revelação na cena jazzística, agora ele retorna consagrado para suas apresentações no Sesc Jazz.

Entre muitas vitórias em enquetes das principais publicações especializadas e prêmios já conquistados por Iyer, os críticos da influente revista “Down Beat” lhe concederam uma inédita “quíntupla coroa” (jazzista do ano, pianista do ano, disco do ano, grupo do ano e compositor emergente), em 2012. Seu álbum mais recente, o elogiado “Far from Over” (ECM, 2017), chegou até a figurar na lista de melhores discos do ano da revista “Rolling Stone”, voltada para o rock e a música pop.

Ao apresentar seu sexteto à plateia da comedoria do Sesc Pompeia, no show de sábado (1°/9), Iyer comentou que já toca com essa formação há seis anos. Entre seus parceiros atuais está o contrabaixista Stephan Crump (o único que o acompanhou ao Brasil, em 2008), cuja enérgica e contagiante condução rítmica impulsiona os improvisos do grupo. O grupo inclui ainda o trompete e o flugelhorn eletrificado de Graham Haynes (filho do grande baterista Roy Haynes), o sax tenor de Mark Shim, o sax alto de Steve Lehman e a bateria de Jeremy Dutton.

Basta ouvir alguns minutos de música para se perceber o porquê de Iyer ter escolhido esses instrumentistas como parceiros. Criativos nas improvisações, assim como primorosos em termos técnicos, os cinco contribuem ativamente para que as composições do pianista possam crescer, ganhar mais intensidade e texturas sonoras. Como outros grandes compositores que já contaram com grupos estáveis, Iyer sabe que suas partituras podem alçar voos mais altos, se conceder liberdade para que os parceiros expressem suas personalidades musicais.

Ao introduzir sua bela balada “For Amiri Baraka” (dedicada ao poeta e ativista negro, inicialmente conhecido como LeRoi Jones), Iyer homenageou também Randy Weston, um dos músicos de jazz que o influenciaram. Morto horas antes, aos 92 anos, esse grande pianista e compositor chegou a se apresentar naquele mesmo palco do Sesc Pompeia, em 2014. O duplo tributo musical de Iyer a esses artistas que o inspiraram incluiu também sua emotiva composição “Segment for Sentiment”.

Quem já conhece “Far from Over”, álbum que serviu de base para o repertório desse show, logo notou que as composições gravadas ganharam novas cores e mais intensidade sonora, no palco. Como na funkeada “Nope”, composição em que Iyer troca o piano acústico pelo elétrico, com destaque especial para a bateria de Dutton. Em “Down to the Wire”, o sexteto chegou ao clímax da noite. Num crescendo, o dramático tema apresentado pelo pianista abriu espaço para catárticos improvisos do trompetista e dos saxofonistas, que pareciam gritar, clamar, protestar com seus instrumentos.

Vale lembrar que a obra musical de Iyer é engajada socialmente. Assim como a influência do jazz de vanguarda de Andrew Hill, Muhal Richard Abrams e Cecil Taylor convive em sua música com outras fontes, como o bebop de Thelonious Monk e Bud Powell, a música indiana ou o minimalismo, fenômenos atuais, como a discriminação racial ou a desigualdade social, também já inspiraram algumas de suas composições. Iyer acredita que sua música deve refletir sobre a época em que vivemos, sem ser panfletária.

“Voltem amanhã. O show vai ser diferente”, convidou o pianista, com um sorriso de quem sente que fez bem o seu trabalho, depois que os aplausos eufóricos da plateia o obrigaram a voltar ao palco, com seus parceiros, para um bis. Se os ingressos do último show de Vijay Iyer no Sesc Jazz já não estivessem esgotados, alguns desses fãs certamente voltariam.


(Resenha escrita a convite da produção do festival Sesc Jazz. Leia outras críticas de shows desse evento, no site do Sesc SP: https://www.sescsp.org.br/online/revistas/tag/12411_CRITICAS+SESC+JAZZ)

 

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