Sesc Jazz: o encontro autoral dos guitarristas Mike Moreno & Guilherme Monteiro

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                                                          Os guitarristas Mike Moreno (à esq.) e Guilherme Monteiro 

A plateia do Sesc Sorocaba presenciou um inédito encontro musical, na quinta-feira (30/8), que será repetido neste sábado (1.º/9), em Araraquara. Mike Moreno e Guilherme Monteiro, guitarristas e compositores que convivem há quase duas décadas na competitiva cena do jazz em Nova York, uniram forças à frente de um quarteto, em mais uma noite do festival Sesc Jazz.

Uma parceria como essa seria pouco provável, não fosse o interesse que o norte-americano tem demonstrado pela música brasileira. Apontado pela crítica especializada como um dos guitarristas mais criativos do jazz na última década, Moreno já se apresentou em outros importantes festivais brasileiros do gênero, como o Amazonas Jazz, em Manaus (AM), ou o Savassi Festival, em Belo Horizonte (MG).

Não causaria surpresa se ele e Monteiro – carioca que vive há 18 anos em Nova York, onde já tocou com jazzistas do primeiro time, além de integrar a original banda Forró in the Dark – tivessem escolhido um repertório de clássicos do jazz e da música brasileira. Mas os dois guitarristas preferiram encarar o desafio de montar um repertório mais autoral e colaborativo, contando também com os talentos do baixista Alberto Continentino e do baterista Vitor Cabral.

O quarteto abriu o show com “Peace”, uma divagativa composição de Monteiro, bem adequada para que a banda e a plateia entrassem no clima. “Lotus”, faixa-título do álbum que Moreno lançou no final de 2015, tocada em seguida, é um exemplo perfeito do estilo de composição que ele vem desenvolvendo. Vários de seus temas, baseados em células melódicas simples e repetidas com variações sutis, levam o ouvinte a uma espécie de estado de meditação.

Em seus improvisos, o guitarrista texano revela uma abordagem essencialmente melódica. Suas frases são simples e limpas, permitindo se ouvir cada nota com clareza. Embora seja um músico bastante técnico, Moreno não usa sua destreza e fluidez no instrumento para se exibir. Seus solos, às vezes hipnóticos, parecem buscar belezas escondidas nas harmonias das composições.

Além da técnica apurada, Monteiro também demonstra uma sofisticada bagagem harmônica. Seu fraseado, em alguns improvisos, é bastante jazzístico. Talvez por isso, curiosamente, sua composição “Long Road to Paradise” chamou mais atenção. Praticamente uma canção sem versos, ela foi apresentada com uma alusão aos Beatles. “Costumo dizer que essa é a minha ‘Blackbird”, brincou o compositor.

Claro que, mesmo em um show de repertório majoritariamente autoral, Moreno não deixaria de reverenciar a música brasileira. Com sua maneira tão pessoal de burilar melodias, tocou “Outubro” (de Milton Nascimento e Fernando Brant), em uma bela e dramática versão, com destaque para as intervenções de Cabral e Continentino.

Mas a surpresa da noite foi reservada àqueles que, já ao final do show, bateram palmas insistentemente até que os músicos retornassem ao palco. Falando em um razoável português, Moreno contou que veio a conhecer “A Flor e o Espinho”, o clássico samba-canção de Nelson Cavaquinho e Guilherme de Brito, em 2009, quando uma fã de Manaus o presenteou com um disco da cantora Elizeth Cardoso. Preciso dizer que esse inusitado bis foi um dos momentos mais emocionantes da noite?


(Resenha escrita a convite da produção do festival Sesc Jazz. Leia outras críticas de shows desse evento, no site do Sesc SP: https://www.sescsp.org.br/online/revistas/tag/12411_CRITICAS+SESC+JAZZ)


Sesc Jazz: o raro privilégio de ouvir o piano de Dom Salvador, mestre do samba-jazz

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A multidão formada em frente ao teatro do Sesc Pompeia, logo após o show deste sábado (25/8), foi reveladora. Fãs de diversas gerações, amigos e colegas do pianista e compositor Dom Salvador queriam cumprimenta-lo, abraça-lo, pedir um autógrafo, tirar fotos com ele ou apenas chegar mais perto do grande músico brasileiro, que só se apresenta por aqui eventualmente.

Fosse o Brasil um país que valoriza a cultura, talvez ele não tivesse se radicado nos Estados Unidos, onde vive desde 1973. Salvador chegou a passar 30 anos sem tocar em palcos brasileiros – não por falta de vontade sua. Fosse o nosso país um lugar que dá valor à criação dos artistas de verdade, não às celebridades e aos modismos passageiros, teríamos acompanhado mais de perto a música original desse paulista nascido na cidade de Rio Claro.

Sorte dos norte-americanos que podem vê-lo tocar quando quiserem. Salvador se apresenta há mais de 40 anos, cinco vezes por semana, no River Café – um sofisticado restaurante às margens do East River, na cidade de Nova York. Aos seus fãs brasileiros restam oportunidades raras, como as proporcionadas agora pelo festival Sesc Jazz, que nos ofereceu o prazer de ouvir novamente esse mestre do samba-jazz.

“Desta vez eu trouxe uma coisa mais pesada”, brincou Salvador, referindo-se ao fato de já ter tocado com formações menores, no mesmo palco do Sesc Pompeia. Próximo de completar 80 anos (a data é 12/9), o discreto pianista não fez menção a essa efeméride durante o show de ontem, mas alguns momentos especiais de sua trajetória musical foram lembrados por composições que exibiu com seu ótimo sexteto, formado por Sérgio Barrozo (contrabaixo), Mauricio Zottarelli (bateria), Rodrigo Ursaia (sax e flauta), Daniel D'Alcântara (trompete e flugelhorn) e Jorginho Neto (trombone).

Salvador compôs o samba-jazz “A Chegada” a pedido do inovador baterista Edison Machado (1934-1990), seu colega no Rio 65 Trio. Formado em meados dos anos 1960, esse grupo também incluía o talento de Barrozo. Outro sucesso desse cultuado trio (cujo cinquentenário foi comemorado três anos atrás, em um badalado concerto no Carnegie Hall, em Nova York), o contagiante samba-jazz “Meu Fraco é Café Forte” também foi bastante aplaudido pela plateia, no show de ontem.

Com a emotiva balada “Para Elis”, composição que exibe a faceta mais lírica da obra de Salvador, este homenageou a cantora Elis Regina (1945-1982), com a qual chegou a gravar e a se apresentar em programas de TV. “Salvation Army”, outra encantadora composição que parece inspirada na simplicidade de melodias africanas, remete à parceria de Salvador com Dom Um Romão (1925-2005), outro grande baterista.

Nessa breve panorâmica que o compositor traçou de sua obra não poderia faltar também uma menção a seu pioneiro grupo Abolição, que antecipou fusões do samba com a black music norte-americana, no início dos anos 1970. Passadas quatro décadas, a releitura do samba-soul “Moeda, Reza e Cor” ainda soa bem contemporânea, especialmente nesta época em que novas gerações têm descoberto a clássica soul music.

Depois de uma noite musical tão inspiradora, fica a torcida para que os fãs de Dom Salvador não precisem esperar por seu 90.º aniversário, para poder ouvi-lo novamente em palcos brasileiros. 



(Resenha escrita a convite da produção do festival Sesc Jazz. Leia outras críticas de shows desse evento, no site do Sesc SP: https://www.sescsp.org.br/online/revistas/tag/12411_CRITICAS+SESC+JAZZ)



Chucho Valdés e Gonzalo Rubalcaba: pianistas cubanos tocam em duo, em São Paulo e Rio

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                                                             Chucho Valdés e Gonzalo Rubalcaba / Foto de divulgação

Esse é um encontro musical com todo o potencial para ser lembrado no futuro. Mestres do piano admirados internacionalmente, Chucho Valdés e Gonzalo Rubalcaba são representantes da riqueza e da diversidade da música cubana, além de cultivarem há décadas o espírito inventivo e a modernidade do jazz. Já exibido em outros países, esse duo de pianos chega neste mês a palcos de São Paulo e Rio de Janeiro.

Filho do lendário pianista Bebo Valdés, Chucho, hoje com 76 anos, despontou na cena musical de seu país ainda na década de 1960, tocando com a Orquesta Cubana de Música Moderna. Em 1973, em parceria com o saxofonista Paquito D’Rivera, fundou a influente banda Irakere. Com ela destilou por mais de duas décadas fusões de diversas vertentes da música tradicional cubana com o jazz. Desde o final dos anos 1990, já como solista, tem se apresentado pelo mundo com o mesmo brilho.

Também descendente de uma destacada família musical de Cuba, Rubalcaba tem 55 anos. Estudou música clássica e, depois de tocar com várias formações e orquestras da ilha, formou em 1983 o Proyecto, seu grupo de jazz afro-cubano. Apadrinhado pelo jazzista Dizzy Gillespie, logo passou a frequentar festivais internacionais. O contrato com o conceituado selo Blue Note permitiu que gravasse mais de uma dúzia de discos, com destaque para suas parcerias com o baixista Charlie Haden e o baterista Paul Motian.

Além da admiração mútua, embora pertençam a gerações diferentes, Valdés e Rubalcaba compartilham afinidades. “O fato de termos referências musicais similares torna mais fácil fazermos música juntos. A diferença de gerações não impede que possamos nos sentar para conversar e trocar lembranças de orquestras, de músicos, de discos, de lugares que frequentamos”, comenta Rubalcaba, que sempre creditou a influência de Valdés, em sua formação. “Nossa intenção – Chucho bem antes de mim – foi buscar um lugar mais amplo para o folclore afro-cubano. Creio que esse esforço no sentido de introduzir nossas raízes musicais num contexto mais universal é o que mais nos aproxima”.

“Gonzalo começou ouvindo pianistas de gerações anteriores à dele. Eu era um desses pianistas, mas hoje ele é muito diferente de mim”, observa Valdés, que acompanhou a trajetória do brilhante colega desde muito cedo. “Gonzalo tem um estilo mais contemporâneo, bastante avançado, e eu mantenho a linha musical que sempre adotei. Seguimos por caminhos diversos”.

Além da profunda ligação que ambos têm com a música afro-cubana e com o jazz, outra afinidade os aproxima. “A música sul-americana também nos interessa muito, especialmente a música brasileira, cuja riqueza rítmica e melódica é uma das maiores de nosso planeta. Aliás, poucos anos atrás, me diverti muito tocando com João Donato, que em minha opinião é um dos grandes músicos brasileiros, ao lado de Tom Jobim”, aponta Valdés.

Rubalcaba concorda com o parceiro. “Cuba, assim como o Brasil, é uma nação onde se produz música de maneira natural, constantemente. A música tem um poder muito forte, inclusive de renovação, nesses países. É como uma espécie de bênção que os músicos cubanos e brasileiros receberam. É quase impossível imaginar Cuba ou o Brasil sem a música”, reflete o pianista.

A intimidade da dupla com a cultura e a religião afro-cubana também determinou a escolha do nome – “Transe” – para esse projeto que os une pela primeira vez. “Por esse vínculo que Chucho e eu compartilhamos me pareceu que o conceito de transe seria apropriado para definir o nosso encontro. Um estado de transe é um estado de elevação”, explica Rubalcaba. “Essa condição de transição a um estado superior de consciência e de imaginação está presente em uma parte importante da prática religiosa da essência folclórica afro-cubana”, acrescenta.

Para quem não é familiarizado com a linguagem do jazz, Valdés dá uma dica valiosa aos receosos de não conseguirem acompanhar a evolução dos improvisos da dupla: esse concerto é, praticamente, um bate-papo entre amigos. “É isso que fazemos com nossos pianos: uma conversa musical, com perguntas e respostas. Trata-se de um diálogo bonito e frequentemente bem-humorado, que não tem nada a ver com algum tipo de competição entre nós”, avisa o pianista.

“A ideia de conversa está muito ligada ao que conhecemos por improvisação, na música”, continua Rubalcaba. “Entre amigos se fala sobre um mesmo tema muitas vezes. E cada vez que se volta a esse tema, tentamos trazer algo novo à conversa, buscamos evoluir nesse tema – procuramos um novo acordo, se possível. Na improvisação musical acontece algo semelhante porque, afinal, estamos tratando de interação, de comunicação”.

Sobre a possibilidade de registrar esses encontros musicais em um disco, Rubalcaba diz que ainda não se decidiram. “Deixar algo registrado desse projeto parece ser um passo natural, mas neste momento ainda não temos claro quando faremos isso. Temos tocado bastante, nos EUA, na Europa e na Ásia. E o concerto em São Paulo será o primeiro na América do Sul. Num projeto como esse, com apresentações ao vivo, me parece ser mais fácil ir depois ao estúdio para fazer o disco, porque você já conhecerá bem a música. Assim, o que for registrado terá uma validade maior”.

Os dois não costumam divulgar o programa de seus concertos, portanto também deverá ser assim desta vez. “Preferimos decidir o que vamos tocar na hora, para manter o frescor da música”, justifica Valdés. Para os mais curiosos, pode-se ao menos dizer que são consideráveis as chances de se ouvir “El Manisero”, a popular canção cubana de Moisés Simons, ou “Caravan”, clássico do repertório da big band de Duke Ellington. Ambas frequentaram o repertório de concertos anteriores da dupla, em meio a composições próprias ou citações eruditas de Chopin, Gershwin e Manuel de Falla, durante os improvisos.

No Brasil, as apresentações de Valdés e Rubalcaba farão parte da segunda edição do projeto Mais Piano, com patrocínio da Rede. Tanto em São Paulo (dia 29/8, na Sala São Paulo; dia 2/9, com entrada franca, no Parque do Ibirapuera) como no Rio de Janeiro (dia 31/8, na Sala Cecília Meireles), esses concertos terão mais uma atração à altura dos protagonistas. 


Quem vai abrir o programa dessas noites é o talentoso André Mehmari, pianista, compositor e arranjador que, em apenas duas décadas de carreira, já conquistou um lugar entre os grandes instrumentistas brasileiros. Como solista, lançou oito álbuns e já se apresentou em alguns dos mais conceituados festivais de jazz brasileiros, assim como no exterior.

(Texto publicado no caderno de cultura do "Valor Econômico", em 24/8/2018)





Sesc Jazz: Renee Rosnes mostra como liderar grandes músicos sem perder a ternura

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                                   Renee Rosnes, com os músicos Lewis Nash, Steve Nelson e Peter Washington

Renee Rosnes é uma líder generosa. No seu show de ontem (23/8), em São Paulo, na oitava noite do festival Sesc Jazz, a pianista canadense apresentou várias vezes o vibrafonista Steve Nelson, o baterista Lewis Nash e o contrabaixista Peter Washington, deixando claro que divide com seus talentosos parceiros os méritos da música criativa que fazem juntos.

Aliás, quem entrou na comedoria do Sesc Pompeia sem saber o que iria ouvir, pode ter ficado com uma primeira impressão errônea. Instalado no centro do palco, bem à frente, o vibrafone de Nelson ganhou mais destaque visual do que o piano, mas as originais composições de Renee, que dominam o repertório do show, logo confirmam seu papel de liderança.

Discreta, a pianista comanda os músicos do grupo mais com olhares do que por meio de gestos. Na hora dos improvisos, ela abre a cada um dos parceiros espaço equivalente ao que desfruta. Renee sabe que o jazz é música colaborativa. Oferecer liberdade para contribuições dos parceiros pode enriquecer mais ainda o material de sua autoria.

Boa parte do repertório da noite foi extraído dos dois álbuns mais recentes da pianista e compositora: “Beloved of the Sky”, lançado há quatro meses, e “Written in the Rocks” (2016). Vale notar que, ao gravar esses discos, Renee comandou quintetos que incluíram saxofonistas. Sem eles no atual quarteto, suas composições ganharam outra sonoridade, que enfatiza a relação do piano com o vibrafone de Nelson.

Não é à toa que ela inclui no repertório do show a bela “Now”, composição do mestre do vibrafone Bobby Hutcherson (1941-2016), do qual Nelson é um brilhante discípulo. Além de ter feito parte do grupo de Hutcherson, Renee já declarou em entrevistas que adora a sonoridade produzida por vibrafone e piano, tocados simultaneamente.

Foi com essa sonoridade bem particular que a pianista exibiu o tema de sua excitante composição “Elephant Dust” – inspirada em episódio de sua infância, quando descobriu ser alérgica ao acariciar um elefante de circo. Piano e vibrafone também soaram juntos, além de comporem criativos contrapontos, na suingada “From Here to a Star”.

Outras composições da pianista, como a a evocativa “Galapagos”, a lírica “Written in the Rocks” ou o samba “Rhythm of the River” (este tocado depois de a plateia exigir um bis), revelam algo recorrente em sua obra: muitas de suas composições são inspiradas em elementos da natureza.

Quase ao final do show, Renee também demonstrou seus dotes de arranjadora. Anunciou “Tin Tin Deo”, clássico do jazz afro-cubano (parceria do trompetista Dizzy Gillespie com o percussionista Chano Pozo), mas sua versão é bem diferente das que já ouvimos. Lembra mais uma releitura ao estilo percussivo de Horace Silver (1928-2014), um dos grandes pianistas e compositores do jazz que a influenciaram.

Num momento em que se discute tanto as políticas de gênero, essa admirável pianista e compositora deixa uma lição para as musicistas que buscam seu merecido espaço no universo do jazz, ainda majoritariamente masculino. Ao liderar os três grandes músicos de seu grupo, Renee toca com eles de igual para igual, sem perder a ternura.


(Resenha escrita a convite da produção do festival Sesc Jazz. Leia outras críticas de shows desse evento, no site do Sesc SP: https://www.sescsp.org.br/online/revistas/tag/12411_CRITICAS+SESC+JAZZ)


Sesc Jazz: improvisos e humor de Stefano Bollani conquistam a plateia do festival

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Uma das melhores experiências que um festival de música pode proporcionar a uma plateia é a de ser surpreendida pela performance de um artista que ela ainda desconhece. Os sorrisos nos rostos da plateia do Sesc Jundiaí, ao final do show do pianista Stefano Bollani, eram transparentes: muitas daquelas pessoas nem imaginaram, ao saírem de casa, que se emocionariam ou mesmo se divertiriam tanto naquela noite de sábado, que começou com um belo show do trio do pianista Salomão Soares.

Bollani vem cultivando há décadas uma prolífica paixão pela música brasileira, depois de descobrir a bossa nova quando ainda era adolescente. O resultado mais recente dessa afinidade musical é seu álbum “Que Bom” (já lançado no Brasil pelo selo Biscoito Fino), com um delicioso repertório de composições próprias, que ele exibiu em sua apresentação no festival Sesc Jazz.

“Vou tocar a música de um compositor contemporâneo, muito vivo, que sou eu”, brincou, falando à plateia, em bom português. Quem já o conhecia e teve a chance de apreciar alguns de seus discos sabe que esse jazzista nascido em Milão (ele costuma dizer que não se considera um cidadão italiano, propriamente, por acreditar que a divisão do mundo em países é artificial) jamais reproduz nos palcos o que registrou nos estúdios de gravação.

Composições como o baião “Ho Perduto il Mio Pappagalino” (inspirada pela lembrança de um periquito que fugiu de sua casa, quando ainda era menino), a quase bossa “Uomini e Polli” (tema com marcante influência de João Donato), assim como o contagiante samba “Galápagos”, ganharam um tempero mais percussivo no show. Em alguns momentos, como no samba-jazz “Olha a Brita”, Bollani chega a percutir as cordas e o próprio corpo do piano com as mãos.

“Se vocês não gostaram do que tocamos aqui, sugiro que ouçam o disco, porque ele está muito melhor”, brincou novamente, já quase ao final do show. Ele sabe que, em seu caso, não se trata de uma versão ser melhor do que a outra. São apenas diferentes – e no palco a música costuma ganhar um calor que, muitas vezes, não existe nas gravações. Mas Bollani é um músico carismático e engraçado, daqueles que jamais perdem uma oportunidade de fazer sua plateia sorrir.

Bem acompanhado pela percussão de Armando Marçal, pela bateria de Thiago da Serrinha e pelo contrabaixo de João Rafael (trio que em alguns momentos soa como uma compacta escola de samba), Bollani também oferece à plateia boas surpresas, em seus improvisos. Como uma divertida releitura de “Cheek to Cheek” (de Irving Berlin), clássico da canção norte-americana, em andamento acelerado.

Mais inusitada foi a citação da canção-manifesto “Tropicália” (de Caetano Veloso), ao improvisar o clássico choro “Segura Ele”. “Eu gostaria de ter composto essa música. Pixinguinha e eu tivemos a mesma ideia, mas ele nasceu antes de mim”, disparou Bollani, com a maior cara de pau, arrancando risos da plateia.

Ao voltar ao palco para atender os pedidos de bis, cantou a lírica “La Nebbia a Napoli” (“Caetano Veloso não está aqui, então eu mesmo vou canta-la”, brincou), mas ainda reservou outra surpresa. Tocou o choro “Tico-tico no Fubá” (de Zequinha de Abreu), convidando a plateia a participar com palmas, em uma versão tão maluca e hilariante, que chegou a lembrar as estripulias de Chico, o pianista dos comediantes irmãos Marx, nas telas do cinema. A plateia de Jundiaí não vai esquecer dessa noite tão cedo.


(Resenha escrita a convite da produção do festival Sesc Jazz. Leia outras críticas de shows desse evento, no site do Sesc SP: https://www.sescsp.org.br/online/revistas/tag/12411_CRITICAS+SESC+JAZZ)



Sesc Jazz: trompetista Charles Tolliver cultiva legado musical do bebop e do hard bop

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A boina preta, em estilo militar europeu, é sugestiva. O trompetista e compositor norte-americano Charles Tolliver nem precisa tocar uma nota para que sua afinidade musical com a revolucionária geração do bebop (responsável pela introdução do jazz em sua fase moderna) seja notada por quem o vê entrar no palco. A semelhança com as boinas que Dizzy Gillespie, Thelonious Monk e outros beboppers usavam no final dos anos 1940 não é gratuita.

Atração da quarta noite do festival Sesc Jazz, Tolliver e seu afiado quinteto cativaram a atenção da plateia paulistana que foi à comedoria do Sesc Pompeia, na noite de sexta-feira (17/8). Quem está acostumado aos shows dançantes, que são realizados com frequência nesse espaço, encontrou uma atmosfera mais adequada à música que iria ouvir: a iluminação nebulosa e as mesas instaladas à frente do palco permitiram que a plateia pudesse se sentir em um clube de jazz.

De uma geração musical posterior à de seus ídolos do bebop, o autodidata Tolliver (hoje com 76 anos) ainda teve tempo para tocar e gravar com alguns deles, como o grande baterista Max Roach ou o saxofonista Jackie McLean, na década de 1960. Precoce, aos 17 anos já participava de jam sessions, em clubes do Harlem, o mítico bairro negro de Nova York.

O conhecimento musical e a experiência que acumulou ao longo de seis décadas de carreira profissional se refletem no som denso e compacto de seu quinteto. Além do guitarrista Bruce Edwards, do contrabaixista Devin Starks e do baterista Darrell Green, ótimos músicos que já o acompanham há alguns anos, conta ainda com o talento do pianista Keith Brown.

Tolliver abriu o show com dois temas curtos e rítmicos, característicos do efervescente hard bop dos anos 1950 e 1960, acompanhados por longos improvisos dos músicos do grupo. Nos solos, suas frases também são breves e bem acentuadas, com células melódicas que, repetidas por diversas vezes, levam a um enérgico crescendo.

Numa das poucas vezes em que se dirigiu à plateia, com seu vozeirão rouco, o trompetista provocou risadas. Ao introduzir sua composição “Emperor March”, inspirada pelo popular documentário “A Marcha dos Pinguins”, não só fez questão de esboçar uma sinopse do filme, como imitou um desengonçado pinguim. Mais engraçado, no entanto, é o fato de que, se não tivesse feito essa referência, ninguém poderia imaginar que o contagiante tema que tocou – na linha do soul-jazz dos anos 1960 – teria algo a ver com o filme.

Quando repete em entrevistas que costuma evitar os caminhos musicais mais fáceis, Tolliver não está fazendo jogo de cena: isso é evidente em seus solos. No entanto, nem essa vontade constante de inovar pode justificar a infeliz releitura de “Round Midnight” que tocou quase ao final do show – capaz de fazer Thelonious Monk, seu autor, revirar-se no túmulo. Desfigurar a melodia de uma das baladas mais belas de todos os tempos, e ainda acelerar seu andamento, jamais será uma boa ideia para um arranjo dessa composição. Porém, como errar é humano, melhor esquecermos esse deslize eventual e ficarmos com a memória dos excitantes temas e improvisos que Tolliver e seu quinteto já tinham apresentado.


(Resenha escrita a convite da produção do festival Sesc Jazz. Leia outras críticas de shows desse evento, no site do Sesc SP: https://www.sescsp.org.br/online/revistas/tag/12411_CRITICAS+SESC+JAZZ)


Aretha Franklin: voz poderosa da 'rainha do soul' rompeu fronteiras entre gêneros musicais

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“Que voz é essa”? Muitos ouvintes que escutaram pela primeira vez a voz cortante e poderosa de Aretha Franklin – interpretando sucessos como “Think”, “Call Me” ou “I Say I Little Prayer”, na programação das rádios comerciais durante as décadas de 1960 e 1970 – devem ter se feito essa pergunta. 

Quando a ouviu, em 1960, o experiente produtor norte-americano John Hammond não pensou duas vezes para contratá-la. “Meu Deus, é a voz mais bonita desde Billie Holiday!”, surpreendeu-se o executivo da gravadora Columbia.

Com uma rara extensão de quase quatro oitavas, a voz de Aretha soava como algo fora do comum, uma força da natureza. Poucos são os cantores que, como ela, tinham o poder de arrepiar seus ouvintes – e ela fazia isso com naturalidade.

No caso de Aretha, não se tratava apenas de um atributo físico ou técnico. Como grande intérprete que era, ela transmitia uma dose de sinceridade em suas gravações e performances, que conquistava o ouvinte logo na primeira audição. Bastava ouvir alguns versos de uma balada dolorida, de uma canção de protesto ou mesmo de um hino religioso, para que o ouvinte se sentisse, imediatamente, um confidente daquela intérprete tão carismática.

Com sua voz incomparável, Aretha conseguiu romper as supostas fronteiras entre a soul music, o rhythm & blues, o gospel, o jazz e o rock, numa época em que essas divisões pareceriam reproduzir a segregação racial que predominava na sociedade norte-americana. Seu talento natural e a habilidade como improvisadora lhe permitiam transformar até uma fútil canção pop em algo sedutor e convincente.

Um dos mais influentes e cultuados cantores e compositores da música negra norte-americana, Otis Redding (1941-1967) foi obrigado a se curvar frente ao poder musical da “Queen of Soul” (rainha do soul). Seu sucesso “Respect” alcançou uma repercussão muito maior ao ser regravado por ela.

Ampliado pela voz de Aretha, o efeito dessa canção ganhou duplo sentido ao exigir em seus versos “um pouco de respeito”. “Respect” transformou-se em hino espontâneo da luta pelos direitos civis dos negros nos Estados Unidos. E logo foi adotado pelas ativistas do movimento feminista.

Vale lembrar que, mesmo sem ter tido uma educação formal de música, Aretha aprendeu o que precisava em casa e na igreja do pai para seguir a carreira musical. Ali conviveu com grandes intérpretes da música gospel, como Mahalia Jackson e Clara Ward, cujas vozes a estimularam a querer ser cantora.

Embora tenha se dedicado a diversos gêneros musicais, a essência de seu canto estava no gospel. Não foi à toa que, depois de lançar alguns de seus discos mais cultuados, como “I Never Loved a Man” (1967), “Spirit in the Dark” (1970) ou “Young, Gifted and Black” (1971), Aretha gravou “Amazing Grace” (1972). Um retorno revelador às suas raízes musicais.

(Texto publicado na “Folha de S. Paulo”, em 17/8/2018, por ocasião da morte de Aretha Franklin)

Sesc Jazz: música de Henry Threadgill respira em constante processo de recriação

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“Vocês ainda têm tempo pra gente tocar mais um pouquinho?”, sugeriu Henry Threadgill, longe do microfone, sorrindo ao receber os aplausos calorosos da plateia do Sesc Pompeia, na noite de ontem (16/8). Uma pergunta gentil e retórica, que foi respondida prontamente com um sonoro “sim!”, já que os quase 70 minutos de música ouvidos até aquele momento pareceram pouco.

Para alguns fãs desse veterano compositor e instrumentista de Chicago, vê-lo se apresentar pela primeira vez no país, no festival Sesc Jazz, ao lado dos excelentes músicos de seu quinteto Zooid, foi a satisfação de um desejo que durou décadas. Sua vinda chegou a ser cogitada pelo Chivas Jazz, em 2005, mas o festival foi extinto antes de realizar essa edição.

Em plena atividade aos 74 anos, Threadgill é considerado um dos maiores compositores do jazz de vanguarda (aliás, jazz é um termo que ele costuma rejeitar, em suas entrevistas, por considera-lo apenas um rótulo comercial). Ainda no início da carreira ligou-se à lendária AACM (Associação para o Avanço da Música Criativa), liderada pelo pianista Muhal Richard Abrams, outro expoente dessa vertente musical que a plateia do Sesc Pompeia teve o privilégio de ouvir, em 2015.

Como Abrams, Threadgill entra no palco e simplesmente toca. Não tenta se aproximar da plateia, explicando sua música ou contando alguma história que se relaciona com ela. Nem mesmo os títulos de suas composições ele anuncia, antes de toca-las. É a discrição em pessoa.

Antes de tocar “Bells”, peça experimental que escolheu para abrir o concerto, Threadgill sussurrou instruções ao percussionista Elliot Kavee, que a introduziu com um solo. Em “Tomorrow Sunny”, a composição seguinte, foi a guitarra de Liberty Ellman que sobressaiu, inicialmente, até que a improvisação se tornasse fluida e coletiva.

Uma das mais aplaudidas da noite, a nervosa “Off the Prompt Box” (faixa do álbum “In for a Penny, In for a Pound”, de 2015, que contribuiu para que Threadgill recebesse o conceituado prêmio Pulitzer por sua obra) destacou o sax alto do compositor, em um solo expressivo, repleto de harmônicos e outros sons insólitos que extraiu do instrumento.

Aliás, entre os músicos do quinteto, Threadgill é o que menos toca durante todo o concerto. Seus improvisos de flauta ou sax alto são breves e incisivos, como se fossem milimetricamente calculados para entrar no instante certo. E por que teria de ser de outra forma, já que ele é o autor de todo o material do grupo?

Além da formação incomum, que inclui ainda o violoncelo de Christopher Hoffman e a tuba (ou o trombone) de José Davila, também surpreende a hipnótica fluência sonora do Zooid, originalmente um sexteto quando Threadgill o criou há cerca de 18 anos.

Não é por idiossincrasia que o compositor o considera o melhor grupo com o qual já trabalhou até hoje. Mesmo sendo talentosos solistas, nenhum deles busca se sobressair nos improvisos. Todos se unem ao objetivo de criar música com improvisação e liberdade, sem se afastarem da sonoridade idealizada por seu criador. Talvez esteja aí o motivo de essa música soar tão viva e original, em constante processo de recriação.


(Resenha escrita a convite da produção do festival Sesc Jazz. Leia outras críticas de shows desse evento, no site do Sesc SP: https://www.sescsp.org.br/online/revistas/tag/12411_CRITICAS+SESC+JAZZ)

Sesc Jazz: um quarteto inspirador e suas releituras de canções de Dorival Caymmi

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                                                                       Mehmari, Stroeter, Tutty e Proveta, no Sesc Jundiaí 


 A plateia de Jundiaí pode se considerar privilegiada. Primeira atração do festival Sesc Jazz nessa cidade paulista, um quarteto exibiu, em primorosas releituras instrumentais de canções do mestre Dorival Caymmi (1914-2008), um grau de inventividade, liberdade e coesão, que só os melhores grupos desse gênero musical são capazes de alcançar. 

“A música do Dorival nos faz navegar. Ela nos leva ao Sol, nos leva para a Lua”, disse o contrabaixista Rodolfo Stroeter, logo ao início da noite da última quarta-feira (15/8), preparando a plateia para acompanhar as inspiradoras viagens sonoras do grupo.

A escolha da radiante versão do samba “MiIagre”, para abrir o show, não é gratuita. Com a experiência que acumulam em décadas de carreira, Tutty Moreno (bateria), Nailor “Proveta” Azevedo (sax alto e clarinete), André Mehmari (piano) e Stroeter (baixo acústico) têm consciência de como é rara a química musical que os une.

“Temos muita sorte. Isso é um milagre que aconteceu na vida da gente”, reconheceu Proveta, emocionado, já quase ao final do show. A própria trajetória do quarteto é incomum: formado em 1998, para gravar o álbum “Forças D’Alma” (hoje um clássico da música instrumental brasileira), o grupo só se reencontrou eventualmente, até gravar o álbum “Dorival”, no ano passado.

Em meio a tantas belezas musicais, chama especial atenção o fato de os improvisos do quarteto serem tecidos de maneira essencialmente coletiva. Nada a ver com o hierárquico ritual de grupos de jazz mais tradicionais, cujos músicos cumprem a função de estender o tapete harmônico e rítmico para que o solista desfile, como centro das atenções.

Um dos arranjos mais inusitados é o de “Samba da Minha Terra”. Na introdução, o sax alto remete, com humor, ao clássico “Voo do Besouro” (de Rimsky-Korsakov). Proveta e Mehmari se divertem, brincando com a melodia, num toma-lá-dá-cá hilariante.

Já na dramática “Sargaço Mar”, Tutty demonstra toda sua sensibilidade musical, ao colorir com os sons de seus tambores e pratos as intervenções do piano e do sax alto. Aliás, quem conhece o estilo desse mestre da bateria sabe que ele é capaz de extrair melodias de seu instrumento. Isso mesmo, Tutty é um baterista melódico e criativo, como muito poucos.

Pensando bem, esse quarteto é uma síntese do que já se produziu de melhor na música instrumental brasileira das últimas décadas. Ainda no final dos anos 1970, Stroeter foi um dos criadores do cultuado grupo Pau Brasil, que segue na ativa, em sua melhor forma. Proveta lidera há duas décadas e meia a sensacional Banda Mantiqueira. E Mehmari, mesmo mais jovem que seus parceiros, já se consagrou como um dos grandes instrumentistas e compositores do país.

Não posso falar por toda a plateia de Jundiaí, mas tenho certeza de que muitos, como eu, devem ter saído do show de ontem com um certo orgulho. Em meio à devastadora crise que nosso país enfrenta, essa música brasileira tocada com tanta inventividade e beleza é capaz de nos deixar um pouco mais otimistas. Talvez o Brasil ainda tenha jeito.


(Resenha escrita a convite da produção do festival Sesc Jazz. Leia outras críticas de shows desse evento, no site do Sesc SP: https://www.sescsp.org.br/online/revistas/tag/12411_CRITICAS+SESC+JAZZ)

Stefano Bollani: pianista italiano cultiva paixões pelo jazz e pela MPB no CD 'Que Bom'

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                                                                                     Foto de Valentina Cenni/Divulgação

A paixão de Stefano Bollani pela música brasileira, tudo indica, não vai esfriar tão cedo. O pianista italiano descobriu a cadência do samba ainda na adolescência e agora, aos 45 anos, lança o álbum “Que Bom”, com participações especiais de Caetano Veloso e João Bosco, além de uma compacta seleção de craques da música instrumental brasileira. 

Um dos músicos europeus de maior prestígio na cena atual do jazz, Bollani tem reforçado durante a última década sua intimidade com as harmonias e os ritmos do Brasil. Em 2007, gravou o álbum “Carioca” no Rio, com músicos locais. Já em 2013, dividiu o CD “O Que Será” com o bandolinista Hamilton de Holanda, que também está no novo disco do italiano. 

“Hoje eu sei que existe muita música brasileira que eu ainda não conheço”, diz Bollani, com certa modéstia, falando à Folha por telefone. Quando a conversa se volta para os pianistas brasileiros que admira, por exemplo, ele desfia uma lista extensa: de mestres do choro, como Radamés Gnattali e Carolina Cardoso de Menezes, a expoentes de nossa moderna música instrumental, como João Donato e César Camargo Mariano.

Bollani já tocava piano, aos 15 anos, quando ouviu o clássico disco de bossa nova que João Gilberto gravou com o jazzista Stan Getz (“Getz/Gilberto”, 1963). “Me apaixonei pelas harmonias, parecidas com as do bebop e as do cool jazz, das quais eu já gostava muito”, relembra, em bom português.

“Mais tarde, quando fui ao Brasil para gravar meu disco ‘Carioca’, encontrei o choro, o samba, o forró e outras músicas brasileiras”, diz o italiano, que fez questão de voltar a tocar com Armando Marçal (percussão), Jurim Moreira (bateria) e Jorge Helder (baixo), nas gravações de “Que Bom” (selo Alobar/Biscoito Fino). Esse mesmo trio vai acompanha- lo na turnê de lançamento, além de Thiago da Serrinha (percussão).

No repertório de seu saboroso álbum, Bollani exibe 14 composições próprias, quase todas instrumentais. Inclui também a conhecida “Nação” (de João Bosco, Paulo Emílio e Aldir Blanc), cantada pelo próprio Bosco, e “Michelangelo Antonioni”, que Caetano Veloso, o autor, interpreta em italiano.

“Adoro Caetano cantando em italiano. Ele pode até cantar os itens de uma lista telefônica que eu vou gostar”, brinca o pianista. “No projeto original, ele iria cantar outras coisas em português, mas, na véspera da gravação, escrevi uma letra para a instrumental ‘La Nebbia a Napoli’. Caetano gostou, aprendeu rapidamente e a gravou”.

Bollani lança seu álbum nesta terça (14/8), no Bourbon Street, em São Paulo. Depois toca em Belo Horizonte (15/8) e faz duas apresentações pelo festival Sesc Jazz, no interior paulista, em Ribeirão Preto (17/8) e Jundiaí (18/8). Também toca em Brasília (20/8) e no Rio (21/8).

“Nos shows, tudo é mais improvisado do que no disco. É um grande prazer estar no palco com esses músicos incríveis. Ainda quero tocar muito com eles”, diz o italiano, que voltará a se apresentar com sua banda carioca, na Europa, em novembro.

Bourbon Street Music Club (r. dos Chanés, 194, Moema). Terça (14/8), às 21h30. Couvert artístico: de R$ 95,00 a R$ 150,00. 

(Texto publicado parcialmente na "Folha de S. Paulo", em 14/8/2018)







Paulo Bellinati & Marco Pereira: violonistas celebram afinidades no álbum 'Xodós'

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                                           Os violonistas Paulo Bellinati e  Marco Pereira / Fotos de Tarita de Souza 

Um encontro de músicos de alto quilate, como Paulo Bellinati e Marco Pereira, já seria por si só um evento especial, mas por trás do álbum “Xodós” (lançamento com o selo de qualidade da gravadora Borandá) há uma amizade de quase cinco décadas. Uma parceria musical marcada por afinidades, perfeccionismo técnico e profunda dedicação a esse instrumento tão essencial na linguagem da música brasileira.

Paulistanos, eles nasceram no mesmo mês de setembro, em 1950, com uma diferença de apenas três dias. Conheceram-se quando cursavam o Conservatório Dramático e Musical do Estado de São Paulo, onde frequentavam aulas de violão com o mesmo mestre: o uruguaio Isaías Sávio.

Também cultivaram praticamente as mesmas referências no violão. “Nosso grande ídolo foi Baden Powell (1937-2000). Naquela época quase não havia partituras de música popular, então o jeito era ralar muito ouvindo os LPs, para tirar de ouvido as músicas que queríamos tocar”, relembra Pereira.

Chegaram a se apresentar algumas vezes em duo, no início dos anos 1970, mas a parceria foi suspensa quando decidiram aprimorar os estudos na Europa. Depois de ingressar no Conservatório de Genebra, na Suíça, Bellinati não demorou a formar um grupo de música instrumental brasileira. Pereira se fixou em Paris, onde obteve o título de mestre em violão clássico e se tornou um conceituado concertista. De vez em quando, um deles convidava o outro para tocarem juntos.

De volta ao Brasil, já em 1981, os dois formaram o trio Pó de Mico, com o percussionista Zé Eduardo Nazário. Apresentaram-se algumas vezes, mas pouco depois Pereira decidiu deixar São Paulo para se tornar professor da Universidade de Brasília. Ali assumiu a recém-criada cadeira de Violão Superior, além de lecionar Harmonia Funcional. Paralelamente, seguiu com sua carreira de solista erudito, mas também gravou elogiados discos de música brasileira.

Já tocando também guitarra, viola caipira e cavaquinho, Bellinati uniu-se ao grupo instrumental Pau Brasil, com o qual se destacou como solista e compositor por cerca de uma década. O interesse pela música do violonista e compositor paulista Garoto (1915-1955) reativou sua ligação com o violão, levando-o a uma bem-sucedida carreira de concertista, especialmente em palcos dos Estados Unidos. Em 2002, voltou a fazer parte do grupo Pau Brasil, com o qual continua tocando até hoje.

“Sempre me surpreendi com o fato de termos continuado nossas carreiras em paralelo”, observa Pereira. “Alguns anos atrás tive a ideia de escrever um concerto para dois violões e orquestra. Passei oito meses feito doido, escrevendo. Estava finalizando o último movimento, quando li a notícia de que o Bellinati ia estrear um concerto para dois violões e orquestra. Era muita coincidência”, relembra o violonista, que sugeriu ao amigo, em meados de 2015, que retomassem a parceria.

A reestreia do duo se deu no Clube do Choro de Brasília (DF), algumas semanas depois. No programa dessa apresentação já figurava boa parte do repertório que viria a compor o álbum “Xodós”. Por sinal, os arranjos da dupla para “Eu Só Quero Um Xodó”, “Isso Aqui Tá Bom Demais”, “De Volta pro Aconchego” e “Gostoso Demais”, sucessos do sanfoneiro Dominguinhos (1941-2013), nasceram para atender a um pedido da produção do Clube do Choro, que costuma homenagear figuras importantes da música brasileira.

“Eles pedem que a gente toque ao menos uma música do homenageado, mas acabamos tocando cinco. Poderíamos fazer até um disco inteiro dedicado a Dominguinhos”, diz Pereira. Só a toada “Lamento Sertanejo” não entrou no disco, mas o duo costuma toca-la nos shows. “É muito legal, porque as pessoas saem cantando, espontaneamente, assim que a reconhecem”, conta Bellinati.

Se o acaso contribuiu para a criação dessas saborosas versões instrumentais de canções de Dominguinhos, as composições do violonista Dilermando Reis (1916-1977) já frequentavam o repertório de Pereira desde cedo. Tanto que este homenageou o influente mestre do violão, recriando com elegância suas composições no álbum “Dois Destinos” (Borandá, 2016).

O batuque “Xodó da Bahiana”, o choro “Magoado” e a valsa “Se Ela Perguntar”, interpretadas por Pereira em seu disco, ganham novos tratamentos e sonoridades nas releituras do duo. Vale lembrar que, nas 14 faixas de “Xodós” (foto da capa abaixo), Pereira toca violão com cordas de nylon no canal esquerdo; o violão com cordas de aço de Bellinati é ouvido no canal direito. A produção do álbum ficou a cargo de Swami Jr., outro grande violonista.


“Já nos ensaios a gente se surpreendia ao notar que rola uma liberdade, uma grande confiança entre nós, algo que não é comum entre qualquer músico. Se você toca completamente relaxado, com a certeza de que seu parceiro está 100% com você, você toca com mais calor. O rendimento é muito maior”, comenta Bellinati.

Pereira concorda com o parceiro e observa que a maturidade traz uma relação diferente com a música. “Quando você tem vinte e poucos anos se preocupa em impressionar o público com sua performance, com exuberância técnica. Mais tarde você amadurece e passa a valorizar o resultado musical. Esse disco também tem um pouco de exuberância, mas nós estamos a serviço da música o tempo todo”, considera.

O repertório de “Xodós” inclui também composições próprias. “Foi difícil escolher”, admite Pereira. “Ficamos com aquelas que poderiam funcionar bem com os dois violões”. De Bellinati entraram a inédita “Fandango” e “Jongo”, composição que se tornou um clássico no repertório do grupo Pau Brasil. Pereira contribuiu com “Choro de Juliana”, “Amigo Leo”, “Santo Amaro” e “Café Compadre”.

Hoje, tanto “Choro de Juliana” como “Jongo” são tocadas por violonistas de diversos países, em gravações mais tradicionais do que a ouvida em “Xodós”. “Algumas de nossas composições entraram no repertório do violão clássico. O cara pega a partitura, decora e a reproduz nos concertos”, observa Pereira. “Como eu e Bellinati também temos em nossa formação a bagagem do jazz, nossas versões acabam ficando diferentes, também por causa das partes improvisadas”.

Os dois admitem terem ficado especialmente satisfeitos com a releitura da lírica valsa “Se Ela Perguntar” (de Dilermando Reis). “Toquei essa música a vida inteira. Minha avó sempre chorava quando a ouvia. Ficamos emocionados ao escutar essa gravação”, conta Bellinati. “Ela possui uma magia que nem a gente consegue entender como conseguiu. É uma coisa rara, uma benção. Talvez tenham baixado alguns anjos no estúdio, na hora em que a tocamos”, brinca Pereira.

Perfeccionistas, eles contam que chegaram a masterizar o disco pela segunda vez, por não terem ficado satisfeitos com o resultado sonoro da primeira versão. “Passei a vida achando que eu era perfeccionista, mas ao fazer esse disco com o Bellinati percebi que eu sou fichinha perto dele. Ele tira até a última gota do som”, diverte-se Pereira. “Esse disco representa a história de nossas vidas, então tínhamos que caprichar”, retruca Bellinati.

Tratando-se desses dois grandes violonistas, que há décadas desenvolvem carreiras consagradas internacionalmente (e já não precisam provar mais nada a ninguém), só poderíamos esperar por algo assim: música brasileira de alta qualidade, tocada com requinte técnico, elegância e emoção.


(Texto escrito a convite da gravadora Borandá)

Paulo Bellinati e Marco Pereira lançam o álbum "Xodós", dia 15/08, às 21h, em show no Sesc 24 de Maio, na região central de São Paulo. Ingressos de R$ 7,50 a R$ 25,00, nas bilheterias das unidades do Sesc SP (a partir de 7/8) e online (a partir de 8/8), no portal do Sesc SP



 

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