11 março 2020

Branca Lescher: compositora e cantora revela afinidades com a vanguarda paulista

                                     A compositora Branca Lescher e seu disco "Eu Não Existo" / Foto: Laryssa Fraga

É fácil perceber que Branca Lescher é paulistana. Basta ouvir a canção “Eu Não Existo”, que dá título ao segundo disco autoral dessa cantora, compositora e poeta. Com a voz delicada, ela entoa os versos irônicos (“eu não existo /faça de conta /não perca o sono /dorme tranquilo”), quase como se estivesse falando. Seu canto contido contrasta com os pesados sons eletrônicos do arranjo, que destaca um solitário clarinete. 

Branca comenta que escolheu essa canção para abrir seu disco com uma espécie de provocação, já que a letra se relaciona de maneira paradoxal com as outras 11 canções que a seguem. “Todas elas falam de como eu quero ser livre, de como a mulher tem o direito de fazer o que ela quer”. Não é à toa que a triste canção “Desisto” (parceria com Edmiriam Modolo) termina em tom de redenção: “que se dane o bom senso /só me encontro de novo /com a liberdade”.

Como outros adolescentes paulistanos de sua geração, nos anos 1980, Branca foi a shows e ouviu discos de Arrigo Barnabé, de Itamar Assumpção e dos grupos Premê e Rumo 
expoentes da chamada “vanguarda paulista”. Influência que ela reconhece no seu jeito falado de cantar e em composições de sua autoria marcadas por um certo minimalismo. 

Quem assina a produção musical e os arranjos do disco é Marcelo Segreto, também parceiro de Branca em várias canções. “Como eu convivo com ele há muito tempo, conheço bem sua estética musical. Eu já disse ao Marcelo que este disco é tanto meu como dele”, ela comenta, ciente de que os arranjos com instrumentos de cordas trouxeram unidade e uma sonoridade original ao álbum.

Os dois se conheceram em 2013, nos círculos da Faculdade Santa Marcelina, onde compositores ligados à chamada vanguarda paulista, como Luiz Tatit ou Zé Miguel Wisnik, eram referências constantes. Antes de ingressar no curso de pós-graduação em canção popular, Branca teve aulas de canto com Regina Machado, cantora e compositora também influenciada pela estética dessa vertente musical.

“Sou muito paulistana. Não me sinto uma cantora e compositora de samba ou de música brasileira mais tradicional”, admite Branca, que chegou a gravar canções de Ary Barroso e Tom Jobim, em seu disco de estreia (“Intimidade e Silêncio”, lançado em 2005). Dissonante e quebrado, o único samba no repertório do novo álbum, “Antes de Mim”, confirma a declaração da autora.

Essencial no conceito do álbum, a sombria canção “O Dia da Mulher” (parceria com Segreto) sintetiza a temática feminina presente em várias faixas. Nos versos (“mulher é bicho esquisito /todo mês sangra /a Rita disse uma vez”), Branca expressa a indignação da mulher madura que se sente invisível quando não se submete a certas expectativas sociais, como tingir os cabelos brancos.

Já a divertida “Bigode Chinês” (outra com Segreto) brinca com a “mulherada” que malha nas academias e encara artifícios para reduzir os efeitos do envelhecimento (“contra a lei da gravidade /a idade tá subindo / mas o resto, bem /o resto tá caindo”). O arranjo de Segreto, que divide os vocais com Branca, traz leveza e um toque teatral a esse tema incômodo.

Bem-humorada também é “Dia das Mães”, sobre a frustração das mulheres que, ao terem filhos, se veem obrigadas a abrir mão de aspirações pessoais. “Meus filhos ficaram meio chocados”, comenta Branca, referindo-se ao tom sarcástico de seus versos (“tua mãe não tem tempo pra perder /tua mãe não tem tempo pra você /tua mãe já aguentou teu papai / teu avô, teu bisavô, tataravô e o patrão”).

O contraponto desse desabafo materno vem em outras duas canções. A doce “Violeta” (parceria com Edmiriam Modolo), dedicada à filha recém-casada, ganhou, na gravação, uma dose extra de lirismo graças ao acordeom de Toninho Ferragutti. Com batida de rock e um inusitado clarone no arranjo, “Salvo Conduto” inclui um típico conselho de mãe ao filho (“o teu amor leva contigo /mas não beba, não fume, não sofra, não durma demais”).

O álbum inclui também belas canções de temática amorosa, como “Taj Mahal” e “Lisboa” (parceria com Edmiriam). Mais inusitada, “Bailado” (outra com Edmiriam) é um fado leve cuja letra Branca escreveu ao retornar, ainda inebriada, de uma viagem a Portugal. As participações da cantora Cristina Clara e de Bernardo Couto, na guitarra portuguesa, garantem a sonoridade tipicamente lusitana.

Finalmente, a emotiva “Je Suis Nelson Mandela” ganhou um belo arranjo com quarteto de cordas. Admiradora do líder negro sul-africano, que lutou contra a segregação racial, ela o incluiu nos versos como um exemplo de superação. Em suas canções, Branca sugere que a mulher precisa enfrentar o machismo sem perder o humor e a ternura.

Ao perguntar a ela como compararia as letras de suas canções e seus poemas (“Fibromialgia”, seu primeiro livro, saiu em 2016), acabei ouvindo uma autodefinição pessoal. “Poesia e letra de música são diferentes: a forma é diferente, a preocupação com a métrica é diferente, mas minha poesia, assim como minhas canções, têm uma coisa sucinta, econômica. Até ao cozinhar eu sou assim”, compara Branca, rindo. “Esse é o meu jeito de ser. Acho que quanto mais simples são as coisas mais elas são legais”.


(Texto escrito a convite da assessoria de imprensa da cantora)






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