Luiz Tatit: compositor revela novas musas e personagens em 'Palavras e Sonhos'

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                                                           O compositor e cantor Luiz Tatit / Foto de Gal Oppido

Só um compositor diverso dos padrões convencionais concluiria seu disco contando como cria as canções. É o que faz Luiz Tatit em “Palavras e Sonhos” (lançamento Dabliú), a canção que empresta o título a seu novo álbum, o sexto individual. “Uso palavras picadas no som /Palavras magoadas de tantas paixões /Palavras idiotas e alguns palavrões”, entoa o cancionista paulistano, detalhando nos versos essa receita pessoal, com o humor e a simplicidade que o identificam.

Trata-se de um tema recorrente na obra desse músico incomum. Líder do grupo Rumo, expoente da chamada vanguarda paulista, na virada dos anos 1970 para os 1980, Tatit revelou por meio de suas canções o conceito do “canto falado”. Além das aulas que ministra na Universidade de São Paulo, paralelamente à carreira artística, ele continua a desenvolver pesquisas na área da semiótica da canção, que já renderam vários livros.

A temática da criação também está presente em “Mais Útil”, canção em troteado ritmo country que abre o disco. Como em outras de suas composições, Tatit inventou personagens pitorescas para tratar da inspiração: a negativa Palmira (“Quando sofre é de mentira / Mas adora suspirar”) e a entusiasmada Elvira (“Quando sofre ela se vira /Seu costume é se inspirar”).

Outros saborosos perfis femininos são delineados em canções do álbum. Em “Diva Silva Reis” (“Muito positiva /Mas só quando quer /Viva Diva Silva /Que mulher!”), num divertido flerte com o brega, o arranjo de sopros cria uma passarela sonora para que a diva idealizada por Tatit possa desfilar pelos versos.

Em “Das Flores e das Dores” (parceria com Emerson Leal), não é apenas uma, mas dez as divas retratadas nos versos sintéticos – quase todas com nomes de flores. Já na sentimental “Estrela Cruel” (“Vem vendaval /Vem cascavel /Faz desse mal /Fonte de mel”), o cantor e pianista Marcelo Jeneci, outro parceiro de Tatit, divide com ele os vocais.

Ainda que seja cantada no masculino pelo próprio Tatit, a letra da canção “Do Meu Jeito” (parceria com Vanessa Bumagny) parece discorrer sobre inseguranças e contradições típicas das mulheres. Mas não falta nesse álbum ao menos um mítico personagem masculino: no descontraído foxtrote “Matusalém” (parceria com Arthur Nestrovski), Tatit imagina como é viver após os cem anos.

Outras canções retomam o tema da inspiração. Já gravada por Ná Ozzetti, a dançante “Musa da Música” (parceria de Tatit com Dante Ozzetti) conta com vocais de Juçara Marçal e da moçambicana Lenna Bahule. A queixosa “Musa Cruza” (“Cruza as coxas e aproveita /Minha musa é musa /Nunca satisfeita”) destaca o arranjo de cordas de Fabio Tagliaferri.

Intérprete essencial para a obra de Tatit desde os tempos do Rumo, Ná assume os vocais em “Planeta e Borboleta”, canção sensível sobre as angústias do cantar. O arranjo de Jonas Tatit (filho do compositor), que também assina a produção musical do álbum, combina violões, guitarra e efeitos eletrônicos.

Também já gravada antes pelo parceiro Zé Miguel Wisnik, “Tristeza do Zé” surge agora com a letra completa, com Tatit dividindo os vocais com Juçara Marçal. Melancolia e beleza, numa canção que envereda pelo universo caipira.

Ao ler o título de “Feitiço da Fila”, os fãs da primeira fase do grupo Rumo podem até imaginar uma resposta ao clássico samba “Feitiço da Vila”, de Noel Rosa. Não, o que se ouve é outra daquelas canções agridoces e reflexivas bem ao estilo de Tatit (“E eu entro na fila outra vez /Só por você /Que deixou o mundo /Melhor do que era /Vivo na fila de espera”). Para um paulistano, é irresistível a ironia desse trocadilho.


(Resenha publicada no "Guia Folha - Livros, Discos, Filmes", em 26/3/2016)  


 

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