Naná Vasconcelos (1944-2016): inventivo, percussionista era capaz até de fazer chover

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Os felizardos que viram o show “O Bater do Coração” dificilmente vão se esquecer. Foi em janeiro de 1992, num dos eventuais retornos ao país do percussionista Naná Vasconcelos, que morava nos Estados Unidos desde os anos 1970. Como um regente informal, ele transformava a plateia em uma orquestra de percussão corporal, dando a todos a nítida sensação de ouvir sons de chuva ou de estar em um barco no meio da selva. Fazia isso utilizando estalos de dedos, palmas e as vozes dos espectadores.

Impossível esquecer também a evidente emoção desse músico pernambucano, nesse mesmo show, ao entoar sua canção “Tu Nem Quer Saber”. Nos versos melancólicos (“Já que tu não quer saber de mim / Canto essa dor / É que tu não quer saber de ti / Falo deste amor”), ele aludia à mágoa que ainda sentia por ser ignorado pelas gravadoras brasileiras, que raramente lançavam seus discos no país.

Detalhe essencial para se avaliar essa injustiça absurda: no início dos anos 1990, Naná já era um músico consagrado na cena internacional, com mais de uma dúzia de álbuns lançados nos Estados Unidos e na Europa. A conceituada revista norte-americana “Down Beat”, por exemplo, já o tinha eleito melhor percussionista do mundo por cinco anos.

“Será que o brasileiro vai querer ouvir aboios, cocos e esse tipo de material da música popular que eu misturo com as minhas coisas?”, perguntou ele a este repórter, dias antes do show em São Paulo, demonstrando insegurança. Naná até tinha motivo para isso: também esnobados durante a década de 1980, os ritmos brasileiros haviam perdido sua hegemonia para o rock, no mercado nacional.

Sem limites

Músico do mundo, ele demonstrou em seus discos e parcerias, especialmente ao longo dos anos 1970, 1980 e 1990, que sua música não tinha limites geográficos, étnicos, muito menos de gêneros ou estilos. Viajou por vários continentes, tocando música instrumental, jazz, rock, música indiana, ritmos africanos, até folclore escandinavo, sem jamais deixar de lado suas profundas ligações com a música brasileira.

Não foram poucos os críticos e compositores que se surpreenderam com o talento de Naná. Usando apenas o berimbau e alguns instrumentos de percussão, além da voz e de seu corpo (eventualmente, chegou a usar fitas gravadas, como no álbum "Amazonas", de 1973), era capaz de criar peças inventivas e sofisticadas, que o aproximavam da música de vanguarda, mesmo que não tivesse essa pretensão.

Provavelmente, seu disco mais cultuado é “Dança das Cabeças” (1977), registro de sua primeira parceria com Egberto Gismonti. Essa excitante suíte, composta por música escrita e improvisada, inclui releituras de peças de Gismonti e a inventiva versão de “Fé Cega, Faca Amolada” (de Milton Nascimento). Outro item festejado pelos fãs é sua fase com o grupo Codona, ao lado do trompetista Don Cherry e do citarista Collin Walcott, que rendeu três álbuns.

Já voltando a se reaproximar do Brasil, em 1995, Naná revelou que também tinha talento para a produção musical. Assumiu a direção artística do festival PercPan (dividida com Gilberto Gil, a partir do ano seguinte), contribuindo para trazer ao país diversos expoentes da percussão internacional.

Em 2002, decidido a proteger uma manifestação típica da cultura pernambucana ameaçada de desaparecimento, aceitou um novo desafio: como coordenador da abertura do carnaval da cidade de Recife, promovia encontros de dezenas de maracatus, que envolviam centenas de batuqueiros, orquestras e astros da MPB.

Por essas e outras, sem o talento e a música de Naná Vasconcelos, o Brasil vai ficar menos inventivo, menos brasileiro.


(Texto publicado na versão online da "Folha de S. Paulo", em 9/03/2016, por ocasião da morte de Naná Vasconcelos)

1 Comentário:

ADEMAR AMANCIO disse...

É isto aí,tenho dito.

 

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