Marcos Paiva: baixista e compositor busca um jazz brasileiro com mais liberdade

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                                                                                              Foto: Maria Clara Villas/Divulgação

Como fazer música instrumental com identidade brasileira, que não soe como um genérico do jazz? Este é um desafio que já foi encarado com maior ou menor sucesso por músicos de diversas épocas, especialmente a partir da década de 1960, com a primeira geração do samba-jazz, que destaca J.T. Meirellles, Edison Machado e os trios Tamba, Zimbo e Sambalanço, entre outros.

Quando se fala na moderna música instrumental brasileira também é obrigatório pensar nas obras de Moacir Santos, Hermeto Pascoal, Egberto Gismonti e Paulo Moura, ou de grupos como o Quarteto Novo, Pau Brasil ou Uakti, entre outros. Nas últimas cinco décadas, esses instrumentistas, compositores e conjuntos desenvolveram estilos e repertórios originais, que dialogam com a linguagem do jazz sem abrir mão de sua brasilidade.

Essa seleção de craques de nosso som instrumental acaba de ganhar um talentoso reforço. Depois de lançar o promissor “São Mateus” (2007), álbum que marcou sua estreia como líder e compositor, seguido por “Meu Samba no Prato” (2011), primoroso trabalho autoral dedicado ao baterista Edison Machado e a outros músicos do samba-jazz, o contrabaixista Marcos Paiva comprova, em “Choroso vol. 2”, seu terceiro álbum, que está preparado para assumir um lugar de destaque na cena da música instrumental.

“Eu busco um jazz brasileiro, uma música que eu possa desenvolver com muita liberdade e, ao mesmo tempo, com um sotaque bem característico do Brasil”, afirma, demonstrando consciência de seu horizonte artístico, esse paulista de Tupã, criado em Viçosa (MG), que vive na cidade de São Paulo desde 2000. Aos 38 anos, com um currículo profissional que inclui trabalhos e parcerias com dezenas de músicos e cantores de destaque, ele decidiu enfim investir mais em sua faceta de instrumentista.

Quem já teve a oportunidade de ouvi-lo tocar, especialmente ao vivo, percebe logo que ele é um daqueles músicos que tocam com a emoção à flor da pele. O controle do som do instrumento e a técnica apurada são metas que, em maior ou menor medida, norteiam a formação de qualquer instrumentista, mas, ao tocar seu contrabaixo, Paiva consegue algo menos comum: é capaz de transmitir sentimentos.

Não é à toa que, quando pergunto a ele quais contrabaixistas o influenciaram mais, Paiva menciona Charlie Haden, também compositor e líder do sofisticado grupo Quartet West, além de outros grandes mestres desse instrumento no universo do jazz, como Dave Holland, Scott LaFaro e Paul Chambers. Já entre os baixistas brasileiros, seus favoritos são Sizão Machado e Zeca Assumpção.

“Charlie Haden conquistou um lugar muito especial no jazz, sem ser um virtuose, propriamente. Ele utiliza a técnica a serviço da criatividade. E se entrega totalmente à música, no momento único em que ela está sendo feita”, comenta Paiva, sugerindo algumas de suas afinidades com esse jazzista norte-americano.

Por outro lado, ressalta também a importância do discurso musical, a concepção sonora que deve preceder qualquer projeto, tanto no estúdio de gravação como nos palcos. “Pensar o som antes de fazê-lo fortalece seu universo sonoro. Eu sempre quis ser mais compositor e arranjador do que instrumentista, porque o discurso musical começa na concepção e visualização desse universo. Esse é um dos aspectos que mais me atraem na música”, afirma.

As ideias que levaram à gravação deste álbum surgiram por volta de 2008. Durante os quase dois anos em que viajou por diversos países, como contrabaixista da banda da cantora portuguesa Teresa Salgueiro (ex-Madredeus), Paiva manteve longas conversas sobre a linguagem e os caminhos da música instrumental brasileira com o clarinetista Nailor Proveta (líder da banda Mantiqueira) e o baterista Daniel de Paula, que também faz parte de seu sextexto, o MP6. Estimulado por essas discussões, decidiu enfrentar o desafio de se aventurar mais pelo universo do choro.

“Naquela época comecei a pensar num projeto em que minha música pudesse se abrir mais, tanto harmonicamente, como para o improviso”, recorda. Embora não se considere um músico de choro, Paiva conviveu e tocou com experientes chorões de São Paulo, como o flautista João Poleto e os violonistas Zé Barbeiro e Luizinho 7 Cordas – sem falar em frequentes canjas na casa noturna paulistana Ó do Borogodó, ponto de encontro de músicos e fãs desse clássico gênero da música instrumental brasileira.

“Por que não abrir mais a linguagem do choro? Por que o contrabaixo não pode assumir o papel do violão de sete cordas?”, ele questiona, observando que, pelo fato de não se considerar um chorão, sente-se à vontade para tratar esse gênero musical com mais liberdade do que seus tradicionais adeptos. “Não tenho a pretensão de fazer o choro evoluir. Acredito que só se consegue fazer uma tradição evoluir quando você vem dela, mas não me agrada a ideia de tocar uma música fechada em uma determinada época”.

Outra influência essencial veio do jazz. Na época em que começou a idealizar o projeto “Choroso”, Paiva estava ouvindo discos dos saxofonistas Joe Lovano, Branford Marsalis e Joshua Redman – todos, coincidentemente, gravados com trios sem piano (sax, contrabaixo e bateria), formato instrumental que permite aos músicos tocar com maior liberdade harmônica. Estimulado por essas gravações, Paiva formou seu vibrante trio com o saxofonista Cesar Roversi e o baterista Bruno Tessele.

Essa formação instrumental mais compacta permite que ele se destaque mais como solista, diferentemente do que se ouve nos seus discos anteriores, gravados com seu sexteto. “Sem o piano ou um violão misturando as frequências sonoras, o contrabaixo sobressai. Ele pode solar, tocar melodias, assumir o papel de protagonista – um desafio para mim”, observa Paiva, destacando também as contribuições de seus novos parceiros.

“Eles têm tanta força dentro deste trio quanto eu”, afirma. “Acho que o César é o saxofonista ideal para este projeto, porque ele soma uma vivência profunda do choro com a influência de John Coltrane e de grandes saxofonistas modernos, como Chris Potter e Rudresh Mahanthappa. Com ele, essa mistura de choro e jazz soa natural”.

“Em relação ao Bruno, eu queria um baterista que soasse mais limpo e tivesse muita força no instrumento. Trabalhamos a ausência do bumbo na condução do choro e ele se adaptou rapidamente”, comenta Paiva, destacando a interação do parceiro com os integrantes do trio. “Ele está sempre inteiro dentro do som, sugerindo ideias e reagindo criativamente ao que é criado no momento”.

Autor das oito faixas do álbum, Paiva conta que gosta de compor, ou mesmo de escrever arranjos, já pensando no potencial e nas características dos músicos que vão participar da gravação. Isso ajuda a explicar o fato de seus arranjos para este álbum soarem tão fluidos e naturais, como se os músicos estivessem improvisando quase todo o tempo, com muita liberdade.

“Sopro”, a breve faixa que abre este álbum, nasceu originalmente como uma marcha-rancho, na época em que Paiva ainda estava escrevendo o repertório para o primeiro volume do projeto “Choroso”. Nesta versão mais lenta, dedicada ao grande contrabaixista cubano Cachao López (1918-2008), o baixo acústico e o sax soprano expõem com delicadeza a melodia, como se preparassem a atenção do ouvinte para emoções mais fortes.

Além de serem mais dinâmicas, as duas composições seguintes têm em comum o fato de terem sido inspiradas por clássicos do jazz ou da música brasileira. Do mesmo modo que Charlie Parker, Dizzy Gillespie e outros criadores do bebop faziam durante as décadas de 1940 e 1950, compondo a partir das harmonias de standards da canção norte-americana, para criar “Seu Joaquim” Paiva reescreveu a harmonia de “Fee-Fi-Fo-Fum” (tema que o saxofonista Wayne Shorter compôs e gravou no álbum “Speak no Evil”, em 1964), adaptando-o à linguagem do choro. “Pensei comigo: se essa música tivesse sido feita na década de 1930, como ela seria? Nos improvisos, brincamos de usar diferentes harmonias”, revela.

Em “Duque”, a conhecida melodia do choro “Tico Tico no Fubá” (de Zequinha de Abreu) já surge nos primeiros compassos, bem alterada, seguida pelo nervoso improviso de Roversi, ao sax soprano. Paiva, que adapta nessa faixa o típico fraseado chorão do violão de sete cordas ao contrabaixo, também reescreveu a harmonia de “Tico Tico”, com um resultado bem jazzístico e contemporâneo.

“São Mateus”, composta originalmente em 2001, nasceu como um choro instrumental – só mais tarde ganhou uma letra escrita por Rodrigo de Campos. Comparada à gravação de 2007, que deu título ao primeiro álbum de Paiva, a nova versão soa mais dramática. O timbre do sax soprano de Roversi e o pandeiro que Tessele utiliza sobre a caixa da bateria reforçam a ascendência árabe da melodia. A atmosfera espiritual que perpassa essa gravação tem uma referência que remete ao jazz da década de 1960: o álbum “A Love Supreme”, obra-prima do saxofonista John Coltrane, cuja influência Paiva reconhece em sua composição.

Exemplo de uma vertente da música instrumental brasileira que costuma conviver com o repertório clássico do choro, “Barão” é um samba sincopado, composto por Paiva em homenagem ao mestre violonista Dino 7 Cordas (1918-2006). Durante o extenso improviso de Roversi, ao sax tenor, o baixista desenvolve um inventivo contraponto rítmico, que não deixa de ser, paradoxalmente, um solo feito em duo.

Em “Miquelito”, também escrita especialmente para esse álbum, Paiva assume o desafio de tocar sem um andamento único. “Quando a compus, queria ter a liberdade de dilatar e encurtar o tempo, um procedimento que também está ligado à noção de espaço”, ele explica, revelando que, nessa composição, tinha em mente a avançada concepção rítmica do quinteto que Miles Davis liderou na década de 1960, tendo a seu lado Tony Williams, Ron Carter, Herbie Hancock e Wayne Shorter.

Com seu tema que parece evoluir de uma frenética marcha para um frevo, embora logo desconstruído, “Chefe” nasceu, segundo Paiva, como uma brincadeira com o cachorro de Tessele, “que não para quieto por um instante”. Também desconstruída, num procedimento tipicamente jazzístico, mas resgatada ao longo da faixa que fecha o álbum, a singela melodia de “Chorosa” remete à clássica forma do choro-canção. Composição que, por sinal, sintetiza o bem sucedido projeto desse álbum. Poucas vezes se ouviu, na história da música instrumental brasileira, choros soarem tão naturalmente jazzísticos. Ou, por outro lado, em raras ocasiões o jazz se aproximou de maneira tão íntima da linguagem do choro.

Para terminar, deixo aqui uma dica pessoal. Se você, como eu, apreciar este álbum, não perca a chance de ouvir o trio de Marcos Paiva ao vivo. Depois de me surpreender com a sensacional performance de seu sexteto, tocando as composições e arranjos de “Meu Samba no Prato”, não vou perder por nada a oportunidade de ouvir de novo esse “power trio”, recriando no palco seu excitante repertório. 


(Texto para o encarte do CD "Choroso", que o Marcos Paiva Trio lança dia 11/2, quarta-feira, no SESC Pinheiros, em São Paulo, com participação do clarinetista Nailor  Proveta)

 

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